A legalização do aborto como um direito humano (Tradução)

03/07/2019 às 10:39
Leia nesta página:

Tradução do artigo “El aborto legal como un derecho humano” de autoria de Dora Barrancos, de língua espanhola para portuguesa.Link do texto original: https://www.lanacion.com.ar/opinion/el- aborto-legal-como-un-derecho-humano-nid2125402

A legalização do aborto como um direito humano

*tradução por Matheus Maciel 

Mulheres de todos os lugares, de todas as condições e de todas crenças já experimentaram métodos  abortivos para interromper uma a gravidez indesejada. Se trata de uma  vontade do corpo que é exclusivamente de responsabilidade das próprias mulheres, embora os constrangimentos que muitas sofreram sejam habituais, obrigando-as a levar adiante uma gravidez indesejadas e forçadas a dar a luz.

Nosso Direito [Direito Argentino – Nota do Tradutor], como o  de quase todas as sociedades ocidentais, tipificou-se como crime o aborto, embora no nosso caso, ao contrário de outros países latino-americanos, alguns aspectos divergentes da moralidade religiosa fossem contemplados. A reforma que deu origem ao art. 86 da Lei 23077 descriminalizou o aborto para os casos em que havia risco com objetivo de "evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe" e "se a gravidez vem de um estupro ou um atentado cometido a uma mulher com problemas mentais”, apesar de algumas hesitações sobre a interpretação da norma, desde a decisão do Supremo Tribunal Federal [Argentino N.T.] (2012) a interpretação de que o aborto não é punível quando a gravidez é o produto de uma violação foi firmemente estabelecida.

 Contra o Direito Penal e contra a doutrina da Igreja, as mulheres argentinas decidiram abortar para acabar com o sofrimento de não poder assumir o que lhes foi imposto como fatalidade, como tributo que tiveram que pagar por terem relações sexuais. Surgiram idéias contraditórias sobre a "natureza" das mulheres no século XIX, já que boa parte do pensamento médico e psiquiátrico acreditava que elas tinham apenas sensibilidade sexual, enquanto outra parte da literatura alertava sobre as formas carnívoras que sua sexualidade descontrolada poderia adotar.

Um conjunto complexo de valores e novos sentimentos levou as mulheres a não aceitarem se comportar como máquinas de parir. Entre as novas sensibilidades não está só o desejo de mais autonomia, mas também o desejo de escapar da dor insensata da mortalidade das crianças pequenas e a idéia de que os filhos vivessem melhor. Embora muitas mulheres tenham vivido sua sexualidade com maior liberdade, foi graças à enorme renovação do pensamento feminista na segunda metade do século passado que o desejo sexual das mulheres foi reivindicado como um direito fundamental.

 É essencial admitir que em nossa sociedade o aborto obteve longa legitimidade, como um contra-espelho à ilegalidade, porque não é possível considerar a chamada "transição demográfica" sem a interrupção voluntária da gravidez a partir do final do século XIX.

 Como é possível obter uma curva descendente da taxa de natalidade em nosso país sem pensar em intervenções abortivas? Pense na falibilidade de todos os métodos contraceptivos, começando com o intercurso "interruptus", a técnica mais usada durante a maior parte do século XX e responsável por um grande número de gravidez.

Sendo assim, desde o início do século passado, diante da ineficácia dos métodos contraceptivos, as mulheres optaram por interromper gravidezes problemáticas, e essa revolução silenciosa assegurou a fórmula média de não mais de dois filhos. Não há como responder que a nossa sociedade emprestou uma legitimidade complacente às decisões silenciosas das mulheres que as levaram às parteiras e obstetras e depois aos ginecologistas profissionais, embora talvez na maioria dos casos lhes faltasse a ajuda destas terapêuticas higienicas.

Não podemos deixar de advertir o comportamento dos tribunais judiciais que mantiveram uma espécie de "cone de reserva", como evidenciado por nossa jurisprudência,o que poderia ser visto como uma espécie de prudência jurídica. Essa circunstância manifestou-se de maneira particular em relação ao "segredo profissional" na conhecida "Natividad Frías", decisão da sessão plenária da Câmara Nacional de Apelações Penais e Correcionais da Capital Federal de agosto de 1966. Porém, também houve falhas draconianas às decisões  orientadas pela sentença na chave da modelagem penal.

 O certo é que além do impedimento legal e da condenação eclesiástica foi levantado um mundo de transgressões, mas uma autêntica diferença de classes divide-se às mulheres entre as quais podem abortar com todas as garantias e as que não têm mais remédio e que correm o risco de morrer durante um aborto. É ameaçador concordar com o resultado homicida produzido por essa diferença. Não podemos deixar de pensar que há uma forma silenciosa e não menos aberrante da pena de morte: aquela sofrida por mulheres sem recursos devido a um aborto.

 Todos os países católicos da Europa legalizaram o aborto removendo seu estigma de crime enquanto nossos países latino-americanos - exceto Cuba, a Cidade do México e o Uruguai - atrasam a descriminalização. A grande maioria dos que se opõem à interrupção voluntária da gravidez o fazem em termos religiosos e brandem o direito à vida. Na era da clonagem, a vida não tem desperdício, pois sabemos que ela pode ser reproduzida mesmo com poucas células. Eu estou entre aquelas que defendem o aborto legal, enfatizando o direito ao gozo sexual, separando-o da reprodução e tenho a prerrogativa do aborto de igualar as condições do exercício da sexualidade diferencial entre homens e mulheres. O sexo não engravida os homens - a menos que sejam anatomicamente no caso de pessoas transexuais - ou transforma radicalmente a vida. Mas a gravidez muda a vida de qualquer mulher e a altera desde o momento da relação sexual, porque basta estar na experiência de cada mulher em idade fértil para entender que o ato sexual não pode ser liberado da sombra da gravidez, embora todas as precauções sejam tomadas "responsavelmente".

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

 Uma noção elementar de soberania, característica das modernas sociedades democráticas e encontrada na própria base da idéia do indivíduo, deve ser baseada na capacidade de decidir sobre nossos corpos; É a sociedade que deve concordar com este princípio do "direito ao corpo", porque se não o fizer, é certamente menos democrático.

 Finalmente, se é dificil reconhecer a legalidade do aborto como uma contribuição fundamental para a vida dos menos protegidos e dos mais pobres, aqueles que sofrem restrições e quase certamente são menos autônomos, eu o faço mais enfaticamente em nome dos direitos fundamentais das mulheres. A gravidez é uma contingência, não pode ser uma fatalidade. Legalizar o aborto é um passo transcendental para obter uma sociedade mais igualitária, mais democrática e, finalmente, mais humana. Sim, estamos de acordo, trata-se de defender a vida, a "vida digna de ser vivida".

*Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.

Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos