O homicídio doloso perpetrado pelo marido, convivente, namorado e amasiado , em face da sua mulher, por motivo de ciúme, atrai por si só, a figura do feminicídio?

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08/07/2019 às 11:30
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UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL

Para unificar as posições divergentes demandará muito tempo, ainda mais com a prevalência em nossa doutrina do garantismo penal condoreiro monopolar. Facilmente podemos prever que em pouco tempo será dominante a tese do “feminicídio privilegiado”.

O chamado garantismo penal condoreiro monopolar, ou seja, doutrina que patrocina uma proteção exagerada e desproporcional ao réu na relação penal processual, e que hoje contamina grande parte da doutrina brasileira, logo fará a apressada filiação do feminicídio privilegiado, causando o usual fenômeno da violação ao princípio da proteção penal deficiente.

Cleber Masson, em citação à lição de Paulo de Queiroz, assinala:

Convém notar, todavia, que o princípio da proporcionalidade compreende, além da proibição do excesso, a proibição de insuficiência da intervenção jurídico-penal. Significa dizer que, se, por um lado, deve ser combatida a sanção desproporcional porque excessiva, por outro lado, cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofensividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se para mais quanto para menos.[5]

No Brasil, além de não dispormos de um potencial legislativo eficaz para combater a ascendente criminalidade, temos que conviver com os exageros garantistas, como bem anotam Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna:

O exagero garantista, no sentido de que a “defesa tudo pode”, é tão gritante que chega a ponto de ensejar decisões inacreditáveis, que acabam fomentando comportamentos maliciosos, criminosos e desonestos dos réus no processo penal, desde que não venham a atingir os interesses de particulares, em uma visão individualista e – data venia – ultrapassada de um processo penal verdadeiramente democrático e garantista.[6]

Prevendo o que pode ocorrer em um futuro breve, a única solução plausível para que matar mulher por razões de gênero não seja um fato fomentador de privilégio, defendo que o feminicídio deve ser retirado da qualificadora do homicídio e se tornar um crime autônomo com pena igual a do latrocínio, a saber:

Crime de feminicídio

Art. 121-A. Matar mulher motivado por razões da condição de sexo feminino:

Pena – reclusão, de vinte a trinta anos.

§1.º Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

 I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Revogam-se o inciso VI e o § 2.º-A do artigo 121 do Código Penal” (BARROS, 2019, p. 1).

De qualquer modo, fazemos as ressalvas de não estarmos totalmente convencidos de ser possível, compatibilizar qualificadora de feminicídio em relação ao privilégio, pela singularidade em si da matéria, máxime por estarmos inclinados de que a qualificadora de feminicídio seria de índole subjetiva[9] – e não objetiva, “datíssima máxima vênia” como a maioria da doutrina tem pregado, e, o STJ chancelado.


Das considerações finais

Caminhando para o desfecho, entendemos que o marido, convivente, namorado e amasiado que mata dolosamente (ou tenta matar) a esposa por ciúme, pratica necessariamente um feminicídio, mormente quando se visualiza à dicção do art. 5º e art. 7º, ambos da Lei Maria da Penha.

Por fim, encerramos com as ressalvas de que não estamos totalmente convencidos de ser possível, compatibilizar qualificadora de feminicídio em relação ao privilégio, pela singularidade em si da matéria, máxime por estarmos inclinados de que a qualificadora de feminicídio seria de natureza subjetiva – e não objetiva, como, a maioria da doutrina e o STJ têm firmado posicionamento, lembrando que para corrente que defender a qualificadora do feminicídio ser de ordem objetiva, estará dizendo que juridicamente é possível a existência de um feminicídio privilegiado. Obviamente, de outro lado, quem comungar do nosso entendimento, onde a qualificadora do feminicídio seja reputada de ordem subjetiva, estará dizendo juridicamente que não é possível a existência de um feminicídio privilegiado, pela incompatibilidade.


Referências bibliográficas:

BARROS, Francisco Dirceu.Feminicídio  Privilegiado:   O  Privilégio  de  Matar  Mulheres.Publicado em 05.abr.2019 no site GenJurídico.com.br. Disponível em<<http://genjuridico.com.br/2019/04/05/feminicidio-privilegiado-o-privilegio-de-matar-mulheres/>>. Acesso em 07 de julho de 2019.

CUNHA, Rogério Sanches. STJ: Qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva. Publicado no Meusitejuridico.com. Disponível em:<<https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2018/04/05/stj-qualificadora-feminicidio-tem-natureza-objetiva/>>. Acesso em 07 de julho de 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume 2. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 46/47.

STJ - AgRg no AREsp 363.919/PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 13/05/2014, DJe 21/05/2014.

STJ - REsp 1.707.113/MG, de Relatoria do Ministro Felix Fischer, publicado no dia 7.12.2017.

STJ. Habeas Corpus nº 430.222/MG, julgado em 15/03/2018.

STJ. 6ª Turma. HC 433.898-RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 24/04/2018.

TJDFT. Acórdão n.904781, 20150310069727RSE, Relator: GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 29/10/2015, Publicado no DJE: 11/11/2015. Pág.: 105.

TJ-RO - APL: 00003355920168220005 RO 0000335-59.2016.822.0005, Relator: Desembargador Valdeci CastellarCiton, Data de Julgamento: 09/11/2016, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: Processo publicado no Diário Oficial em 17/11/2016.


Notas

[1] Quanto ao ciúme, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça diz que: “O sentimento de ciúme pode tanto inserir-se na qualificadora do inciso I ou II do parágrafo 2º , ou mesmo no privilégio do parágrafo primeiro, ambos do art. 121 do CP, análise feita concretamente, caso a caso” (STJ - AgRg no AREsp 363.919/PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 13/05/2014, DJe 21/05/2014).

[2]Homicídio simples

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

(...)

§ 2º Se o homicídio é cometido:

Feminicídio

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

(...)

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

[3] O festejado penalista, Guilherme de Souza Nucci, enfrentando o feminicídio pontua que se trata de “uma qualificadora objetiva, pois se ligaao gênero da vítima: ser mulher”, advertindo que “o agente não mata a mulher somente porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, por motivos variados que podem ser torpes ou fúteis; podem, inclusive, ser moralmente relevantes’, não se descartando, ‘por óbvio, a possibilidade de o homem matar a mulher por questões de misoginia ou violência doméstica; mesmo assim, a violência doméstica e a misoginia proporcionam aos homens o prazer de espancar e matar a mulher, porque esta é fisicamente mais fraca’, tratando-se de ‘violência de gênero, o que nos parece objetivo, e não subjetivo” (NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume 2. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 46/47).

[4]No julgamento do Habeas Corpus nº 430.222/MG, julgado em 15/03/2018, a Corte de Cidadania negou a ordem de soltura sob – dentre outros – o argumento de que as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio não são incompatíveis porque não têm a mesma natureza: enquanto a primeira é subjetiva, esta última (feminicídio) é dotada de caráter objetiva.

[5] QUALIFICADORA – FEMINICÍDIO – NATUREZA OBJETIVA (TJDFT) 1 Réu pronunciado por infringir o artigo 121, § 2º, inciso I, do Código Penal, depois de matar a companheira a facadas motivado pelo sentimento egoístico de posse. 2 Os protagonistas da tragédia familiar conviveram sob o mesmo teto, em união estável, mas o varão nutria sentimento egoístico de posse e, impelido por essa torpe motivação, não queria que ela trabalhasse num local frequentado por homens. A inclusão da qualificadora agora prevista no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, não poderá servir apenas como substitutivo das qualificadoras de motivo torpe ou fútil, que são de natureza subjetiva, sob pena de menosprezar o esforço do legislador. A Lei 13.104/2015 veio a lume na esteira da doutrina inspiradora da Lei Maria da Penha, buscando conferir maior proteção à mulher brasileira, vítima de condições culturais atávicas que lhe impuseram a subserviência ao homem. Resgatar a dignidade perdida ao longo da história da dominação masculina foi a ratioessendi da nova lei, e o seu sentido teleológico estaria perdido se fosse simplesmente substituída a torpeza pelo feminicídio. Ambas as qualificadoras podem coexistir perfeitamente, porque é diversa a natureza de cada uma: a torpeza continua ligada umbilicalmente à motivação da ação homicida, e o feminicídio ocorrerá toda vez que, objetivamente, haja uma agressão à mulher proveniente de convivência doméstica familiar. (TJDFT. Acórdão n.904781, 20150310069727RSE, Relator: GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 29/10/2015, Publicado no DJE: 11/11/2015. Pág.: 105).

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[6] Apelação criminal. Feminicídio. Tentativa. Nulidade do julgamento. Exclusão das qualificadoras. Motivo fútil. Recurso que dificultou a defesa da vítima. Impossibilidade. Soberania do júri. Dosimetria. Discricionariedade do juiz. Exasperação justificada. Descabe a exclusão da qualificadora de motivo fútil quando comprovado nos autos que o crime de feminicídio foi motivado por ciúmes e pela intenção da vítima de romper o relacionamento conjugal. Caracteriza a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima o ato de o agente surpreendê-la, em meio a uma discussão rotineira, e perseguí-la, reduzindo sua capacidade de defesa ao imobilizá-la aproveitando-se de sua superioridade física. Não há que se falar em decisão manifestamente contrária à prova dos autos quando existente versão coerente e consentânea com os meios de provas existentes nos autos. É lícita a fixação da pena acima do mínimo legal quando fundada na correta valoração das circunstâncias judiciais, com fundamento concreto em elementos observados nos autos e uso de uma das qualificadoras para aumento da pena-base, tendo o Juízo a quo apontado clara e precisamente os motivos para a escolha do patamar fixado, conforme lhe permite a discricionariedade. (Apelação, Processo nº 0000335- 59.2016.822.0005, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, 2ª Câmara Criminal, Relator (a) do Acórdão: Des. Valdeci CastellarCiton, Data de julgamento: 09/11/2016)(TJ-RO - APL: 00003355920168220005 RO 0000335-59.2016.822.0005, Relator: Desembargador Valdeci CastellarCiton, Data de Julgamento: 09/11/2016, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: Processo publicado no Diário Oficial em 17/11/2016).

[7]Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)

- no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

[8]CAPÍTULO II

DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: 

- a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; 

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018) 

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

- a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. 

[9]Lembrando que o feminicídio é homicídio cometido por motivações relacionadas, obviamente, à condição de mulher (sexo feminino), não existindo em nosso sentir, liame com os meios ou modos de execução do crime. Outrossim, a violência doméstica, familiar e também o próprio menosprezo ou discriminação à condição de mulher são ingredientes contidos na legislação para ocorrer o feminicídio, não consistem em formas de execução do crime, mas propriamente a real motivação delitiva. Logo, o feminicídio nessa linha de raciocínio, é uma qualificadora de ordem subjetiva.

Sobre o autor
Joaquim Júnior Leitão

Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente lotado no Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (GAECO). Graduado pela Centro de Ensino Superior de Jataí-GO (CESUT). Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Assessor Institucional da Polícia Civil de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colaborador do site jurídico Justiça e Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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