O PERDÃO NAS OBRIGAÇÕES CIVIS

11/07/2019 às 16:31
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O ARTIGO DISCUTE O INSTITUTO DIANTE DA DOUTRINA NACIONAL E ESTRANGEIRA.

O PERDÃO NAS OBRIGAÇÕES CIVIS

 

Rogério Tadeu Romano

 

Sob o titulo remissão das dívidas o Código Civil de 2002 capitula o que segue:

Art. 385. A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro. Art. 386. A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular, prova desoneração do devedor e seus co-obrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor capaz de adquirir.Art. 387. A restituição voluntária do objeto empenhado prova a renúncia do credor à garantia real, não a extinção da dívida .Art. 388. A remissão concedida a um dos co-devedores extingue a dívida na parte a ele correspondente; de modo que, ainda reservando o credor a solidariedade contra os outros, já lhes não pode cobrar o débito sem dedução da parte remitida.

Tinha-se no Código Civil de 1916:

Art. 1.053. A entrega voluntária do título da obrigação, quando por escrito particu-lar, prova a desoneração do devedor e seus coobrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor, capaz de adquirir. Art. 1.054. A entrega do objeto empenha-do prova a renúncia do credor à garantia real, mas não a extinção da dívida. Art. 1.055. A remissão concedida a um dos co-devedores extingue a dívida naparte a ele correspondente; de modo que, ainda reservando o credor a solidariedade contra os outros, já lhes não pode cobrar o débito sem dedução d aparte remitida.

Trata-se de extinção das obrigações sem pagamento.

Trata-se de liberação graciosa do devedor, emanada do credor. É uma particular espécie de renúncia, como ensinaram Clóvis Beviláqua, Coelho da Rocha(Direito Civil, § 1053), M.I.Carvalho de Mendonça, dentre outros. Aliás, o credor não precisa da vontade do devedor para abdicar da sua qualidade. Basta que, de forma inequívoca, a ela renuncie. Em sendo assim é ato abdicativo unilateral, nesse sentido, que se pronunciou o Código Civil Italiano. Aliás, a essência do perdão está, pois, na vontade do credor, a qual, como declaração receptícia deve ser dirigida ao devedor. Mas, nem por isso, a validade da renúncia depende da aceitação deste. Basta a não-oposição, que se não confunde com aceitação, para que ela se perfaça. Mas, se o devedor tiver razões jurídicas oponíveis à vontade do credor, pode recusar o benefício, aí a essência do instituto. A obrigação subsiste, não porque o perdão seja ato bilateral, mas porque tem o devedor legítimo interesse em que a remissão não opere, como aduziram Ruggiero e Maroi(Instituzioni, iI, § 136). Há, para o caso, uma renuncia abdicativa e não translativa. Não prevalece a concepção da remissão chamada convencional, que se realiza e pode perfazer-se sem o concurso da declaração de vontade do devedor.

Por sua vez, há o entendimento, seguido pelo Anteprojeto de Código de Obrigações de 1941, artigo 318, que condicionava a extinção da obrigação à aceitação do devedor, seguindo o Código Federal Suíço das Obrigações, artigo 115, e, para ela, o credor não poderia liberar o devedor sem o consentimento deste, já que lícito não é sobrepor-se à vontade do devedor de cumprir a obrigação. No direito francês vigora a sua identificação com a doação, muito embora diga-se que este não é o contrato.

Para Pontes de Miranda(obra citada, pág. 88) “não é possível aferrar-se a doutrina à concepção da bilateralidade essencial da remissão, proscrevendo-se, radicalmente, qualquer renúncia(negócio jurídico unilateral), ainda quanto consista na destruição do documento ou título insubstituível. A doutrina francesa resistiu a qualquer atenuação, ainda hoje, posto que haja as vozes discordantes, eu parece negam a extinção da dívida e admitem a da pretensão, o que turvaria o assunto e a discussão”.

Mas, como aduziu Caio Mário da Silva Pereira(Instituições de direito civil, segundo volume, 1976, pág. 240), não é, entretanto, pacífica a caracterização da remissão como ato de renúncia, havendo uma corrente de escritores que a definem com sentido convencional, como revelou Serpa Lopes(Curso de direito civil, II, n. 297).

Diga-se que a renúncia é ato de disposição pelo qual direito, pretensão, ação ou exceção se extingue. Dizer-se que só a direitos se renuncia é absurdo. A renúncia à ação(direito material) distingue-se da desistência a ato do processo, ou à constituição do processo, ou ao processo ex tunc.

Como revelou Pontes de Miranda(Tratado de direito privado, tomo XXV, § 3010), “se alguém é devedor, o seu credor espera a satisfação da dívida. Se esse mesmo entende doar ao devedor, pode fazê-lo, e dá-se a extinção da relação jurídica, pela confusão, se o credor entende entregar o título ao devedor, sem pôr à mostra a causa por que o faz, não doa, remite a dívida”.

A abstração é essencial à remissão da dívida; se não se abstrai, o que é causa ressalta, e faz o negócio jurídico outro negócio jurídico que o de remissão da dívida.

Confira-se que o contrato de remissão da dívida é abstrato e o consentimento do devedor pode ser tácito, sendo que o seu silêncio basta.

A remissão pode ser parcial. Então somente parte do crédito se extingue. Às vezes, somente se refere aos juros, ou à multa convencional. Se foi do capital, devidos os juros, ou outros interesses, até certo tempo, haveremos de entender que apenas houve pactum de non petendo.

Porém é causal a remissão de dívida se o credor faz depender de solução pontual de outra obrigação a sua eficácia. Se é abstrata, ainda que tenha havido erro, vale. Essa inserção da causa no negócio jurídico de remissão da dívida pode fazê-lo negócio jurídico gratuito, o que é mais frequente, ou oneroso.

Ainda sobre o negócio jurídico causal, se houve inserção de causa no negócio jurídico de remissão de dívida, como ensinou Pontes de Miranda(obra citada, pág. 86), ou: a) tal inserção não torna dependente o negócio jurídico de remissão, ou b) o faz dependente, como parte integrante do negócio jurídico modificativo da relação obrigatória como todo, ou de transação.

Daí a quitação, que no direito contemporâneo, substituiu a acceptilatio, que o formalismo romano concebera , já excluída a forma de pergunta e resposta.

O Código Civil francês, no artigo 1282, e os que lhe seguiram, prestavam-se a que lhes construísse  a remissão da dívida como negócio jurídico unilateral, podendo, quando o credor se manifestasse, bilateralizar-se, fazendo-se contrato.

Em matéria de remissão, deve-se partir do enunciado de que a aceitação, o contrato, não é exigido, salvo onde a lei o diz. Disse L. Cohn(Erlass und VerzichtGruchots Beiträge, 47,287): “Onde a lei para a validade da remissão exige o contrato, no direito das sucessões, no direito das relações obrigacionais, isto é dito claramente. Onde a lei cala, não é obrigado o contrato”.

São, aliás, pressupostos da remissão unilateral: ela somente se pode dar quando as circunstâncias não mostrem que o devedor tinha interesse em escolher, isto é, em consentir, ou em não-consentir. A bilateralidade intervém sempre que esse interesse aparece(o funcionário público, o fiscal da empresa).

No direito alemão, a remissão se dá por contrato, sendo ineficaz a remissão unilateral da dívida. Alerte-se, aqui, que o direito germânico conhece, ao lado da remissão, e com o mesmo efeito extintivo, o contrato de reconhecimento de inexistência de obrigação. Esse negócio jurídico, se visa ao reconhecimento negativo de obrigação preexistente e conhecida, faz as vezes da remissão, e segue as linhas dogmáticas desta. Fora daí, e na sua essência, tem o efeito específico de esclarecer e assegurar a situação jurídica que se presumia existente. Se, entretanto, for avençado o contrato, na pressuposição errônea e enganosa de que o débito inexistia, o credor poderá reconstitui-lo, provando que a dívida existia na realidade e que o reconhecimento se fez na crença errônea do contrário, como aludiram Enneccerus, KIpp y Wolff(Tratado, Obligaciones, I, §74). A e B concluem contrato, em que A e B reconhecem que entre eles não existe a relação jurídica AB em que A seria credor e B devedor. Na remissão se afirma a existência da dívida; no reconhecimento negativo da dívida, nega-se. A remissão unilateral(renúncia) também, e pela mesma razão, não se confunde com o reconhecimento unilateral da inexistência da dívida.

Aliás, como apontou Pontes de Miranda(obra citada, pág. 82), a “baixa”, ou “descarga”, quando alguém gere negócios de outrem, não é remissão; é reconhecimento negativo da dívida, que é  aformal; se concebido com alternativa(reconheceu não existir a dívida, ou, se for o caso, como remitida) pré-exclui qualquer indagação, se, abstrato; concebido como reconhecimento da inconsistência da dívida para adimplemento, exclui a condictio, como já ensinaram G. Plank(Kommentar, II, 1, 546 s). A remissão é ato de disposição, sem ser negócio jurídico causal. Não se confunde a entrega do escrito particular como prova com o ato de disposição, que concerne à dívida.

Por sinal, há reconhecimento negativo da dívida, e não transação, quando o credor reconhece que, por encontro de conta das partes, a prestação do crédito garantido pela hipoteca não fora feita, como afirmou Warneyer(Kommentar, I, 679).

Se ao concluir o contrato de reconhecimento negativo, o credor sabia da existência da dívida, ou o concluir por esperar que o devedor a satisfizesse, oportunamente, ou porque queria extinguir a dívida.

No direito brasileiro, o devedor não pode unilateralmente cancelar a dívida, mas o credor pode, salvo  razão especial em contrário, que seja devido à natureza da dívida, ou à pessoa, cancelar o crédito: a remissão unilateral serviria para isso.

O Código Civil brasileiro de 2002, no artigo 385, mencionava a entrega voluntária, traduzida numa remissão tácita, do título da obrigação quando por escrito particular. Na França, De Page insurgiu-se contra essa técnica que é a mesma do Código Civil daquele país.

Não basta o ato material da detenção do título pelo devedor, para que se tenha por extinta a obrigação. É necessário, outrossim, que concorram outros fatores e, assim, estejam presentes certos requisitos: a) o primeiro é a efetiva traditio do instrumento; b) o segundo é que a entrega seja feita pelo credor em pessoa, ou seu representante, sendo certo que este somente agir como tal se tiver poderes específicos, pois se os tem para receber e dar quitação, não pode fazer remissão, porque esta é a alienação gratuita; c) finalmente, a entrega há de ser voluntária, tanto no sentido de sua espontaneidade quanto no de obrigar a intenção de abdicar a qualidade creditória

Lembre-se dentro do que foi explanado que o incapaz de alienar não pode remir. O tutor, que pode entregar o titulo contra pagamento, não pode  em remissão, porque tem a administração dos bens do pupilo. O devedor deverá ser capaz de adquirir.

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Ocorrendo a entrega do título em tais condições, a obrigação extingue-se.

A destruição voluntária do titulo incorporante, que, com isso, perece, importa na renúncia(remissão unilateral) do direito incorporado, ainda que se trate de crédito.  Incorporação tornou-o parte integrante do título.

A remissão poderá limitar-se à garantia real adjeta à obrigação, deixando que esta sobreviva. Nesse caso, aceita a lei que tacitamente se verificará, quando o credor fizer ao devedor a entrega do objeto empenhado. Não há perdão da dívida. Não há extinção da obrigação. Para o caso ocorre cessação da garanti, que desaparece, restando  dívida quirógrafa. Embora a remissão seja uma modalidade de renúncia, pode-se observar a sua distinção para o caso, onde a entrega do objeto envolve a renúncia da garantia, sem remissão da obrigação.

Pode ainda ser total, quando por objeto a completa extinção da obrigação e parcial, quando por via dela concede o credor a redução na dívida, que subsiste em parte e é em parte remitida, como ainda explicou Serpa Lopes.

A remissão da dívida deverá, necessariamente, emanar de gente capaz, devendo ter capacidade especial para alienar, porque envolvendo uma renúncia de direito, é ineficaz se faltar ao agente a livre disponibilidade de seus bens.

Visto como negócio jurídico unilateral, a remissão pode ser revogada unilateralmente, desde que não tenha ainda gerado um direito contrário, que pode aparecer pela atuação do devedor, pela disposição de garantias, e pela simples aceitação, como ainda aduziram Ruggiero e Maroi.

Indaga-se se é ato gracioso ou se comporta correspectivo ou contraprestação. Caio Mário da Silva Pereira(obra citada, p´g. 246) entendia que que o perdão da dívida deve ser desacompanhado de prestação por parte do devedor, pois que se assim não for haverá transação ou incidência de outro instituto jurídico.

Destaque-se que somente as obrigações patrimoniais de caráter privado comportam perdão ou renúncia.

O perdão da dívida opera como se fosse pagamento. Equivale à quitação da dívida, porque importa em extinção da obrigação. Aliás, Pontes de Miranda(obra citada, pág. 83) afirmou que “a quitação pode ser forma de remissão. Não se presume que o seja; de modo que tem de existir declaração ou manifestação de vontade, ainda, em circunstâncias. O ônus da alegação e da prova de não ser remissão passa, então, ao credor(e.g, ter esperado o pagamento). A quitação pode conter(raríssimamente) reconhecimento negativo da dívida; e isso de maneira nenhuma se há de presumir. Presume-se exatamente o contrário, sem que excluamos a possibilidade da quitação reconhecimento negativo”. Na matéria, disse Pontes de Miranda que, quanto a este ponto, estavam sem razão O. Bähr; W.Collatz.

Aliás, a quitação não é declaração de vontade; apenas é enunciado escrito, como ensinou Pontes de Miranda. Provando-se o contrário, elide-se a sua afirmação; não é verdadeira. A quitação não é negócio jurídico, não se podendo contra ela invocar prescrição.

O perdão concedido ao devedor principal extingue a obrigação dos fiadores e liberta as garantias reais.

Se vários forem os devedores, a remissão concedida a um deles extingue a obrigação na parte que lhe corresponde, de tal forma que ressalvando embora o credor a solidariedade que prende os demais coobrigados, não poderá mais acioná-los pela dívida inteira, senão com dedução da parte remitida.

Sendo indivisível o objeto e um dos credor remitir a dívida, não se extingue a obrigação em relação aos demais credores, que poderão exigir o pagamento com desconto da parte relativa ao remitente, como ensinou M.I. Carvalho de Mendonça(Obrigações, n. 416).

A remissão poderá se sujeitar a condição ou a termo, se causal, como dizia Dernburg(Das bürgerliche rechet, II, 1, 364).

A remissão não exige forma especial.  

A remissão, seja declaração unilateral de vontade receptícia, seja contrato, distingue-se do pactum de non petendo, em que esse apenas é o contrato ou cláusula pela qual o credor se obriga a não exigir o seu crédito.

O pactum de non petendo(Pacto de não exigir em certo tempo. É a moratória convencional) nada tem com a doação.

O pactum de non petendo, que não se confunde com a remissão, porque apenas com ele, se cria exceção, há distinção frisada por Silvestre Gomes de Moraes(Tractatus de executionibus, I, 13).  

 

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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