O DIREITO DE PROPRIEDADE E OS ASPECTOS GERAIS DA ESTRANGEIRIZAÇÃO DA TERRA

25/06/2019 às 18:40
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O artigo pontua os aspectos gerais da estrangeirização de terras e possíveis repercussões no direito de propriedade das terras agrárias no Mercosul

O DIREITO DE PROPRIEDADE E OS ASPECTOS GERAIS DA ESTRANGEIRIZAÇÃO DA TERRA

 

Resumo: O artigo pontua os aspectos gerais da estrangeirização de terras e possíveis repercussões no direito de propriedade. Para tanto, parte-se da análise evolutiva do direito de propriedade, evidenciando a importância ao mundo contemporâneo do princípio da segurança jurídica na normatização do direito de propriedade da terra, fator indissociável do Estado de Direito, pela natureza de princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito. Segue-se com uma breve síntese da aquisição de propriedade agrária pelos estrangeiros e a crescente concentração de posses de imóveis rurais por estrangerios nos países do Mercosul, sem que haja registro oficial que permita discernir com exatidão os proprietários nacionais dos estrangeiros, para concluir que, caso haja uma legislação clara sobre a propriedade da terra, cumprindo-se a função social, não há riscos nacionais quanto à aquisição da propriedade por parte dos estrangeiros.

 

Palavras chaves: Propriedade; Estrangeirização de terras; Segurança Jurídica; Função Social.

Resumen: El artículo puntualiza los aspectos generales de la extranjerización de tierras y posibles repercusiones en el derecho de propiedad. Para ello, se parte del análisis evolutivo del derecho de propiedad, evidenciando la importancia al mundo contemporáneo del principio de seguridad jurídica en la normatización del derecho de propiedad de la tierra, factor indisociable del Estado de Derecho, por la naturaleza de principio fundamental y estructurante del Estado de Derecho. Se sigue con una breve síntesis de la adquisición de propiedad agraria por los extranjeros y la creciente concentración de posesiones de inmuebles rurales por estrangeros en los países del Mercosur sin que haya registro oficial que permita discernir con exactitud a los propietarios nacionales de los extranjeros para concluir que, si existe una legislación clara sobre la propiedad de la tierra, cumpliendo la función social, no hay riesgos nacionales en cuanto a la adquisición de la propiedad por parte de los extranjeros.

 

Palabra clave: Propiedad; Extranjerización de tierras; Seguridad jurídica; Función Social.

 

 

1 Introdução

 

                        No ideário humano, a propriedade sempre constituiu objeto de cobiça. E desde a origem histórica dos povos, os grupos dominantes a justificaram em normas acauteladoras de como obtê-la e resguardá-la dos demais.

                        Sem adentrar nas quezílias e pormenores da instituição jurídica quanto à formatação dada em cada época, as justificativas são das mais variadas. Muitos a justificaram, por exemplo, com amparo no texto bíblico, com fulcro no primeiro capítulo do Livro de Gênesis, versículo 26, “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra”.

                        Nas sociedades primitivas, a propriedade individual recaía sobre as coisas móveis, de uso pessoal, sendo os demais bens, coletivos, inclusive a terra, que era considerada propriedade de todos. Lá, entre outros fatores, a escassez das atividades ligadas à caça e à pesca e o desenvolvimento da agricultura passaram a ligar o homem à terra, surgindo, a partir de então, a primeira noção de propriedade coletiva, e posteriormente, a propriedade individual.

                        Em Roma, a propriedade é considerada o centro do sistema jurídico, se apresenta como um poder absoluto da pessoa sobre a coisa, um verdadeiro domínio, uma autêntica dominação. É um poder único e exclusivo. O poder dominial permitia, inclusive, destruir a própria coisa.

                        No período medieval, a propriedade, com variantes, teve a mesma justificativa do período romano.

                        Como conquista da Revolução Francesa, a propriedade foi elevada a um patamar de direito natural, inalienável e imprescritível[1], livre de quaisquer ônus e encargos, tendo sido confirmada no Código Napoleônico de 1804, base de inspiração para várias legislações civis ocidentais no século XIX e início do século XX.

                        Essa concepção da propriedade foi objeto de crítica no século XIX por Karl Marx e Proudthon, os quais entendiam, respectivamente, que o processo histórico da propriedade era um processo de espoliação e que todas as formas de propriedade constituíam roubo.

                        Denota-se, pois, um status controvertido do direito de propriedade.

                        No campo do direito internacional de direitos humanos, o direito de propriedade recebeu o mesmo tratamento conflituoso. Reconhecido na Declaração Universal de Direitos Humanos, no art. 17, não foi codificado no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), nem no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PDCP) das Nações Unidas, consectários de força jurídica vinculante ou obrigatória aos países do Mercosul.

                        Nos sistemas regionais, como na Organização dos Estados Americanos (OEA), o direito de propriedade foi inserido na Convenção Americana de Direitos Humanos no art. 21 que estabelece que toda pessoa tem direito ao uso e ao gozo de seus bens, podendo a lei subordinar esse uso e gozo ao interesse social, não podendo ninguém ser privado de seus bens, exceto mediante pagamento de indenização justa, por razões de utilidade pública ou interesse social.

                        Nessa senda, o direito de propriedade da terra encontra-se, ainda, contemplado no artigo 4º da Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e da Má-nutrição [2]. É considerado direito humano inalienável, requerendo políticas públicas estatais sobre a propriedade da terra como pressuposto do empoderamento dos povos.

                        Não é demais aventar que a noção de propriedade se vincula ao contexto sócio-político-econômico e cultural de uma determinada sociedade, distinguindo-se a propriedade imobiliária rural pela função econômica e social distinta do regime de propriedade dos demais bens, em razão da terra possuir uma função econômica, social e cultural.

                        É certo também que a propriedade deve ser compreendida como uma contingência, resultante da evolução social. E o direito do proprietário como justo e concomitantemente limitado pela missão social que se lhe incumbe em virtude da situação particular em que se encontra [3].

                        Codificado pelo regime de direito comum, no paradigma da propriedade moderna, a propriedade rural foi alçada à natureza jurídica de propriedade especial, com semântica funcional, perante os desafios da sustentabilidade e da solidariedade social.

                        É nessa perspectiva que se opera a negação da propriedade una, reduzida na sua dogmática a um instituto monolítico, pois existe um conjunto de situações jurídicas complexas, compreensivas não apenas de poderes, mas também de deveres, que envolvem a titularidade dos bens, existindo, pois, diversas propriedades, como diferentes também são as destinações econômicas e as funções sociais dos bens. O princípio da função social como ordenador da propriedade-função, ao modificar o conteúdo tradicional da propriedade, impõe-se como critério para afirmar ou negar o seu reconhecimento e a sua atribuição, assim como se erigindo em fundamento de sua garantia [4].

                        Contém o mesmo sentido, a afirmativa de José Afonso da Silva [5] sobre a propriedade rural:

 

A propriedade rural, que se centra na propriedade da terra, com sua natureza de bem de produção, tem como utilidade natural a produção de bens necessários à sobrevivência humana, daí porque a Constituição consigna normas que servem de base à sua peculiar disciplina jurídica (arts. 184 a 191). É que 'a propriedade da terra, bem que se presta a múltiplas formas de produção de riquezas, não poderia ficar unicamente em subserviência aos caprichos da natureza humana, no sentido de aproveitá-la ou não, e, ainda, como conviesse ao proprietário.

 

 

                        No consistente à propriedade da terra, Ferreira [6] pondera que existe um direito de todos os homens a terra, que é um direito predominante, sem prejuízo de um elemento limitante ou complementar que leve em conta e represente o direito que se quer modificar esse meio natural. Isso porque a terra não é uma propriedade como as demais propriedades. A terra é um caso sui generis que se examina nela mesma.

                        Ao estudar a problemática do setor rural e suas implicações sobre o direito de propriedade privada da terra, Piffano [7] anotou:

 

La propiedad del recurso limitado - no reproducible - tierra, ha sido tema de discusión de filósofos, sociólogos, moralistas, religiosos, politólogos, juristas y economistas, desde hace ya varios siglos. La propiedad privada ha sido desafiada por posiciones socialistas que interpretan que la tierra, por su característica diferencial al resto de los recursos reproducibles (trabajo y capital), debiera ser considerada uma propiedad comunitaria sin exclusión alguna de dominio. Sin dudas que esta posición acarrea enormes desafíos respecto al grado y modalidad de utilización del bien común, aspecto que la economía ha analizado y concluido con el conocido teorema del fracaso o tragedia de los comunes.

 

 

                        Do ponto de vista de José Isaac Pilati [8], a nova propriedade pós-moderna surge no bojo de um processo mais amplo de restauração política e jurídica do Coletivo, da participação e da democratização. Apesar de pautada pelo figurino codificado da propriedade moderna, da qual necessita e desfruta do mesmo status de direito subjetivo da propriedade comum, como direito fundamental e oponibilidade erga omnes, sua natureza de propriedade especial, acrescenta-lhe um plus de funcionalidade.

                        Decerto, e diante dos conceitos e definições acima assinaladas, para a concretização dos direitos de propriedade, a ambiência jurídica restritiva do direito de propriedade da terra a estrangeiros deve ser construída em normas aderentes ao princípio da segurança jurídica.

 

1 A segurança jurídica na normatização do direito de propriedade da terra

 

                        Do ângulo mais geral, a segurança jurídica está diretamente ligada ao Estado de Direito.  E sua garantia constituiu, no início, o objetivo principal desse. Conforme observa Canotilho [9], o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito.

                        A segurança jurídica liga-se à certeza do Direito, possuindo uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva. Na dimensão objetiva, a segurança jurídica relaciona-se com a estabilidade das relações jurídicas, por meio da proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Na dimensão subjetiva, a segurança jurídica é o princípio da proteção, cuja carga semântica alberga proteção à confiança, à boa-fé do cidadão, que acredita e espera que os atos praticados pelo Poder Público sejam lícitos e, nessa qualidade, serão mantidos e respeitados pela própria Administração e por terceiros [10].

                        No constitucionalismo moderno do Estado de Direito, a segurança jurídica apresenta-se indissociável, sendo, doutrinariamente, considerada expressão do Estado de Direito, conferindo-lhe a condição de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito [11].

                        É nessa linha de compreensão de princípio densificador estruturante que a segurança jurídica, como direito fundamental, significa proteção contra alterações bruscas em determinada realidade fático-jurídica, ou seja, implica respeito às realidades consolidadas.  Também significa normalidade, estabilidade, proteção contra alterações bruscas numa realidade fático-jurídica, ou seja, a adoção pelo Estado de comportamentos coerentes, estáveis e não contraditórios [12].

                        Significa ademais, a bilateralidade da garantia do direito de exigibilidades e da devida proteção e respeito às normas pretéritas válidas, com efeitos propagadores aos destinatários de boa-fé como diretriz da segurança [13].

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                        Portanto, o princípio da segurança jurídica estabelece o dever de buscar um ideal de estabilidade, confiabilidade, previsibilidade e mensurabilidade na atuação do poder público, de modo que os cidadãos possam saber de antemão quais normas são vigentes e aderentes.

                        Da relevância do instituto, decorre a imperiosa necessidade de o ordenamento jurídico determinar os direitos e deveres dos indivíduos aos quais se dirige, dispondo sobre a proteção dos seus direitos pelo ordenamento, evitando hiatos legislativos.

                        A singularidade do princípio consiste na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída [14].

                        Desse modo, o princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo consiste na ideia de que o indivíduo tem de poder confiar em que seus atos ou as decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas encontram alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas pelos atos jurídicos deixados pela autoridade com base nas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e expressos no ordenamento jurídico [15].

                        Somente, portanto, quando conexionada com a garantia da estabilidade jurídica, da segurança de orientação e da realização do direito, o princípio da segurança jurídica alberga proibição de normas retroativas restritivas de direitos (quanto aos atos normativos), inalterabilidade dos casos julgados (relativos a atos jurisdicionais) e estabilidade dos casos decididos através de atos administrativos constitutivos de direito (relativos a atos da administração) [16].

                        Por sua vez, no campo da retroatividade das normas, o princípio da segurança jurídica, na qualidade de princípio densificador do princípio do Estado democrático serve de pressuposto material à irretroatividade das leis [17].

                        No entanto, a simples confiança não é óbice à possibilidade jurídica da retroatividade da lei, quando tal se revelar ostensivamente inconstitucional perante certas normas ou princípios jurídico-constitucionais informadores de direitos fundamentais.

                        Em decorrência da disciplina do princípio da segurança jurídica, a conformidade formal-material dos atos jurídicos praticados deve atender aos pressupostos legais da aplicabilidade das normas e da busca do justo além da lei, numa clara noção de que o Direito é maior do que a norma.

                        Nesse diapasão, negar validade à certeza da aplicabilidade da norma significa mortificar o sistema jurídico, o Direito. Por isso, imprescindível à caracterização da segurança a qualificação das situações jurídicas, imprimindo-lhe previsibilidade inclusive em relação às consequências das ações positivas ou negativas dos indivíduos.

                        Resulta óbvio que o cidadão deve saber não apenas os efeitos que as suas ações poderão produzir, mas também como os terceiros poderão reagir diante delas.

                        Portanto, a indispensabilidade da segurança jurídica requer a necessidade de uma ordem jurídica estável, com um mínimo de continuidade, devendo, pois, a mudança de paradigmas conformar-se com o princípio da segurança jurídica como meio garantidor dos investidores estrangeiros de boa-fé quanto à aquisição. Como também de outros domínios fundamentados em institutos jurídicos positivados na legislação da propriedade do imóvel rural.

                        No campo restritivo do direito de propriedade do imóvel a estrangeiros, maior relevância assume o princípio da segurança jurídica, sendo um elemento determinante para que o detentor do capital possa escolher qual risco deseja ou aceita assumir. Isso só pode ser factível se as regras forem claras e objetivas. Não pode haver hiatos jurídicos. Sua existência vulneraliza o sistema, limita o alcance das regras e promove, na maioria das vezes, uma tutela jurídica à propriedade privada neoliberal [18].

           

2 A aquisição da propriedade rural por estrangeiros

 

                        No entender de Vicente Cavalcanti Cysneiros [19] toda a legislação que incide sobre a condição jurídica do estrangeiro e aquela que restringe a aquisição da propriedade fundiária, atuando, portanto, em relação ao gozo dos direitos civis, não poderá ter validade, caso não se conheça a evolução legislativa da condição jurídica de estrangeiro, cujas raízes remontam ao início das organizações das sociedades primitivas.

                        A evolução histórica em relação a tal condição não se deu de maneira linear. Vinculam-se as restrições às instituições sócio-político-econômicas que formatam ora a restrição ora a recepção dos direitos do alienígena.

                        Revisitando a história, encontrar-se-ão informações de que egípcios consideravam o contato com outros povos uma degradação. Que os espartanos eram xenófobos. O grego não conhecia senão o grego. Os romanos desconsideravam os bárbaros. Apenas a Pérsia neste momento era receptiva aos estrangeiros [20].

                        Aos poucos, evolui-se a condição de estrangeiros na Grécia e em Roma, tendo ocorrido uma involução no tratamento jurídico com o surgimento da estrutura feudal que repeliu o estrangeiro. Se ele aparece, a sua condição será de servo. Além disso, a expressão feudal bastante difundida – nenhuma terra sem senhor – não criava espaço para a aquisição da propriedade fundiária por estrangeiros.

                        A partir do século XIX, consequência da ambiência das ideias lançadas pela Revolução Francesa, as legislações positivas vão acolher a igualdade entre nacionais e estrangeiros, principalmente sobre direitos civis e mercantis, em função, sobretudo, do capitalismo industrial que transpondo fronteiras, aproximam nações, levando os estados a chancelar as exigências da interpenetração, reservando-se aos nacionais o gozo dos direitos políticos [21].

                        A superação da estrutura feudal com as exigências de regras que assegurassem um novo tipo de propriedade, focada numa proteção individualista exacerbada, readequou caracteres do absolutismo romano, de que foram expressões os artigos 544 a 546 do Código Civil Francês:

 

La propriété este Le droit de jouir ET disposer dês choses de La manière La plus absolue, pourvu qu’on n’em fasse pás um usage prohibé par lês lois ou par lês réglemens.

Nul NE peut être contraint de ceder as propriété, si ce n’est pour cause d’utilité publique, ET moyennant une juste ET préalable indemnité.

La propriété d’une chose, soit mobilière, soit immobilière, donne droit sur tout ce qu’elle produit, et sur ce qui s’y unit accessoirement, soit naturellement, soit artificiellement.

Ce droit s’appelle droit d’accession.

 

                        Todavia, o Código Napoleônico, influenciador da maior parte dos códigos europeus e americanos, não levou à superação de textos que submetiam a controle a aquisição por estrangeiros da propriedade rústica. Disposição contida na Seção II da Lei de Introdução ao Código Civil Alemão, promulgado em 1896, e que vigorou até 1900, dispunha no seu artigo 88 que permanecem em vigor as disposições das leis dos estados, que fazem depender da aprovação do Estado a aquisição de imóveis por estrangeiros [22].

                        Tais condições jurídicas restritivas, genericamente, persistem nos dias atuais.

 

3 O tema no cenário sul-americano e conclusões finais

 

                        A concentração de terras em posse de estrangeiros é atualmente incalculável nos países do Mercosul, uma vez que nenhum país tem registro oficial [23] que permita discernir com exatidão os proprietários nacionais dos estrangeiros.

                         O que se constata é que apesar da problemática histórica (há varias décadas que o fenômeno vem se manifestando), o tema foi incluído na agenda política nos últimos anos diante da carência de limitações normativas a respeito da compra e do arrendamento de terras por parte de estrangeiros e seu manifesto crescimento. Também se verifica que as situações jurídicas são distintas, ou seja, alguns países possuem uma regulamentação mais avançada (Brasil, Paraguai e Venezuela), ao passo que outros possuem maiores dúvidas (Uruguai e Argentina).

                        Segundo informações coletadas nos sítios dos Ministérios da Agricultura do Uruguai, Argentina, Paraguai e no sítio do Incra (autarquia brasileira encarregada da regularização fundiária), os fatores que alavancam o interesse do capital estrangeiro por terras são: para fins de empreendimentos imobiliários e turísticos; o continente sul-americano possui grandes extensões de terras despovoadas; o desenvolvimento rural na região; a abundância de recursos naturais nas terras, principalmente água e minerais; o baixo valor das terras; o limitado exercício de poder de policía dos Estados, havendo uma zona liberada considerada conveniente pelo investidor.

                        Na medida em que os países do cone sul americano protagonizam e mesclam a crescente produção global de alimentos, a situação provocada pela compra ou arrendamento de terras em grande escala, associada à relevante questão das necessidades alimentares básicas provocou preocupação nas Nações Unidades, tendo o Relator Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Alimentação afirmado [24]:

El derecho a la alimentación contribuye con lecciones importantes para el debate sobre la adquisición de tierras a gran escala o los arrendamientos. Hay oportunidades en este desarrollo, pero también hay importantes problemas de derechos humanos. Los estados estarían actuando en violación del derecho humano a la alimentación si, por el arrendamiento o la venta de tierras a inversores (nacionales o extranjeros), se les priva a las poblaciones locales del acceso a los recursos productivos indispensables para su subsistencia. (…) En la conclusión de acuerdos sobre la adquisición de tierras a gran escala o los arrendamientos, los Estados deberían tener em cuenta los derechos de los usuarios de las tierras actuales en las áreas donde se realiza la inversión (…) guiados por la necesidad de garantizar el derecho a la libre determinación y el derecho al desarrollo de las poblaciones locales.

 

                        É importante anotar que, contemporaneamente, a garantia de direito humanos universais engloba a equiparação constitucional entre as pessoas jurídicas nacionais e as estrangeiras, mas pode haver distinções feitas em âmbito regulatório, previsto na própria constituição. É o caso da titularidade sobre bens imóveis rurais.

                        Segundo informações da mídia [25], o tema emerge nos debates políticos [26] e jurídicos, tendo como maior preocupação uma positividade do direito, causando uma celeuma jurídica sem precedentes, principalmente pela falta de projeto político definidor de uma política econômica que ao mesmo tempo em que estimule investimentos pelas grandes empresas, seja meio garantista do desenvolvimento econômico nacional sustentável; e limitadora, se benéfica, do tamanho de terra destinada à monocultura do agronegócio, deixando de fomentar, portanto, a estrangeirização da terra na América do Sul [27].

                        Os defensores de se impor limites à aquisição de terras por estrangeiro promovem um discurso de caráter social da propriedade, com fundamento de que a agenda agrária neoliberal estaría sendo desenvolvida em detrimento da soberania e do bem estar comum, da segurança jurídica dos investidores, cuja sistemática consiste em liberar o mercado de terras no continente e inserir o campo como objeto da especulação financeira e dos mercados de futuro.

                        Doutro lado, é visível o intercâmbio da estrangeirização da terra nos países do Mercosul e nos africanos. Brasileiros, por exemplo, são grandes proprietários de terras no Paraguai, no Uruguai, na África. Argentinos são grandes proprietários no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia. Uruguaios são grandes proprietários no Paraguai.

                        Pesquisas do Centro de Estudos Ambientais [28] argumentam que a estrangeirização da terra encontra-se umbilicalmente ligada ao agronegócio, sendo que as principais transnacionais que controlam o segmento econômico, apontam que os países onde se instalaram e onde possuem ramificações encontram-se na zona do Mercosul. Resultado, por óbvio, da opção empresarial de investimentos das transnacionais que controlam o mercado de commodities.

                        A par disso, percebe-se que o setor de commodities na América latina não discrimina governos nacional-populares (Argentina), de tendência socialista (Bolívia) ou simplemente de continuidade neoliberal (Chile), assim como o caminho para o desenvolvimento do cone sul ainda se concentra na extração de recursos naturais e na expansão da atividade agrícola.

          Em entrevista [29], o Professor Marcel Aschkar, da Universidade da República do Uruguai afirmou que o processo de adquisição tem se acelerado nos últimos, fundamentalmente sobre a base de quatro processos:

1) La expansión del cultivo de soja em Uruguay, un cultivo que en el año 2000 era casi inexistente, su producción masiva empezó en el año 2001. En estos tiempos se plantaba alrededor de 10 mil hectáreas. La última cosecha que se están levantando ahora es de 350 mil hectáreas. Básicamente esto se considera la expansión de la frontera agrícola de Argentina. Una proporción de agricultores argentinos cruce en Uruguay, compra tierra, planta y continúa sus actividades en Argentina.

2) Brasileños vinculados a la cultivación de arroz, se mantienen como productores en Brasil mientras que cruzan, compran y plantan em Uruguay. Ahora con el aumento de interés al nivel internacional de la producción del biocombustible este proceso tiene aún más importancia.

3) La forestación, la cual en los últimos años ha sido tal vez el más explosivo, hay grandes empresas multinacionales que han aumentado significativamente sus territorios, desde entonces más de 100 mil hectáreas cada una, estas empresas son de origen Chilena, Norteamericana, Finlandesa y Española.

4) Un proceso donde la actividad es marginal o no se realiza, donde se compra la tierra, mantiene la ganadería extensiva o no, pero su objetivo es de tener una inversión nada más. No tiene preocupación por la rentabilidad o productividad, según la Facultada de Ciencias.

                       

                        Portanto, e apesar dos constantes debates, principalmente no âmbito de organismos internacionais, não existem estatísticas oficiais sobre o fenômeno da concentração e estrangeirização da terra na América do Sul [30], de forma que se possa dimensionar o tamanho do hiato jurídico e o quanto o tema pode repercutir nas políticas públicas dos Estados detentores dos territórios onde ocorre o fenômeno jurídico.

                        No que diz respeito especificamente à aquisição de terras agrícolas em grande extensão, deve-se ponderar que caso sejam respeitados os princípios listados pelo Banco Mundial para investimento responsável em Terras Agrícolas [31], o fenômeno da estrangeirizaçao se apresenta como um fator de alavancagem de recursos com vsitas à segurança alimentar dos povos, quais sejam:

                        (1) Respeitar os direitos da terra e de recursos.

                        (2) Garantir a segurança alimentar (Investimentos não comprometer a segurança alimentar, mas fortalecê-la).

                        (3) Assegurar a transparência, a boa governação, e um bom ambiente de habilitação.

                        (4) Consulta e participação. Todos aqueles materialmente afetados sejam consultados.

                        (5) Responsabilidade do agro-investimento. Investidores garantir que os projectos respeitar a regra de direito, refletir melhores práticas da indústria, são economicamente viáveis​​, e resultam em valor compartilhado durável.

                        (6) Sustentabilidade social. Investimentos geram social desejável e de istribuição impactos  e não aumentar a vulnerabilidade.

                        (7) Sustentabilidade ambiental. Impactos ambientais de um projeto são quantificados e são tomadas medidas para incentivar o uso sustentável dos recursos, enquanto minimizar e mitigar o risco e magnitude dos impactos negativos.

 

Referências/Notas

[1] Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, artigo 17º- Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indemnização.

[2] Incumbe a cada Estado interesado, de conformidad con sus decisiones soberanas y su legislación interna, eliminar los obstáculos que dificultan la producción de alimentos y conceder incentivos adecuados a los productores agrícolas. Para la consecución de estos objetivos, es de importancia fundamental adoptar medidas efectivas de transformación socioeconómica, mediante la reforma agraria, de la tributación, del crédito y de la política de inversiones, así como de organización de las estructuras rurales, por ejemplo: la reforma de las condiciones de propiedad, el fomento de las cooperativas de productores y de consumidores, la movilización de todo el potencial de recursos humanos, tanto de hombres como de mujeres, en los países en desarrollo para un desarrollo rural integrado, y la participación de los pequeños agricultores, los pescadores y los trabajadores sin tierras en los esfuerzos por alcanzar los objetivos necesarios de producción alimentaria y de empleo. Además, es necesario reconocer el papel central que desempeña la mujer en la producción agrícola y en la economía rural de muchos países, y asegurar a las mujeres, en pie de igualdad con los hombres, una educación adecuada, programas de divulgación y facilidades financieras.

[3] DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Tradução de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone Editora, 1996, p. 29.

[4] MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de informação legislativa, v. 42, n. 168, p. 193, out./dez. de 2005. Disponível em http://www2.senado.gov.br. Acesso em 5 de novembro de 2012.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 687.

[6] FERREIRA, Carlos Vaz. Sobre la propiedade de la tierra, p. 220. Disponível em http://autoresuruguayos.adinet.com.uy/carlos-vaz-ferreira/texto-primeras-ediciones.php.  Acesso em 11 de deembro de 2012.

[7] PIFFANO, Dr. Horacio L.P. Imposición al Sector Rural: Presión Tributaria, Valor de la Tierra y Derecho de Propiedad - Versión ampliada a la presentada por el autor en las 42º Jornadas Internacionales de Finanzas Públicas de Córdoba (2009) y en la XLIV Reunión Anual de la AAEP (2009).

[8] PILATI, José Isaac. Propriedade e Função Social na Pós-Modernidade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2012, p. 39.

[9] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição. Edições Almedina: 2008, Coimbra-Portugal, p. 257.

[10] Idem, p. 257.

[11] Ibidem, p. 257.

[12] Ibidem, p. 257-258.

[13] O Professor Osvaldo Ferreira de Melo afirma que no Estado Moderno costumava-se priorizar, retoricamente, como um dos fins do Direito, a segurança jurídica, mas essa é moeda de duas faces. Numa está gravada a preocupação com os fins políticos, que Bobbio chama a Política do Poder: é preocupação nítida do Estado a paz social, pois, no alcance desse objetivo, reside a própria estabilidade dos governos, cujos objetivos, então, se confundem com os do próprio Estado. [...] O outro lado da moeda estampa a necessidade de os indivíduos contarem com a certeza de que seus direitos “garantidos” pela ordem jurídica sejam efetivos. In MELO, Osvaldo Ferreira. Temas Atuais da Política do Direito. Porto Alegre: SAFE – FABRIS, 1998, p. 37

[14] SILVA, José Afonso da, Obra cit., p. 433.

[15] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 257.

[16] Idem, p. 257-261.

[17] Idem, p. 257-261.

[18] Na compreensão de que uma das facetas do neoliberalismo consiste em atenuar conquistas coletivas do direito de acesso à terra.

[19] CYSNEIROS, Vicente Cavalcanti. O Estrangeiro e a Propriedade Rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1985, p. 17.

[20] Idem, p. 19.

[21] Ibidem, p. 22.

[22] Ibidem, p. 23.

[23] Um cadastro eficiente evitaria várias anomalias da estrutura fundiária. A título de exemplo: No Brasil, o Cadastro Rural de Imóveis Rurais (CNIR) encontra-se regulamentado pela Lei 10.267/2001 e Decreto 5.570, de 31 de outubro de 2005. Representa uma ferramenta essencial para se conhecer a estrutura fundiária do país. A Lei dispõe também sobre o georreferecimento (rastreamento de satélites geodésicos realizados por sistema de rastreamento GNSS (Global Navigation Satélite System) ou outros por exigência da norma técnica para Levantamento Topográfica editada pelo Incra em 2001. O cadastro evita ocorrências como a do município de Gurupá, no Estado do Pará: o município mede cerca de 800 mil hectares, mas tem um milhão e 200 mil matriculados no Registro de imóveis Disponível em HTTP://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/reforma-agraria/politica-d-desapropriacao/mapa_grilgem_para.pdf.

[24] Declaração "Adquisiciones y arrendamientos de tierras a gran escala: once principios para afrontar el reto de los derechos humanos" (11 de junho de 2009) do Relator Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Alimentação, Olivier Schutter. Disponível em http://www.srfood.org/

[25] A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil” in  http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17268 “Estrangeirização e aumento de preços da terra preocupam no Uruguai” in http://www.radiomundoreal.fm/Limites?lang=es; “Crece consenso para aprobar ley que evite "extranjerización" de tierras en Bolívia” in http://spanish.news.cn/iberoamerica/2012-01/08/c_131348255.htm etc.

[26] Atualmente tramita no Senado colombiano projeto de reforma constitucional para a regulação da estrangeirizaçao da terra. O projeto pretende fixar limites à quantidade de terra que pode ser adquirida por estrangeiro no país. Tal projeto se desenvolve sob protestos do agronegócio que vê na norma entraves ao investimento estrangeiro, sendo mesmo uma impropriedade jurídica ao reformar a Constituição para alterar pontualmente um tema.

[27] Segundo pesquisa realizada por Miguel Urioste F. de C., las condiciones que favorecen (estimulan o facilitan) el fenómeno del acaparamiento de tierras en Bolivia son: Bajos precios de la tierra, abundancia de tierras no trabajadas y posibilidad de ampliación de la frontera agrícola y ganadera, casi sin efectivo control ambiental de las débiles instituciones públicas bolivianas; Inexistencia de impuestos a la tierra y a las utilidades de las exportaciones agroindustriales; Crónica presencia extranjera en la extracción de recursos naturales y particularmente de migraciones externas a las que desde el Estado y desde sectores empresariales se facilita la venta de tierras para la producción agropecuária; Subsidio del Estado boliviano al precio del diesel -principal insumo de la agroindustria- que es importado desde Venezuela y Argentina a razón de 400.000 barriles mensuales, la mitad de los cuales se consumen en La agroindustria por un valor aproximado de 150 millones de dólares al año. Un representante del Banco Mundial afirmó que Bolivia es el único país que subsidia a los ricos; Fomento/apoyo de países, especialmente del Japón al principio de lós años 50 del siglo pasado y del Brasil en la actualidad, para asentamientos de sus connacionales en Bolivia; Exitosa inversión privada que acompañó el reciente flujo de migración externa, notablemente del Brasil, conectada al agronegocio de commodities; Liderazgo brasilero en la producción de oleaginosas y toda la cadena productiva, con efectos económicos, sociales, culturales y políticos y relativo acceso al poder local e influencia en políticas públicas regionales y nacionales; Existencia de mercados de tierras no transparentes que impiden la regulación del Estado; Escasez de tierras para uso agrícola y o ganadero en los países fronterizos, especialmente Brasil y Argentina y precios muy altos de la tierra em esos países, comparados con los de Bolivia.

[28] Organização não governamental uruguaia.

[29] http://www.ecoportal.net/Temas_Especiales/Suelos/Uruguay_en_venta._La_extranjerizacion_de_la_tierra_uruguaya.

[30] A Organização das Nações Unidas estimou, em 2009, que dos 278 milhões de hectares de terras argentina, entre 17 e 30 milhões de hectares era propriedade de estrangeiros. O Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA) informou que o American International Group possui 7% do território da província de Salta.

[31] Rising Global Interest in Farmland, p. 29. Disponível em www.worldbank.org.

Sobre a autora
Antonia Maria da Silva

Professora de Direito Tributário. Mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Auditora Federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União e Professora universitária e de ensino técnico e profissionalizante no Instituto Federal do Tocantins.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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