O caso dos haitianos no Brasil e as condições subumanas de sobrevivência

09/07/2019 às 16:53
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O presente artigo versa sobre a migração haitiana para o Brasil, pós-terremoto de 2010 e a forma como tem sido abordada pelo Estado brasileiro, partindo do panorama geral da migração no mundo.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste artigo, analisa-se o fluxo inexorável de imigrantes haitianos que rumaram ao Brasil após o terremoto de 2010. Aborda-se ainda, o status jurídico desses imigrantes e o dilema deparado por eles, desde a vinda para a tão sonhada terra prometida, até as condições de trabalho e moradia que são encontradas no Brasil, factualmente. Pretende-se, por meio deste, alertar sobre a situação que temos presentemente no que tange a migração e ampliar o caráter protetivo, com base nos instrumentos de proteção nacional e internacional, conjuntamente.

Primeiramente, é apresentado um panorama global da migração, destacando-se as principais causas. Logo na sequência, os dados essenciais sobre o Haiti e o terremoto de 2010 são acostados. O capítulo é concluído com um tópico específico versando sobre a migração haitiana no mundo, começando no final do século XIX.

Posteriormente, expõe-se a relação precedente ao terremoto que Brasil e Haiti já possuíam, passando superficialmente pelo papel da MINUSTAH1 na moldação do imaginário haitiano, dando enfoque ao ocorrido no pós-terremoto, abordando a vinda e a chegada dos haitianos em território nacional e também o visto humanitário, apresentando resoluções do CNIg e CONARE.

Por fim, frisa-se que o atual sistema se encontra deficitário, mostrando que o governo brasileiro não tem despendido a devida atenção ao problema. A conclusão indica a possibilidade da realização de um trabalho em conjunto para elaboração de regras transnacionais de coordenação dos movimentos migratórios, ao passo que os direitos garantidos na própria Constituição da República Federativa do Brasil, vem sendo questionados.

1.1. Panorama global da migração

Sabe-se que existem vários fatores que podem ser responsáveis por desencadear a migração internacional, quais sejam: catástrofes ambientais, guerras, perseguições políticas, étnicas ou culturais, a fuga da fome ou sede, pretextos relacionados à estudos, o anseio por melhores condições de trabalho e moradia, a inquietação por melhorar o padrão de vida, dentre outros. A questão econômica apta a ensejar fluxos migratórios por todo o mundo, destaca-se como causa preponderante, juntamente com a estabilidade política e social.

Comumente, pessoas abandonam seus países e partem, vislumbrando a nação que proporcionará uma vida melhor. A razão de tomarem esta decisão é explicada pela incapacidade dos seus países de origem (governos), de proporcionarem as condições que almejam encontrar além-fronteiras.

O Relatório do Desenvolvimento Humano de 20092, realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), trouxe um detalhado panorama sobre a migração no mundo. Restou evidenciado, que aproximadamente 195 milhões de pessoas, moravam fora de seus países de origem, o que era equivalente a 3% da população mundial, sendo que cerca de 60% desses imigrantes residiam em países ricos e industrializados. Ao passo que, em 2013, 232 milhões de pessoas viviam fora do seu país natal, tanto em países desenvolvidos, quanto em desenvolvimento.

Embasando-se no último Relatório do Desenvolvimento Humano, realizado no ano de 20143, conclui-se que o número de pessoas que abandonam seus países, é crescente. Ademais, os trabalhadores migrantes, especialmente aqueles que não possuem documentos, encontram-se em situação vulnerável, podendo estar excluídos de habituais proteções de labor, sociais e até mesmo, sendo constantemente vitimados por discriminação racial, étnica e religiosa. Afora da vulnerabilidade que atinge os migrantes em situação irregular, os refugiados ainda enfrentam o desafio de não lhes ser permitido trabalhar na maioria dos países de acolhimento e de, frequentemente, serem alojados em acampamentos temporários com serviços de má qualidade e condições inseguras.

Constatou-se, de modo geral, que essa vulnerabilidade persistente ameaçaria o desenvolvimento humano. E se não sendo combatida sistematicamente por políticas e normas sociais, o progresso não seria equitativo e nem sustentável.

Outrossim, a migração internacional pode promover uma série de problemas socioeconômicos e seu processo está repleto de riscos. A recusa de alguns países desenvolvidos, em receber tais imigrantes, tem ocasionado uma série de medidas desproporcionas, no intento de restringir a entrada destes, dando espaço ao tráfico de pessoas e tornando rotineiro, notícias de tragédias envolvendo inocentes.

Ainda segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), uma migração regulada pode reduzir alguns dos riscos que os migrantes enfrentam. É imperioso que a vulnerabilidade relacionada com a migração seja resolvida coletivamente através de um regime de migração internacional. As regulamentações nacionais, não tem se mostrado eficazes e suficientes para fazer face às várias categorias e riscos a que os imigrantes, refugiados, pessoas deslocadas e apátridas estão expostos. A questão da migração deve ser entendida como um bem público global, impondo-se esforços mais significativos para desenvolver um consenso quanto ao tratamento dessa minoria, muitas vezes, excluída.

A migração, analisada através de um panorama global, institui um espelho das assimetrias das relações socioeconômicas vigentes. Sendo termômetros que indicam as contradições das relações internacionais e podendo ser percebidas, sob a ótica estruturalista, como uma das implicações da crise neoliberal contemporânea.


2. Imigração haitiana para o Brasil

2.1. Causas e desafios

Antes mesmo dos desastres naturais, o Brasil já constituía atuação importante no território haitiano, nos primórdios de 2004, exercia posto de Chefe da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (MINUSTAH). Nesse mesmo ano, também participou do ‘Jogo da Paz’, o qual visava ao desarmamento e a diminuição da violência depois da última deposição de presidente haitiano, Aristides Bertrand. Posteriormente ao terremoto, o Brasil majorou o número de programas de cooperação com o Haiti.

Este terremoto ocorrido em 2010, foi um marco que degringolou o número de imigrantes e refugiados procurando o Brasil, como bem indica Duval Fernandes (2014) no relatório da pesquisa conjunta entre a Organização Internacional para a Migração (OIM) e o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)4.

Entretanto, a figura do Brasil, no imaginário haitiano, fora moldada desde o início da atuação do Brasil junto a MINUSTAH. Determinados imigrantes haitianos relataram, inclusive, que o ‘Jogo da Paz’ acentuou a curiosidade sobre o povo brasileiro que se mostrava tão solícito e próximo (FERNANDES, 2014). Outrossim, a imagem do Brasil em âmbito internacional estava em evidência, tanto economicamente, quanto politicamente, com a atuação da diplomacia do presidente Lula, com mandato concluído em 2010.

Ainda sobre o relatório realizado conjuntamente, conforme mencionado acima, da fase brasileira da pesquisa “MIGRAÇÃO DOS HAITIANOS AO BRASIL E DIÁLOGO BILATERAL”, tem-se que no ano de 2010 pequenos grupos de haitianos, que não resumiam duas centenas de imigrantes, chegaram à fronteira brasileira com o Peru. No final de 2011 indicou-se a presença de mais de 4.000 haitianos no Brasil (COSTA, 2012; SILVA, 2013), esse número chegou à casa dos 20.000 imigrantes, ao final de 2013. Com indicações, que terminado o ano de 2014, o número total poderia chegar a 50.0005.

O debate sobre migrações foi reascendido no Brasil nos últimos anos. O fluxo crescente, fez com que a percepção da presença dos haitianos fosse vista com alguma desconfiança por certa parcela da sociedade, ganhando a atenção do governo e da mídia, quase sempre de forma negativa.

Um exemplo esdrúxulo, foi o episódio ocorrido em fevereiro de 2014, no qual um portal de notícias nacional deu um título minimamente sovino à uma reportagem: "MPE quer pedir ajuda da ONU sobre surto de imigração haitiana no AC"6. Apesar de inúmeros protestos nas redes sociais, basta procurar pelo título no Google que a matéria ainda estará disponível. O título não mudou. Conservando-se o erro, em todas as acepções. Deixando aparente também, o preconceito humanitário.

No Brasil eles, os haitianos, vislumbram uma vida melhor. Apostando e acreditando na possibilidade de ganhar dinheiro suficiente para enviar às famílias que vivem numa situação de miserabilidade extrema.

Ademais, conforme FARIA7, o fato de as fronteiras da Guiana Francesa terem se fechado aos haitianos, pode ter sido um agravante para que os mesmos se deslocassem para o Brasil. Como visto anteriormente, a Guiana Francesa é reduto de uma comunidade imigrante haitiana. Conclui-se, pois, que o Brasil teria abrolhado como destino substituto na América do Sul. E, de modo óbvio, após os atentados de 11 de setembro, os países desenvolvidos para os quais os haitianos costumavam ir ficaram com políticas migratórias mais proibitivas e discriminatórias (SILVA, 2012; PÓVOA NETO, 2008). Do mesmo modo, a situação pós-crise de 2008, nos países desenvolvidos, não despontavam sinais de fácil empregabilidade (SILVA, 2012).

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Grande parte dos haitianos que vivem no atualmente no Brasil, não chegou até aqui por rotas legais. E em meio a essas rotas, muitos se tornam vítimas da ação de coiotes, tiveram seus pertences roubados, ou até mesmo, sofreram violência sexual. Há notícias, inclusive, de que corpos foram encontrados pelo caminho, em razão de homicídios ou pessoas que, simplesmente, não resistiram à jornada. Acredita-se, que os haitianos percorrem uma parte do percurso por via aérea, mas quando chegam à América do Sul passam a percorrer grandes distâncias caminhando.

Compreendidos os motivos que fazem os haitianos saírem de seu país para arriscarem a vida no Brasil, cabe agora analisar a maneira como estão sendo tratados pelo governo e até mesmo pela sociedade brasileira.


3. Conclusão

A dignidade humana é um direito fundamental previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, sendo inerente à todas as pessoas, independentemente de sua condição. Este princípio basilar, quando respeitado, pode ser visto como uma mola propulsora de condições igualitárias entre todos os seres humanos, não importando a nacionalidade ou o território onde se encontrem.

Muito embora haja ideal consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual consistente na liberdade de locomoção de todos os indivíduos, é notório que, na esfera internacional, sair do país de onde se tem nacionalidade e migrar para outro sem restrições, é algo extremamente utópico.

No transcorrer do trabalho, permaneceu obvio que os imigrantes haitianos que vivem atualmente no Brasil, tais como tantos outros, clamam por políticas sociais conscientes que efetivem as garantias constitucionais e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma Constituição que garante o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à saúde, à educação, ao trabalho. Não pode permitir que essas garantias sejam meras afirmações. É necessária uma mudança imediata, através de medidas e ações eficazes, capazes de possibilitar a concretização de direitos fundamentais civis, econômicos, sociais, culturais e políticos.

Outrossim, o atual regime internacional de proteção aos refugiados carece de uma reformulação adjacente, ampliando seu alcance. Pós terremoto de 2010, tornou-se inquestionável o quão falho e ineficaz é esse sistema internacional de proteção. Os imigrantes, em especial aqueles que migram por falta de escolhas, estão completamente desamparados. Existe uma urgência, que por ora está invisível aos olhos do Estado, para uma análise complexa acerca das políticas governamentais sobre os efeitos da imigração em todos os seus âmbitos.

Resta evidente, que as ondas de imigração são uma realidade inexaurível do mundo atual. E por consequência, há mudanças nas cores de pele e mistura de raças. Posto isto, as normas internacionais sobre direitos humanos, bem como as regras transnacionais de coordenação dos movimentos migratórios, devem ser pensadas de forma conjunta e minuciosamente pelos governos dos países envolvidos. O problema da migração tem que estar conexo às relações internacionais, à dependência recíproca e principalmente, à responsabilidade compartilhada.

Conclui-se, todavia, que uma possibilidade para resolver a triste realidade atual, seria deixar de encarar as correntes migratória como problema de segurança nacional e expandir os horizontes, vislumbrando, quem sabe, um foro permanente apto a realizar uma análise séria e responsável no que concerne a migração.

O Haiti está aqui. Essa realidade deve ser encarada e vista com olhos de solidariedade. Pois tal qual os haitianos que aqui vivem, muitos brasileiros enfrentam casos de desrespeito no exterior; exploração, salários baixos, preconceito e promessas nunca cumpridas.


Notas

1 PROJETO “Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral”. Disponível em: https://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A4AC03DE1014AE84BF2956CB6/Pesquisa%20do%20Projeto%20%E2%80%9CEstudos%20sobre%20a%20Migra%C3%A7%C3%A3o%20Haitiana%20ao%20Brasil%20e%20Di%C3%A1logo%20Bilateral%E2%80%9D.pdf. Acesso: 25 set. 2015.

2 Ibid., p

3 MPE quer pedir ajuda da ONU sobre surto de imigração haitiana no AC. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/02/mpe-quer-pedir-ajuda-da-onu-sobre-surto-de-imigracao-haitiana-no-ac.html. Acesso: 01 set. 2015.

4 FARIA, Andressa Vírginia. A Diáspora Haitiana para o Brasil: o novo fluxo migratório (2010-2012). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte/MG, 2012. Disponível em: https://www.biblioteca.pucminas.br/teses/TratInfEspacial_FariaAV_1.pdf . Acesso em: 2 set. 2015. p 85.

5 RELATÓRIO de Desenvolvimento Humano 2009. Disponível em: https://www.pnud.org.br/hdr/arquivos/RDHglobais/hdr2009-portuguese.pdf. Acesso em 05 jun. 2015.

6 RELATÓRIO do Desenvolvimento Humano 2014. Disponível em: https://www.pnud.org.br/arquivos/RDH2014pt.pdf. Acesso: 02 jun. 2015.

7 A Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) foi criado em 1 de Junho de 2004 pela resolução do Conselho de Segurança 1542.

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Sobre a autora
Paula Maria Vargas Alves

Paula Maria Vargas Alves é advogada graduada pela PUCC (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) no ano de 2015 (2011-2015). Em seu trabalho de conclusão de curso, abordou ‘O caso dos haitianos no Brasil e as condições subumanas de sobrevivência’, com enfoque na necessidade de elaboração de regras transnacionais de coordenação dos movimentos migratórios. No ano de 2016, após 4 anos de estágio profissionalizante, a causídica ingressou em um escritório especializado em Recuperação Judicial de empresas, contratos e reestruturação de dívidas, localizado em Campinas e São Paulo – SP, e em 2017, assumiu a função de coordenadora de equipe no aludido escritório. Após mudar-se para Brasília, em meados de fevereiro de 2018, passou a atuar de forma autônoma, primando pelos estudos e atualização profissional, especialmente no que tange ao Direito Penal e Processual Penal, Direito Digital (LGPD), Direto Constitucional e Direito Transnacional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de conclusão de curso, adaptado - resumido - para postagem neste sítio).

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