Como anda a luta? Algumas reflexões sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez na Argentina (Tradução)

03/07/2019 às 02:19

Resumo:


  • O Senado argentino rejeitou o projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez em 9 de agosto deste ano.

  • O debate sobre o tema cruzou todos os estratos sociais e bandeiras partidárias no país, gerando mobilizações e discussões em diversos espaços.

  • Apesar da rejeição no Senado, a luta pela legalização do aborto na Argentina continua forte, com possíveis ações através da política institucional, prática jurídica e mobilização social.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Tradução do artigo “¿CÓMO SIGUE LA LUCHA?: Algunas reflexiones sobre la Interrupción Voluntaria del Embarazo en Argentina” de autoria de Nicanor Barrios, Link do texto original: http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2018/11/doctrina47129.pdf

Como anda a luta? Algumas reflexões sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez na Argentina

Por Nicanor Barrios

*Tradução por Matheus Maciel

"Todos os direitos do mundo deve ser adquiridos pela luta,esses principios do direito que estão em vigor hoje têm sido indispensáveis para os impor pela luta àqueles que não a aceitam, de modo que todo direito, tanto o direito de um povo como o de um indivíduo, supõe que o indivíduo e o povo estão prontos para defendê-lo’’. Assim expressa um dos maiores juristas de todos os tempos que escreveu estas palavras no século XIX, e que continuam, nestes tempos loucos, com mais validade do que nunca.

 Durante o início da manhã de 9 de agosto deste ano, o Senado argentino rejeitou o projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez. Este projeto foi apoiado, motivado e colocado na agenda política por um grupo de mulheres e grávidas e tornou muito forte não só nas ruas através da mobilização social, mas em diferentes espaços acadêmicos, políticos e culturais do espaço social, no movimento conhecido como "a onda verde".

 O debate sobre o tema em questão, cruzou todos os estratos sociais e todas as bandeiras partidárias no país, o assunto foi falado em casa, na rua, na escola, na universidade, no trabalho, na mídia, etc. Todos os dias e a toda hora.

 No entanto, passado o extenso debate, passando por alto as exposições de muitos dos profissionais que foram chamados para ambas as casas do Congresso, deixando de lado os dados da realidade empiricamente comprovados, sem se importar com essa luta que muitas mulheres e gestantes travaram e continuam perseguindo por esse direito e recorrendo a convicções religiosas e genéricas, sem apoio empírico - 38 pessoas, que compõem a Câmara dos Deputados mais oligárquica do Poder Legislativo, negaram-lhes  seu direito constitucional e convencional para decidir sobre seu próprio corpo e plano de vida.

  Deve ficar claro que além do golpe que foi dado a esses lutadores, esta luta está mais firme do que nunca. E hoje temos diferentes ferramentas para levar adiante a luta por esse direito.

 No presente trabalho, me dedicarei a pensar nessas ferramentas que, do espaço político, jurídico e social, podemos utilizar para conseguir que esse direito, possa ser realizado, concretizado. Enfim, me dedicarei a pensar em: “Como a luta continua?”

Em princípio, dividirei o trabalho no que considero, em três áreas de ação possíveis: uma primeira dedicada ao campo da política institucional, uma segunda orientada ao campo e prática jurídica e, finalmente, uma dedicada ao movimento social em si. Como três formas e opções de seguir encarando a questão de uma perspectiva ampla e progressista, a fim de alcançar o objetivo desejado.

POLÍTICA INSTITUCIONAL: CONSULTA POPULAR VINCULANTE

Um dos pontos mais interessantes da reforma de nossa Constituição Nacional em 1994 foi a inclusão dos chamados mecanismos de Democracia semi-direta, ou Democracia Participativa, como consagração do direito à Participação Cidadã nos assuntos públicos e em oposição à criticada Democracia Representativa e Democracia Elitista. Esses institutos foram introduzidos nos artigos 39 (Iniciativa Popular) e 40 (Consulta Popular Vinculante – Referendo- e não vinculante – Plebiscito) da referida Carta Magna. E, posteriormente, sua regulamentação nas leis 24747 (Iniciativa) e 25432 (Consulta).

O Art. 39 da CN, ao falar da iniciativa popular,afirma  que "Os projetos referentes à reforma constitucional, tratados internacionais, impostos, orçamento e questões criminais não serão objeto de iniciativa popular."

 Os setores mais reacionários da academia, doutrina constitucional interpretaram que essas questões também estavam proibidas para a consulta popular "porque as pessoas não podem decidir sobre essas questões". "Esta exceção responde à concepção elitista de democracia acima mencionada, para a qual nem todas as pessoas são igualmente qualificadas para a tomada de decisões e, desta forma, não seria ruim desconfiar do que o povo pode propor, especialmente nos temas de maior relevância institucional "(Zayat, 2011: 258)

 Mas a verdade é que a mesma Constituição, ao se referir ao seguinte Artigo à Consulta Popular, omite mencionar essa reserva temática, portanto, deve-se interpretar que, no que se refere à Consulta Popular, os cidadãos podem votar nessas questões. Assim interpreta a doutrina mais progressista na matéria ((v.gr Roberto Gargarella, DemianZayat) e, portanto, surge do mesmo texto de nossa Norma Suprema.

 Portanto, esse mecanismo, nunca ativado desde seu nascimento normativo em 1994, poderia ser uma opção viável para que essa lei há muito esperada possa ser promulgada.

 Muitos se perguntarão se este mesmo projeto de lei que foi rejeitado pelo Senado pode ser discutido novamente este ano por meio de uma Consulta de Ligação Popular, e a resposta a essa pergunta é dada pela mesma Constituição, que em seu artigo 81 declara: "Nenhum projeto de lei totalmente rejeitado por uma das Câmaras poderá ser repetido nas sessões daquele ano." Este artigo deve ser interpretado como referindo-se à mecânica institucional da política representativa, isto é, é uma espécie de norma que regula o procedimento de "Formação e Sanção de Leis" em termos de sistema de freios e contrapesos, em termos da dinâmica do próprio Poder Legislativo. Entretanto, este artigo não deve ter qualquer interferência no que corresponde ao exercício do direito a Participação Cidadã nos assuntos públicos.

 Por isso, é  faculdade deste Congresso, a iniciativa da Câmara dos Deputados (a mesma que deu meia sanção a este projeto) ditar a lei de convocação do referendo popular e no Senado, em teoria não deveria ser rejeitado, já que  seria uma outra prática antidemocrática que permaneceria nos anais de nossa história institucional.

 É por isso que, como cidadãos, devemos exigir que esse debate seja realizado a partir da esfera política institucional. A decisão do Senado de nenhuma maneira pode pôr ponto final a este longo debate que é tão importante para este país.

"Não sabemos o que os cidadãos realmente pensam. E nós não podemos realmente saber até que todos possam falar claramente em um referendo. A razão pela qual o referendo é necessário, é democrático: permitir o governo do povo e pelo povo. Um deve ser a favor deles, independentemente de qual seja a previsão do voto no dito referendo. Aqueles que são a favor da despenalização têm a responsabilidade de convencer aqueles que não estão em um debate público aberto e fundamentado. E se não tivermos sucesso, teremos o dever de aceitar o resultado, porque essas são as regras do jogo da democracia. Aceitaremos a decisão tomada por uma clara maioria (dos cidadãos) "(Linares, Martí, 2018).

É a ocasião perfeita: quando pensam em ativar os mecanismos de Participação Cidadã? Quando vão nos deixar tomar decisões por nós? Por que eles têm tanto medo do poder dos cidadãos? É o momento dos cidadãos interferirem de maneira consciente e responsável em assuntos públicos que interessam a todos nós, e que são as próprias pessoas que decidem se a maternidade é uma decisão ou uma obrigação, se sobre o corpo das mulheres e as grávidas decidem o mesmo, ou se Deus decide, a Igreja ou 38 pessoas com título de nobreza.

  CAMPO E PRÁTICA JURÍDICA: AMPARO

Devemos nos perguntar como profissionais do Direito se a ciência, disciplina ou profissão que estudamos é um conhecimento que pode ser aplicado para contribuir com mudanças e dinâmicas sociais, ou se ao contrário é uma disciplina destinada e construída com o fim de manter o status quo para manter tudo como está. Os advogados são atores sociais importantes para a mudança política, legislativa e social, ou são os atores sociais que defendem o status quo? Em suma, o Direito pode ser uma boa ferramenta para a dinâmica social?

Devo admitir que gostaria de responder de maneira sincera e com firme convicção pela visão progressista desta profissão, mas isso não é possível no momento. O que posso fazer é pensar nas maneiras pelas quais essa ferramenta que gerenciamos pode colaborar com essa mudança política e social. É por isso que considero que, na prática jurídica, temos muito que fazer e uma ferramenta fundamental que temos para os casos em que não se permita o interrupção voluntária da gravidez é o principal recurso, junto com o Habeas Corpus, que se encontra em nossa Constituição para garantir a inviolabilidade de seus preceitos ou para evitar que os direitos fundamentais nela contidos sejam violados: o AMPARO.

  O Amparo é uma ferramenta que foi utilizada e ainda se utiliza para a proteção desses direitos que determinados setores privilegiados, e até o próprio Estado, que não nos queriam ou não querem nos reconhecer como cidadãos. (Um exemplo disso no presente é o uso de Amparo como um recurso para ser capaz de realizar o auto-cultivo de Cannabis para fins terapêuticos por  pessoas que necessitam para curar suas dores ou doenças.)

  E é que o nosso direito positivo em vigor na Argentina nos permite não apenas apresentar um Amparo nos casos do IVE, mas também solicitar a inconstitucionalidade do Art. 85 inc. 2, Art. 86, 1º parágrafo e Art. 88 do Código Penal, que são aqueles que penalizam uma mulher que causa um aborto ou que recorra a um médico para isso. E essa inconstitucionalidade estaria baseada em um grande número de ferramentas legais que excedem este trabalho, mas como um exemplo irei mencionar algumas: Art. 19 da Constituição Nacional sobre a autodeterminação das mulheres sobre seus próprios corpos. Art. 4º CADH sobre a proteção do direito à vida "EM GERAL, desde o momento da concepção", isto é, nem sempre. Constituição da OMS sobre o Direito da Saúde; Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais Art. 12; Jurisprudência Nacional "FAL", "Sejean" (divórcio vincular), "Bazterrica" e "Arriola" (posse de narcóticos para uso recreativo) Portillo e "Albarricini" (liberdade de consciência) e Interamericana "ArtaviaMurillo". Jurisprudência internacional "Roe v. Wade "e" Doe v. Bolton "(EUA), bem como os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Doutrina nacional e internacional, entre outras normas.

MOBILIZAÇÃO SOCIAL: DEBATE E PROTESTO

Para a doutrina dominante em matéria constitucional, a Constituição só é modificada através dos procedimentos previstos para ela. Nessa perspectiva, em todas estas últimas quatro décadas a Constituição recebeu apenas uma pequena reforma em 1994 (Bergallo, 2011). Mas, "de acordo com as ciências sociais e concepções mais complexas de Direito, essa mudança constitucional transcende as reformas do texto, e acontece também onde os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, às vezes chamados por mobilizações sociais de força e agenda variadas, transformam Princípios Constitucionais (...) Como ressaltado pelos proponentes do constitucionalismo democrático, o processo de mudança também ocorre na mobilização social, que só às vezes, e embora nem sempre de imediato, consegue permear as instituições que são o espaço autorizado de interpretação. constitucional "(Bergallo, 2011: 63).

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 É por isso que, como a frase de Ihering reflete, no início deste trabalho, e como as palavras de Bergallo expressam, devemos continuar a luta por direitos, independentemente de eles quererem ou não ouvir certas reivindicações na atualidade.  É necessário continuar em um ritmo firme com as mobilizações e com o exercício do direito de protestar para exigir respostas a um Estado que prefere olhar para o lado em uma problemática de grande alcance como é tratada aqui.

 Como Agustina Ramón Michel expressa: "Esta resposta obsoleta do Senado não é um fim, como nem o debate nos Deputados foi um começo. A mobilização pela descriminalização e legalização do aborto se remonta aos anos 60,e já ultrapassa em anos a outra grande luta feminista: o direito ao voto. A Lei de Voto das Mulheres, sancionada em 1947, também veio depois de uma longa e árdua jornada de mais de trinta anos, passando por negações, mentiras, violência e desiderato. A história é  mestre da paciência e da perseverança.

 Esta oportunidade que se foi, será seguida por outras que já estão chegando. Porque algo imenso está em curso na Argentina e uma recusa legislativa não pode impedi-lo. O Senado não pode cobrir as informações que todos nós sabemos agora, não refuta os argumentos que foram expostos nestes meses, não pode esconder os testemunhos que já foram dados, não pode colocar o aborto em um tronco de silêncio e vergonha. O debate já está instalado entre profissionais e profissionais de saúde. Os mais jovens já começaram sua jornada. O feminismo se tornou um estado de consciência para todas as mulheres. O aborto não é mais um tabu. A força do movimento pelo aborto, que é aberto, participativo, intergeracional e democrático, não se esgota em poucos votos a favor do status quo "(Ramón Michel, 2018)

 Devemos esclarecer que toda essa problemática na Argentina é de um calibre muito complexo e que deve continuar avançando ao mesmo tempo em que continua sua luta. Não só o suficiente com mobilizações sociais de grupos que parecem "iluminados" sobre o assunto. Deve também ser acompanhado por um debate inclusivo que inclua os setores sociais mais vulneráveis, que podem não ser capazes de compreender a profundidade da questão, por não ter acesso igual à educação que outras pessoas têm. Estas mobilizações, debates e informação inclusiva devem transcender as fronteiras dos grandes centros urbanos e posicionarem-se de maneira mais firmeme em algumas províncias do interior do país, muitas das quais se encontram em situação de muito maior vulnerabilidade em relação a esses centros e onde problemas como este ainda segue sendo um tabú, ou onde a Igreja Católica é a única voz autoritária.

 Não se trata de impor uma idéia, de tornar uma convicção pessoal algo genérico,sobre o que se trata é de informar,explicar qual é o direito pelo qual está lutando, qual é a realidade que milhares de mulheres e grávidas sofrem todos os dias, para explicar que isso é algo que transcende classes sociais e fronteiras entre províncias,se trata de  um direito que deve ser igual para todos independentemente da raça, religião ou cor.

 E para tudo isso, é necessária inclusão, tolerância e dedicação da parte dos grupos ativistas neste sentido.

                    CONCLUSÕES

Este artigo é uma introdução para discutir como esta luta pode ser continuada a partir de diferentes áreas, que não são mutuamente exclusivas, embora alguns queiram nos fazer acreditar o contrário.

Este ano pode não ter aprovado a lei, mas isso não impede a luta. Não será lei, mas é um direito constitucional, é lamentável que tenhamos que tomar outros caminhos, como o judicial (melhor estilo americano), mas à urgência, as conseqüências da decisão tomada pelo Senado nos levam a tomar medidas desta natureza, porque a decisão do Senado é importante, porque estão em jogo direitos pessoais importantíssimos de pessoas, e porque é uma questão de Saúde Pública e porque, como raramente acontece, podemos mudar um pouco a situação atual e começar a pensar em um futuro diferente.

        Bibliografia

Bergallo, Paola (2011), Mudança Constitucional, Reprodução e Direitos, em “La Constitución em 2020”, Roberto Gargarella Coord. 2011. Ed. SigloVeintiuno. Buenos Aires.

Gargarella Roberto (2004) Crítica da Constituição: suas áreas escuras. Ed. Capital Intelectual. Buenos Aires

(2006) Carta Aberta sobre intolerância. Ed. SigloVeintiuno. Buenos Aires

(2011) A Constituição em 2020: 48 propostas para uma sociedade igualitária. Ed. Century

Vinte e um. Buenos Aires

Linares, Sebastián e Martí, José Luis (2018) Aborto: A proposta de um referendo., Clarín. Buenos Aires

Ramon Michel, Agustina (2018) O aborto já é socialmente descriminalizado no Clarín. Buenos Aires

Von Ihering, Rudolf (1872) A luta pela Lei Ed. Fabian diPlacid, 1998. Buenos Aires

Zayat, Demian (2011) Mecanismos de Participação dos Cidadãos, em "A Constituição em 2020",

Roberto Gargarella Coord. 2011. Ed. SigloVeintiuno. Buenos Aires

ZuñigaFajuri, Alejandra (2013) Direitos Humanos ao Direito ao Aborto, na Revista Doxa, Buenos Aires

*Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.

Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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