MEDIDA PROVISÓRIA 881: UMA ABERRAÇÃO JURÍDICA

08/07/2019 às 17:10
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A RECENTE MEDIDA PROVISÓRIA 881, TRAZENDO À COLAÇÃO A DISCUSSÃO DOUTRINÁRIA.

MEDIDA PROVISÓRIA 881: UMA ABERRAÇÃO JURÍDICA

Rogério Tadeu Romano

A medida provisória 881/2019 está cheia de inconstitucionalidades.

Ela vem fruto de um ímpeto imperial do Poder Executivo que se coloca como acima do Poder Legislativo na tarefa de alterar o arcabouço legal que vai do direito privado ao direito trabalhista e passa pelo direito administrativo.

Assume um papel de lei interpretativa a MP 881, algo que só pode ser dado a lei formal e material egressa do Parlamento.

Preceitua o §1º, do artigo 1º, da MP nº 881/2019 que “o disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente”. Pretendeu-se, com a MP nº 881/2019, balizar critérios interpretativos para vários ramos relevantes do Direito. A inconstitucionalidade é patente, pois pretende-se, por via de uma medida provisória, pautar interpretação restritiva de dispositivos constitucionais.

Para o Professor Paulo Lôbo(Inconstitucionalidades da MP da liberdade econômica e do direito civil), “os artigos do Código Civil alterados pela MP 881/2019, nesse longo período, foram objeto de estudos doutrinários e de laboriosa aplicação pelos tribunais, sem jamais terem sido obstáculos à liberdade econômica ou ao exercício da atividade econômica. Ao contrário do que subjaz a inspiração da MP 881, as normas originárias do Código Civil estão em conformidade com os princípios jurídicos fundamentais da atividade econômica estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal e do modelo de Estado Social, por esta adotado e inaugurado no Brasil desde a Constituição de 1934”.

Prosseguiu ainda, naquele artigo, Paulo Lôbo por aduzir:

“Em 30 de abril, foi editada a MP 881, ora em tramitação no Congresso Nacional, pretendendo regular o que se denominou de "liberdade econômica". Vários estudos vieram a lume, inclusive neste site. Atenho-me à análise de suas inconstitucionalidades formais e materiais, em relação às normas do Código Civil, que foram por elas alteradas ou acrescentadas.
Sobre inconstitucionalidade formal:

O parágrafo 1º, I, b, do artigo 62 da Constituição Federal não inclui explicitamente, entre as vedações de edição de medida provisória, matéria relativa a Direito Civil. Porém, decorre do sistema constitucional nela adotado, pois:

a) não pode configurar urgência, requisito determinado no caput do artigo 62, pois o Código Civil foi sancionado em 2002, com suspensão de vigência de um ano, estando em vigor há mais de 16 anos. Os artigos do Código Civil alterados pela MP 881/2019, nesse longo período, foram objeto de estudos doutrinários e de laboriosa aplicação pelos tribunais, sem jamais terem sido obstáculos à liberdade econômica ou ao exercício da atividade econômica. Ao contrário do que subjaz na inspiração da MP 881, as normas originárias do Código Civil estão em conformidade com os princípios jurídicos fundamentais da atividade econômica estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal e do modelo de Estado social, por esta adotado e inaugurado no Brasil desde a Constituição de 1934;

b) o processo legislativo para aprovação de código é diferenciado e mais complexo que o exigível para as leis ordinárias, inclusive as que resultem de conversão de medidas provisórias. O parágrafo 4º do artigo 64 da Constituição Federal exclui os projetos de código da solicitação de urgência pelo presidente da República, diferentemente dos demais projetos de sua iniciativa, não podendo sobrestar as demais deliberações legislativas da respectiva Casa. Assim é porque o projeto de código, máxime de um Código Civil, repercute na vida cotidiana permanente das pessoas e não pode confundir-se com proposições que envolvem resultados almejados por políticas públicas que são, por sua natureza, contingentes. O atual Código Civil brasileiro tramitou durante 27 anos no Congresso Nacional, e o anterior demandou mais de década e meia de discussões congressuais. Sua alteração, portanto, apenas pode ser efetuada mediante processo legislativo de projeto de lei ordinária, sem caráter de urgência.

Sobre inconstitucionalidade material em geral:

A livre-iniciativa, na Constituição de 1988, configura um dos fundamentos ou uma das premissas do modelo de economia de mercado regulado, mantido e estruturado pelo poder constituinte. Não é norma constitucional. Não é princípio jurídico-constitucional fundamental, como o considera a MP 881. O princípio jurídico fundamental é o dos “valores sociais da livre-iniciativa”, prescrito no inciso IV do artigo 1º da Constituição. Se a livre-iniciativa fosse princípio jurídico fundamental, então nenhuma lei que regulasse determinada atividade econômica poderia ser considerada constitucional.

Essa precisa distinção entre o que é fundamento ou diretriz e o princípio fundamental encontra-se no voto condutor da ADI 319-4, proferido pelo relator ministro Moreira Alves, cujo julgamento ocorreu em 3/3/1993. Decidiu-se pela constitucionalidade da Lei 8.039/1990, que dispunha sobre critérios de reajuste de mensalidades escolares. Do acórdão, publicado no DJ de 30/4/1993, extrai-se o seguinte enunciado:

“Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa a ao aumento arbitrário dos lucros”.

O voto condutor do relator esclarece a distinção, ao dizer que, ao contrário da Constituição anterior, a Constituição atual passou a ter a livre-iniciativa “como um dos dois fundamentos dessa mesma ordem econômica”, dando “maior ênfase às suas limitação em favor da justiça social”, instituindo como princípio fundamental “não a livre-iniciativa da economia liberal clássica, mas os valores sociais da livre-iniciativa”.

Sobre inconstitucionalidades materiais específicas:

a) A “declaração de direitos de liberdade econômica” (artigos 3º e seguintes da MP 881) tem por fito elevar a livre-iniciativa (“liberdade econômica”) a princípio fundamental, em colisão com a natureza que a esta é atribuída pela Constituição. A partir dessa equivocada premissa, estrutura verdadeira camisa de força ao Poder Judiciário, que deverá ser nela contido “na aplicação e interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas” (artigo 1º, parágrafo 1º).

A alusão constante na MP 881 à intervenção mínima e excepcional do Estado, “por qualquer dos seus Poderes” (exemplo, parágrafo único acrescentado ao artigo 421 do Código Civil) tem por alvo, não explicitado, o Poder Judiciário, pois é este o competente pela interpretação e aplicação das normas jurídicas incidentes nas relação econômica privadas. Não cabe ao Poder Executivo ou ao Poder legislativo tal mister.

Note-se que o caput do artigo 3º da MP 881 indica como fundamento da “declaração” o parágrafo único do artigo 170 da Constituição, excluindo propositadamente o caput deste artigo, pois com este ela é incompatível, dado a que desconsidera seus explícitos princípios jurídicos, incluindo os da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente e da redução das desigualdades. O parágrafo único do artigo 170 não pode ser lido e interpretado com ignorância do que disposto no caput, como se este não existisse e no qual a livre iniciativa comparece como um dos fundamentos da ordem econômica, mas que deve observar os ditames da justiça social e os princípios que enuncia. O parágrafo único do artigo 170 integra o todo deste, e tem por finalidade esclarecer que o exercício da atividade econômica, salvo os casos previstos em lei, não depende de autorização de órgãos públicos, como ocorria com o Estado absolutista, na primeira fase do Estado moderno.

b) A MP 881 acrescenta ao artigo 421 do Código Civil, que estabelece que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social, as expressões “observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. A função social do contrato é consequência indeclinável do princípio constitucional da função social da propriedade (CF, artigo 170, III) e dos ditames da justiça social (CF, artigo 170, caput), pois o contrato é o instrumento de circulação da propriedade, inclusive no exercício da atividade econômica. A submissão à “Declaração” tem por finalidade excluir do dever jurídico de observância da função social os contratos utilizados no exercício da atividade econômica, não apenas os interempresariais, mas também os utilizados com os consumidores. Em outras palavras, pretende a MP 881 excluir da observância da função social esses contratos, o que colide com os princípios constitucionais regentes da atividade econômica.”

Ademais, onde está a urgência, um dos requisitos para tal edição, na MP referenciada?

O artigo 64, §4º, da Constituição Federal, exclui os projetos de código da solicitação de urgência pelo Presidente da República. Isso porque é inegável que um projeto de código repercute na vida cotidiana das pessoas “e não pode confundir-se com proposições que envolvem resultados almejados por políticas públicas que são, por sua natureza, contingentes.

O Código Civil brasileiro tramitou por quase três décadas em discussão nas casas legislativas e na comunidade jurídica para ser sancionado e entrar em vigência um ano depois. Para que tanta pressa?

Não será o Poder Executivo, por medida provisória, quem dirá, em tão pouco tempo, o que os Códigos brasileiros já versam a matéria em absoluta consonância com a Constituição.
Colocou-se, pois, o presidente da República acima da cidadania e das casas legislativas ao editar, de forma apressada, tão grave documento normativo.

A MP 881 é um golpe de morte no Estado Social e um atestado de subserviência ao liberalismo, que não foi o único caminho escolhido pela Constituição de 1988, constituição-cidadã que albergou o Estado social no Brasil. Tudo isso ao se fazer uma leitura semiótica própria do que seria a Constituição, que para os redatores das MP 881 parece voltada à Escola de Chicago.
Há um agressivo acinte ao princípio da separação de poderes, ademais.

Ao afrontar ao princípio da separação de poderes, núcleo albergado pelas Constituições liberais, a MP 881 afronta a Constituição.

O dogma da separação dos poderes foi positivado no célebre artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem, contida na Constituição Francesa de 3 de setembro de 1791, que assim rezava: “Toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação dos poderes não possui constituição”. Esse princípio, nas origens de sua reformulação foi, talvez, o mais sedutor, no que magnetizou os construtores da liberdade contemporânea e serviu de inspiração e paradigma a todos os textos de Lei Fundamental, como garantia suprema contra as invasões do arbítrio nas esferas de liberdade política. No Brasil, o princípio da separação dos poderes foi albergado pelo artigo 2º da Constituição Federal de 1988.

Editada sem a promoção de diálogo com a sociedade, o que atrai per si a falta de responsabilidade com os impactos no plano da facticidade, representa um menoscabo ao Poder Legislativo, notadamente pela sua extensão.

Preceitua o §1º, do artigo 1º, da MP nº 881/2019 que “o disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente”. Pretendeu-se, com a MP nº 881/2019, balizar critérios interpretativos para vários ramos relevantes do Direito. A inconstitucionalidade é patente, pois pretende-se, por via de uma medida provisória, pautar interpretação restritiva de dispositivos constitucionais. Inclusive, estabelecer parâmetros hermenêuticos para o Poder Judiciário, com a intenção de transformar o juiz na bouche de um simplório decreto, e não na bouche de la loi, em uma total afronta aos comandos vertidos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, notadamente no artigo 5º.

Para o  desembargador federal aposentado e ilustre jurista, professor Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti(Da (in)constitucionalidade da medida provisória 881: análise jurídica da “declaração de direitos de liberdade econômica e do estabelecimento de garantias de livre concorrência e da análise do impacto regulatório”. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, [S.1], v. 90, n. 2, 2019), todos os  relevantes ramos, ou campos do direito ventilados no §1º, do art.1º, da MP nº 881/2019, foram profundamente constitucionalizados com a Constituição Federal de 1988. “Ela é o referencial interpretativo e não um ato com força de lei, do chefe do Executivo. Tal pretensão de limitação interpretativa, fere, inclusive a autonomia dos Poderes. Imagine-se a Justiça do Trabalho, na aplicação daquele direito, ou a Justiça ordinária, em relação à proteção do consumidor ter a interpretação judicial tolhida por ato do Executivo. Aceitar-se tal modus operandi seria criar um perigoso e inconstitucional caminho de inversão da pirâmide jurídica, com interpretação das normas constitucionais por critérios fixados por norma de hierarquia bem inferior”.

A MP 881 ainda agrava a sua inconstitucionalidade ao indicar ao Judiciário parâmetros de intepretação em direito civil, matéria destinada ao Congresso Nacional, obedecida a Constituição:
A nova redação atribuída ao artigo 423 do Código Civil e os acrescentados artigos 480-A e 480-B do Código Civil vão na mesma direção de impedir a liberdade de formação do convencimento judicial para interpretação dos contratos. Para os negócios jurídicos na atividade econômica, incluindo os interempresariais, a MP 881 visa a qualificá-los como paritários (CC, artigo 480-B), para os quais deve prevalecer a “intervenção mínima do Estado”. Esses contratos, todavia, continuam sujeitos às regras gerais de interpretação contratual, notadamente as que têm fundamento na Constituição, que não podem ser derrogados por “parâmetros objetivos para interpretação” estipulados pelas partes (CC, artigo 480-A

A MP 881 não vem, como deveria vir, discutindo matéria atinente a normas especiais, mas tem a arrogância de pautar condutas que estão em normas gerais.

Como entender um dispositivo interpretativo que traz interpretação própria, própria de um legislador primário, a normas que revogam outras seja porque: são posteriores cronologicamente, tratam da mesma matéria, seja porque derrogam normas inferiores.

Ora, o Código Civil, em seu arcabouço, por via legislativa própria congressual, não pode ser alterado, de forma perene, por norma tendente a ser transitória. Onde está a urgência e a necessidade para tal?

Ademais, a MP nº 881/2019 revela um acinte ao princípio da autonomia dos entes federativos, uma vez que invade a competência dos demais entes, não se podendo rotular essa disciplina sob o manto genérico de “norma geral de direito econômico”, por não se enquadrar na previsão do artigo 24 da Constituição Federal de 1988. A União não pode impor sua política econômica aos demais componentes da República Federativa do Brasil.

Ora, o  artigo 2º da MP nº 881/2019, especificamente no inciso III, estabelece que a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas é um dos princípios que a norteiam a referida medida provisória. Diante do que fora exposto, resta clara a inconstitucionalidade ora propugnada, uma vez que a medida provisória intenta apequenar a atuação estatal, que não será mínima e excepcional quando existir relevante interesse coletivo. Alerta o Professor Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, no ponto, que “nem o art. 173, nem o art. 174 da CF/88 tem caráter tão restritivo como o pretendido pela MP aqui comentada”.

Advirta-se que Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de direito administrativo, 2004, pág. 641) ensinou  que há três possibilidades de intervenção do Estado na economia: através de seu poder de polícia; mediante incentivos à iniciativa privada, atuando como propulsor das atividades econômicas; e por meio de sua atuação como agente ativo no setor empresarial consoante as normas constitucionais.

Conforme o artigo 4º da MP nº 881/2019, é dever da administração pública e dos demais entes que se vinculam ao disposto na MP, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Medida Provisória versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: -criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; II -redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado; III -criar privilégio exclusivo para determinado segmento econômico, que não seja acessível aos demais segmentos; IV -exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado ;V -redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; VI -aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; VII -criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço, ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; VIII -introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas; e IX -restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei. Ora, mais uma vez a MP 881 avançou de forma errônea ao afrontar o artigo 173 da Constituição onde se dá o poder de regulamentação.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Vem a questão dos princípios constitucionais contratuais.

Aqui trago substancioso estudo de Flávio Tartuce, editado no site Migalhas:
“1. A alteração do art. 423 do Código Civil, relativo aos contratos de adesão
Art. 423 do Código Civil. Texto original. Art. 423 do Código Civil. Texto dado pela MP n. 881/2019.
"Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente." "Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente. Parágrafo único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida."

A norma trata dos contratos de adesão, aqueles em que o estipulante impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas opções: aceitá-lo ou não (take it or leave it). O contrato de adesão contrapõe-se aos contratos paritários ou negociados, figura no qual as cláusulas negociais são debatidas amplamente pelas partes. No primeiro caso, a liberdade contratual é mais limitada do que no segundo, o que justifica a intervenção legislativa.

Apesar da coincidência entre as figuras, na grande maioria dos casos práticos, o contrato de adesão não necessariamente será de consumo. Nesse sentido, o enunciado 171, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, a partir de uma proposta realizada por mim. Como é notório, nos termos dos arts. 2º e 3º da lei 8.078/90, o contrato de consumo é aquele em que o fornecedor ou prestador, que desenvolve atividade de forma profissional, fornece um produto ou presta um serviço a um destinatário final, fático e econômico, desse objeto do negócio. São exemplos de contratos de adesão que não se enquadram como negócios consumeristas, como regra geral: a franquia, a locação empresarial, a locação de espaços em "shopping center", a aquisição de imóveis por empresas para fins de investimentos, os empréstimos bancários empresariais, o seguro empresarial, o transporte de cargas para a entrega dos produtos da empresa, a representação comercial, a agência, a distribuição, entre outros contratos importantes para a realidade jurídica nacional.

O Código Civil de 2002 trouxe, como uma das suas principais inovações, a preocupação de tutela do aderente como vulnerável contratual, não importando a sua posição econômica frente ao estipulante. Além da interpretação que lhe é favorável, prevista no dispositivo em estudo, o art. 424 da codificação privada estabelece a nulidade absoluta de qualquer cláusula de renúncia prévia a direito que resulte da própria natureza do negócio jurídico celebrado.

Sobre a proposta de alteração do art. 423 do CC/02 pela medida provisória 881/19, é a que mais me agrada, tendo os seus elaboradores, nesse aspecto, preocupado-se com os pequenos e médios empresários, na linha do que motivou a sua elaboração. Isso, ao contrário do antes combatido art. 3º, inc. VIII, da MP, que veda a tais figuras alegar a violação a normas de ordem pública, mitigando a força obrigatória do contrato. Como destaquei no meu texto anterior, o último preceito deve ser retirado totalmente do texto quando da conversão em lei, até porque está em conflito com o que motiva a alteração que ora se estuda neste momento.

Pois bem, constata-se que, na sua redação original, a codificação privada estabelecia que, "quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente". O texto que consta da MP, no meu entender, amplia a interpretação mais favorável ao aderente, e contra o estipulante (interpretatio contra proferentem vel stipulatorem), ao preceituar que "quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente". Observe-se, pelas redações transcritas mais uma vez, que a interpretação mais favorável ao aderente não se dará apenas quando houver ambiguidade, mas em qualquer situação de dúvidas, muito além de contradição entre duas previsões, por exemplo. A norma terá incidência, por exemplo, quando a interpretação ou o silêncio de uma previsão contratual possa trazer soluções diferentes para o caso concreto. Seguindo a linha adotada pela codificação privada, em prol dos princípios da eticidade e da socialidade que o inspiraram, segundo Miguel Reale, merece elogios a proposta de alteração legislativa.

Quanto ao parágrafo único do art. 423 constante do texto da MP, tenho duas sugestões de novas redações a fazer. De início, ao invés da locução "nos contratos não atingidos pelo disposto no caput", seria interessante mencionar os contratos paritários, categoria muito bem definida pela doutrina e pela jurisprudência. Como segunda sugestão, também seria interessante, a fim de deixar claro o seu conteúdo, constar da parte final do comando que a análise da eventual imposição negocial seja cláusula a cláusula. Em suma, ficará esclarecido que, mesmo no contrato paritário, é possível a presença de cláusulas impostas, devendo essas, isoladamente, ser interpretadas de forma contrária a quem as elaborou. Em resumo, o dispositivo ficaria com a seguinte redação: "nos contratos paritários, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controversa, o que deve ser analisado cláusula a cláusula".

2. Inclusão dos arts. 480-A e 480-B no Código Civil

No que diz respeito a tais mudanças, no dispositivo que fecha o tratamento da teoria geral dos contratos no Código Civil de 2002, deixarei de montar a tabela comparativa, pois ambos os preceitos não têm correspondentes na lei então vigente. Cumpre, contudo, destacar, em comparação, que as normas inseridas estão no capítulo que trata da extinção dos contratos, na seção relativa à resolução por onerosidade excessiva. Essa seção é composta por três dispositivos.
O primeiro deles, o artigo art. 478, trata justamente do instituto que dá nome à seção, tendo como origem a teoria da imprevisão, que remonta à antiga cláusula rebus sic stantibus. Conforme o seu teor, nos contratos de execução continuada ou diferida, aqueles com cumprimento pendente no tempo, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. A norma ainda estabelece que os efeitos da sentença de resolução retroagem à data da citação. Tem-se entendido que o dispositivo trata não só da resolução, como também da revisão dos contratos civis. Nessa linha de conclusão, o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual".

Não se olvide, como destaquei no meu texto anterior, que a resolução ou mesmo a revisão de um contrato civil dificilmente ocorre na prática, diante da rigidez dos seus requisitos, merecendo destaque o fator imprevisibilidade, ou seja, a presença de um acontecimento imprevisível e extraordinário superveniente que gere a onerosidade excessiva. Em complemento, vale lembrar que o art. 330 do CPC/15, em seus §§ 2º e 3º, trouxe pressupostos adicionais para a revisão contratual, quais sejam: a) a verossimilhança das alegações, a ser comprovada pelo autor, geralmente por perícia contábil; b) a determinação das obrigações contratuais controversas e incontroversas; e c) o depósito referente às últimas; tudo isso sob pena de inépcia da petição inicial. Reitero que, na minha leitura, a revisão contratual de um contrato civil situa-se há tempos no campo da excepcionalidade.

Seguindo no estudo dos dispositivos da seção, o art. 479 do Código Civil traz a revisão do contrato por oferecimento do réu, dentro da ação de resolução, uma vez que essa poderá ser evitada, oferecendo ele a modificação equitativa das condições do negócio. Por fim, também tratando de revisão contratual – desde que preenchidos os requisitos anteriores –, o art. 480 estabelece que, "se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva". Tem-se interpretado majoritariamente o último comando no sentido de possibilitar a revisão de contratos unilaterais e onerosos, caso domútuo feneratício, do empréstimo de dinheiro a juros (art. 591 do Código Civil).

Observe-se que os comandos inseridos pela medida provisória n. 881 não têm relação direta com o último comando. De início, pelo art. 480-A, "nas relações interempresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual". O dispositivo traz como conteúdo o teor do Enunciado n. 23, aprovado na I Jornada de Direito Comercial, promovido pelo Conselho da Justiça Federal em março de 2013: "em contratos empresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual".

Como primeira ressalva dogmática a respeito dessa inserção, está ela mal colocada na codificação pela MP, devendo estar no art. 478 do Código Civil. No que concerne ao seu conteúdo, apresento duas objeções. Primeiro, pretende-se com o dispositivo – e também com o outro que será analisado – criar um microssistema próprio de revisão para os contratos empresariais dentro do Código Civil, o que não me parece correto do ponto de vista metodológico. Penso que isso deve ser feito eventualmente por meio de outro caminho legislativo, que não por medida provisória, com amplo e profundo debate no Congresso Nacional. Como segunda objeção a respeito do conteúdo, entendo que pode o julgador afastar tais parâmetros objetivos para a interpretação, revisão ou até resolução do negócio, pois vejo no art. 478 e em outros comandos da codificação a natureza de norma cogente ou de ordem pública.

Exatamente na mesma linha, as lições de Anderson Schreiber, para quem "a norma, como alguns outros acréscimos promovidos pela MP, representa inovação de pouca ou nenhuma utilidade prática: os contratantes sempre puderam, no exercício de sua autonomia privada, estabelecer parâmetros objetivos (ou subjetivos) para a interpretação dos requisitos de revisão ou resolução do contrato, nas relações interempresariais ou de qualquer outra natureza. Tal faculdade, já há muito reconhecida pela doutrina, não exclui a necessidade de um juízo concreto de merecimento de tutela para determinar, em cada caso, a compatibilidade dos parâmetros contratualmente estabelecidos com a ordem jurídica brasileira, atentando especialmente para a impossibilidade de afastamento do princípio do equilíbrio contratual. A fixação convencional de parâmetros para a interpretação dos requisitos instituídos em lei não pode, a toda evidência, conduzir à supressão dos referidos requisitos". Por essas razões técnicas, penso que, no trâmite no Congresso Nacional, o texto deve ser retirado.

A mesma conclusão vale para o art. 480-B do Código Civil, segundo o qual, "nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida". Trata-se de projeção de outros dois enunciados doutrinários. O primeiro deles foi aprovado I Jornada de Direito Comercial, o de número 25: "a revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, deve-se presumir a sofisticação dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles acordada". O outro, com redação muito próxima, da V Jornada de Direito Civil, é o de número 439: "A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, observar-se-á a sofisticação dos contratantes e a alocação de riscos por eles assumidas com o contrato".
Essa última previsão constante da medida provisória, exatamente como foi proposta, não tem qualquer relação com a resolução ou revisão contratual, justamente porque parece que foi suprimida a primeira parte constante dos enunciados doutrinários. Assim, deveria estar nos dispositivos iniciais da teoria geral dos contratos, possivelmente entre os arts. 421 e 423. Todavia, novamente quanto ao conteúdo, não concordo com o seu teor, novamente porque não vejo como viável construir um microcosmo legislativo próprio para os contratos empresariais na codificação privada, não havendo qualquer urgência que justifique o tratamento por MP. Além disso, o Código Civil não adota o modelo de simetria ou assimetria econômica como critério para interpretação, mas, sim, o debate ou não das cláusulas contratuais, protegendo o aderente, como antes exposto.

Por fim, destaco, mais uma vez, as lições de Anderson Schreiber, a quem me filio integralmente, pelas suas próprias razões:

"Já o art. 480-B prevê que 'nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida'. A norma é insólita. A simetria entre os contratantes é presumida em qualquer relação contratual, e não apenas em relações interempresariais. A caracterização da vulnerabilidade de um dos contratantes é que afasta tal presunção, sempre relativa. Também a parte final do dispositivo que determina seja observada a alocação de risco estabelecida pelos contratantes parece fora de lugar: tal alocação deve ser observada em qualquer espécie de relação contratual, e não apenas nas relações interempresariais. O novo artigo 480-B é ruim, pois, se interpretado a contrario sensu, poderia levar à conclusão de que, fora das relações interempresariais, a simetria não se presume e a alocação convencional de riscos deve ser ignorada, bem ao contrário do que deveria pretender uma assim chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Merece crítica, ademais, a tentativa de estabelecer, pela introdução de normas não constantes da redação original da codificação civil, uma espécie de microssistema das relações interempresariais, incompatível com um código que, ao revés, unificou as relações civis e empresariais, contemplando expressamente o direito de empresa".

Em resumo, concluo que, na conversão da MP, os arts. 480-A e 480-B devem ser suprimidos. Reafirmo que não há qualquer necessidade de trazer regras próprias para os contratos empresariais, quando doutrina e jurisprudência já encontram certa estabilidade, na interpretação do Código Civil de 2002, no sentido de afastar a intervenção nesses negócios, especialmente se assumirem a forma paritária.

Nesse sentido, o Enunciado n. 21 da própria I Jornada de Direito Comercial, com o qual concordo, após muito refletir: "nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais". No mesmo sentido, o Enunciado n. 29 do mesmo evento, do qual fui um dos proponentes: "aplicam-se aos negócios jurídicos entre empresários a função social do contrato e a boa-fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil), em conformidade com as especificidades dos contratos empresariais".

Da jurisprudência superior, com mesma posição, destaca-se acórdão que debateu a validade e eficácia da cláusula de duplicação do valor do aluguel no mês de dezembro em contrato de locação de espaço em "shopping center". Conforme o seu teor, “a discussão acerca da validade dessa cláusula centra-se na tensão entre os princípios da autonomia privada e da função social do contrato. De acordo com doutrina especializada, o princípio da autonomia privada corresponde ao poder reconhecido pela ordem jurídica aos particulares para dispor acerca dos seus interesses, notadamente os econômicos (autonomia negocial), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos efeitos. A autonomia privada, embora modernamente tenha cedido espaço para outros princípios (como a boa-fé e a função social do contrato), apresenta-se, ainda, como a pedra angular do sistema de direito privado, especialmente no plano do Direito Empresarial. O pressuposto imediato da autonomia privada é a liberdade como valor jurídico. Mediatamente, o personalismo ético aparece também como fundamento, com a concepção de que o indivíduo é o centro do ordenamento jurídico e de que sua vontade, livremente manifestada, deve ser resguardada como instrumento de realização de justiça. O princípio da autonomia privada concretiza-se, fundamentalmente, no direito contratual, por meio de uma tríplice dimensão: a liberdade contratual, a força obrigatória dos pactos e a relatividade dos contratos. A liberdade contratual representa o poder conferido às partes de escolher o negócio a ser celebrado, com quem contratar e o conteúdo das cláusulas contratuais. É a ampla faixa de autonomia conferida pelo ordenamento jurídico à manifestação de vontade dos contratantes” (STJ,REsp 1.409.849/PR, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26/04/2016, DJe05/05/2016). Ao final, a cláusula foi considerada válida, preservando-se a autonomia privada.

Como se observa – e destaquei isso no meu último texto –, os quinze anos de teoria e prática trouxeram certa estabilidade para a teoria geral dos contratos prevista no Código Civil de 2002, aplicando-se o seu teor com menos intervenção nos contratos empresariais. As propostas constantes dos arts. 480-A e 480-B já têm o seu reconhecimento por doutrina e jurisprudência, não havendo qualquer necessidade urgente de introdução por medida provisória, afastando-se do que consta do art. 62 da Constituição Federal. Reforço que tal introdução somente pode trazer mais dúvidas e instabilidades no momento, sendo o caminho correto para o seu debate o trâmite regular no Congresso Nacional.

3. Da inclusão do § 7º no art. 980-A no Código Civil
Mais uma vez não farei a análise confrontada por falta de previsão no texto original da codificação, que trata da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), incluída por força da lei 12.441/11. Na verdade, o parágrafo proposto pela MP para o art. 980-A traz como conteúdo, pelo menos em parte, o antigo § 4º, que acabou por ser vetado pela então Presidente da República. Conforme o texto da medida provisória, "somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude".
As razões anteriores do veto foram motivadas pelo fato de a norma supostamente limitar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da empresa individual, até porque não havia qualquer ressalva anterior, mesmo quanto à fraude. Conforme a mensagem de veto, "não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão 'em qualquer situação', que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio".
Quanto ao atual texto da MP, concordo com o seu conteúdo, com uma pequena ressalva e proposta. De fato, o patrimônio da EIRELI não se confunde com o patrimônio da única pessoa que a constitui. Todavia, a ressalva quanto à fraude deve ser ampliada, para que conste também a possibilidade de desconsideração da sua personalidade jurídica em qualquer outra hipótese prevista pela legislação. Proponho, nesse contexto, o seguinte texto para a conversão legislativa: "Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, prevista neste Código Civil e na legislação específica".

Em suma, é imperioso reconhecer a incidência da desconsideração da personalidade jurídica em qualquer hipótese prevista no art. 50 do Código Civil ou na legislação específica, caso do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Ambiental (art. 4º da lei 9.605/98). Segue-se, assim, o teor do Enunciado n. 470, aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, a saber: "O patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica".

Como palavras finais, registro aqui a crítica feita por Mário Luiz Delgado, que novamente pode afastar a necessidade urgente de o tema ser regulado por MP: "a inclusão desse parágrafo era desnecessária, eis que o § 6º já dispõe sobre a aplicação à EIRELI das regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio". O autor também defende a aplicação do art. 50 à EIRELI, mesmo com o texto da MP: "de qualquer forma, a absoluta separação patrimonial entre a empresa e o seu titular não afasta as hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil (ver Enunciado n. 470 da V Jornada de Direito Civil)" (DELGADO, Mario Luiz. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 668). As lições do jurista reforçam a minha proposta.

4. Da criação da sociedade limitada unipessoal (Art. 1.052, parágrafo único, do Código Civil)
Ainda sobre o Direito de Empresa, a MP inclui uma nova modalidade de sociedade limitada, tratada pelo art. 1.052, segundo o qual nessa pessoa jurídica a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. Conforme o novo parágrafo único, que não tem correspondente no texto então em vigor, "a sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social".
Cria-se, portanto, a sociedade limitada unipessoal, o que já era defendido por alguns juristas. Há uma crítica no sentido de que a inovação poderá esvaziar a EIRELI, então a única opção para a constituição de pessoas jurídicas formadas apenas por um sujeito. Chega-se a afirmar que o legislador criou um bis in idem societário.

Com o devido respeito a quem critica, não vejo assim. A nova modalidade de sociedade não cria qualquer problema, apenas valoriza a autonomia privada e representa mais uma saudável tentativa de redução de burocracias para a constituição de pessoas jurídicas no Brasil. Além disso, não vejo qualquer lesão à norma de ordem pública no texto proposto pela medida provisória. E mais, a sociedade limitada unipessoal não sofrerá restrições existentes para a EIRELI, como a exigência de capital social mínimo de 100 salários mínimos e de vedação de uma mesma pessoa intitular mais de uma pessoa jurídica dessa forma (art. 980-A, caput e § 1º, CC).
Somente proponho que a inovação seja introduzida em um parágrafo do art. 981, que trata das sociedades da seguinte forma: "celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados". Penso que esse seria o melhor enquadramento dessa nova categoria que surge.

5. Do tratamento dos fundos de investimento no livro de Direito das Coisas do Código Civil (Arts. 1.368-C a 1.368-E)
Como última categoria a ser analisada neste artigo, a MP n. 811/19 inclui tratamento do fundo de investimento nos novos arts. 1.368-C a 1.368-E, dentro do Livro de Direito das Coisas e do capítulo da propriedade fiduciária, in verbis:
"Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.
Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto nocaput".
"Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único do art. 1.368-C:
I – estabelecer a limitação da responsabilidade de cada condômino ao valor de suas cotas;
II – autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade.
Art. 1.368-E. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança".
Sem ter correspondente no texto anterior, não vislumbro problemas a respeito do conteúdo dos comandos em si, salvo outra anotação redacional, que proponho a seguir. Todavia, alguém que seja mais especialista do que eu pode detectar e apontar eventuais problemas objetivos nos textos legais.

Entretanto, não vejo como viável juridicamente tratar do assunto dentro do Código Civil, notadamente no capítulo de Direito das Coisas. Isso porque a codificação privada está toda fundada na ideia de que "coisa" é bem corpóreo ou material, sendo os fundos de investimento formados por bens incorpóreos ou imateriais. Nesse contexto de afirmação, penso que o instituto deveria ser tratado por lei especial. No mesmo sentido, merecem destaque as palavras de Marco Aurélio Bezerra de Melo, que também contesta a necessidade de urgência para o tratamento do tema por medida provisória:

"Por fim e não menos importante é o estranhamento desta matéria tão relevante para o interesse do país ser tratada por medida provisória sem os requisitos constitucionais, isto é, carente da explícita relevância e urgência a que se refere o artigo 62 da Constituição Federal e encartada com a sua natureza condominial no artigo que trata da propriedade fiduciária de modo genérico.
É verdade que o instituto possui traços de negócio fiduciário (trust) e a comunhão de investidores pode formar um condomínio, mas deveria ganhar corpo normativo por meio de uma lei especial, nos mesmos moldes da bem sucedida lei do fundo de investimento imobiliário (lei 8868/93), tomando-se como base este regramento e também a citada IN 555/14 da Comissão de Valores Mobiliários com as correções e novas tomadas de rumo que se fizerem necessárias durante o processo legislativo que, por certo, não prescindirá da oitiva da academia e dos operadores do Direito que tenham experiência prática e afinidade doutrinária com o tema.

A ideia de tratar do fundo de investimento de um modo geral por lei federal especial e conferir maior segurança jurídica ao investidor e aos administradores e gestores pode ser promissora no sentido de incremento à economia, com a geração de bens, renda e, por conseguinte, de empregos, mas é preciso que o texto da futura lei seja o resultado de rápidas, mas atentas reflexões que, por certo, trarão luzes sobre pontos não abordados nessa tentativa tímida de regulamentação.

Enfim, muito ainda há a se discutir acerca dessa temática junto ao Congresso Nacional durante a tramitação da medida provisória, sendo estas apenas as nossas primeiras impressões restritas ao texto posto".

Apesar da força das palavras, há uma sugestão no sentido de que os fundos de investimento sejam regulados como letras do art. 49 da Lei de Fundo de Capitais (lei4.728/1965). Fiz também algumas pequenas propostas de melhora dos textos, sem que isso atinja o conteúdo das disposições:
"Art. 49-A. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.
Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto nocaput deste artigo.”
“Art. 49-B. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único da norma anterior:
I – estabelecer a limitação da responsabilidade de cada comunheiro ao valor de suas cotas;
II – autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade.” (NR)
“Art. 49-C. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança".

Vejamos como o Congresso Nacional analisará esse tratamento, com grande relevância para os investimentos realizados no país. Como palavras derradeiras, ressalto que essas são as minhas impressões iniciais da medida provisória 881/19, sem prejuízo de novas reflexões que possam surgir de uma análise mais aprofundada do seu contento”.
Outras reflexões são feitas no direito econômico.

O inciso III do artigo 3º da MP nº 881/2019 que são direitos de toda pessoa natural ou jurídica “não ter restringida, por qualquer autoridade, sua liberdade de definir o preço de produtos e serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda no mercado não regulado, ressalvadas as situações de emergência ou de calamidade pública, quando assim declarada pela autoridade competente”. Para o Ministro Luís Roberto Barroso, admite-se apenas o controle de preços se for para garantir a livre iniciativa e a livre concorrência; epara reorganizar um mercado deteriorado, em que esses princípios não operem regularmente. A MP vai além.

Se não bastasse em coloca em situação grave hipossuficientes, grande parcela da população, sobretudo em função da possibilidade de serem utilizados experimentalmente, mediante pagamento, fundada a autorização em hipotética liberdade, muitas vezes mais fictícia que real. Imagine-se, por exemplo, adultos, ainda que alfabetizados, residentes em singelo distrito interiorano, poderiam ser instrumentos para esses experimentos”.

Já no primeiro artigo, a norma transitória determina sua aplicação nas relações trabalhistas e, portanto, se faz necessária uma análise quanto aos impactos da MP no Direito do Trabalho. De início, temos que o art. 3.º, II, d declara ser direito de toda pessoa desenvolver atividade econômica em qualquer horário e dia, observada a legislação trabalhista.

Quanto a esse ponto, destacamos a importância de se observar o império das Convenções ou dos Acordos Coletivos de Trabalho que, no norte do art. 611-A da CLT, criou a já famosa expressão “acordado sobre o legislado”. Isso porque determinadas categorias profissionais delimitam a jornada de trabalho a determinados dias e horários, e isso deve ser acatado.

Isso quer dizer que a MP, e muito menos portaria a ela editada, pode circunscrever trabalho nos fins de semana e feriados fora do que foi descrito na legislação trabalhista onde se coloca a importância do convencionado.

Não obstante ser competência da União legislar sobre Direito do Trabalho, na esteira do art. 22, I da Constituição Federal, o STF firmou entendimento, na Súmula Vinculante n.º 38 de que “é competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”. Com isso, parece-nos haver severa inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, o que pode ser questionado por meio de Reclamação à Corte Máxima. Mais uma vez, invade-se campo traçado para outra unidade, criando-se um evidente conflito federativo ao se impor norma federal superior a de outro ente. A matéria é tipicamente de direito administrativo, onde o Município tem evidente competência com relação a regulação de horários de trabalho em sua área territorial.

Outro ponto interessante é a criação de novos requisitos para que ocorra a desconsideração da personalidade jurídica, com modificação da redação inserida no art. 50 do Código Civil. Isso pode gerar problemas na seara trabalhista uma vez que a CLT, ao tratar do instituto, no art. 855-A, faz alusão ao Código de Processo Civil que, por sua vez, faz referência aos pressupostos definidos em lei para o entendimento e aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Veja-se a amplitude do problema.

A nova MP previu que, além do abuso da personalidade jurídica, configurada pelo desvio de finalidade e pela confusão patrimonial, será necessária a existência de benefício por parte dos administradores ou sócios da pessoa jurídica para que seus patrimônios pessoais sejam atingidos, encrudescendo ainda mais a Teoria Maior adotada pelo Direito Civil.

O natural questionamento surge: teria a Medida Provisória n.º 881 adotado no âmbito de Direito do Trabalho a Teoria Maior, haja vista vincular suas modificações legislativas às relações trabalhistas? A doutrina e a jurisprudência adotavam até então a Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica diante das relações de consumo e das relações de trabalho, em que bastava o inadimplemento da obrigação por parte da pessoa jurídica para que o patrimônio de seus sócios fosse alcançado.

Quanto às relações de consumo nada mudou, eis que o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor conta com disposição específica e não foi alterado pela Medida Provisória em análise. Todavia, diante do silêncio da legislação trabalhista sobre o assunto e, agora, com a correlação feita entre as relações de trabalho e a “liberdade econômica”, acredita-se que a matéria logo será suscitada perante o Judiciário.

No ARE 883.165 entendeu o STF que é responsabilidade conjunta da União e dos estados legislar concorrentemente sobre direito do consumidor, conforme delimita a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Portanto, não pode a União impor, por si só, ao Estado matéria de direito do consumidor. Tal iniciativa é concorrente.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos