Em guerra com a redução de danos (Tradução)

15/07/2019 às 14:13
Leia nesta página:

Tradução do artigo “A tiros con la Reducción de Riesgos” de autoria de Fernando Caudevilla, de língua espanhola para portuguesa. Link do texto original: http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2018/07/doctrina46726.pdf

Em guerra com a redução de danos

¹ Fernando Caudevilla

² tradução por Matheus Maciel 


 

Em 6 de fevereiro [de 2018 n.t.], assistimos a uma daquelas polêmicas cíclicas e estúpidas que tornam possível preencher os noticiários e escrever colunas de opinião sem conhecer os fatos. Outro tópico para os analistas que analisam com veemência e enfaticamente as complexidades políticas do regime da Coreia do Norte, as implicações para a física quântica do descobrimento das ondas gravitacionais ou a última assinatura do Betis. A publicação e distribuição de um folheto sobre redução de riscos no consumo de drogas, publicada pela Coletiva Aragonesa ConsumoConCiencia e  financiada pela Prefeitura de Zaragoza, serviu para encher algumas horas de lixeiras disfarçadas de imprensa séria. 

O livreto em questão consiste em uma descrição dos efeitos e riscos das principais drogas psicoativas, que toma como modelo (ou melhor, plagiadas, pelo abuso de “corta-pega” de parágrafos inteiros sem citar a fonte) os materiais do Projeto de Controle de Energia. Bem, o panfleto inocente foi útil para que a imprensa pudesse fazer manchetes como as seguintes:

"Um panfleto da cidade de Zaragoza dá conselhos sobre como usar drogas" (COPE 2/7/18)
"O folheto municipal que explica como cheirar cocaína" (El País, 2/6/18)
"Um folheto desprezível" (Radio Zaragoza 9/2/18)

“A Câmara Municipal podemita de Zaragoza recomenda 'reservar medicamentos para ocasiões especiais" (Interconomia 5/2/18)
"A cidade de Zaragoza equaciona paracetamol e cocaína em um panfleto" (El Mundo, 2/2/18)

Entre a série de tolices que têm sido publicadas hoje em dia, destaco algumas linhas de uma entrada de blog do PP de Ciudad Real ("Prevenção contra o uso de drogas"):

 “(...) Diante desses dados, aconselhar as nossas crianças sobre como elas devem consumir uma carreira de cocaína ou como elas devem cheirar 'speed' não é apenas irresponsável, mas também demonstra uma clara falta de vontade política e pessoal para acabar com um problema que afeta todos como uma sociedade.

A ação da Câmara Municipal de Zaragoza, que sob o manto do partido populista Podemos distribuiu um folheto aos nossos adolescentes para doutriná-los no uso deste tipo de substâncias ilegais, age de forma vergonhosa e demonstra falta de ética e valores.

O panfleto se atreve a explicar qual é a dose adequada de cannabis e em que proporções deve ser consumida ou como pulverizar cocaína para consumo. Estas são algumas das respostas que podemos dar aos nossos jovens, a quais se pode interpretar que esconde o desejo de legalizar este tipo de substâncias na Espanha, que destroem a vida de nossos filhos. 

Você sabia? Os 14,8% das pessoas entre 15 e 64 anos que usam drogas morrem durante ou depois de fazê-lo em nosso país. Em 2016, 66 novas substâncias foram detectadas em nosso país a uma taxa de uma por semana; sem dúvida se trata de uma das indústrias mais poderosas do mundo. Repito, que futuro tem para nossos jovens? (...)”

Não escolhemos este documento de forma aleatória.  A entrada do blog é a partir do site do Partido Popular da Ciudad Real e está assinado por Carmen Quintanilla, Deputada Nacional desde o ano 2000. Como eu assumo que a maioria dos leitores não vai saber quem é esta senhora, eu lhes digo o que eu aprendi: Dona Carmen é vice-presidente da Subcomissão para a Deficiência da Comissão de Igualdade e Não Discriminação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, Vice-Presidente, da Comissão da Igualdade do Congresso dos Deputados desde o ano de 2000 e Presidente Nacional da Confederação das Federações e Associações de Famílias e mulheres nas zonas rurais (Afammer).

A senhora deve ter seu gênio, já que ela alertou a outro dirigente que estava "cavando sua própria cova” por uma daquelas coisas de que  eu apresento ou se apresenta a sua eleição (1). Também tem um gosto particular na hora de combinar lenços ou cangas com o resto de suas roupas.

Bem, este último é uma opinião estritamente pessoal deste autor e não devemos ser enganados pelo fundamental do assunto. Porque, além de tudo isso, a Sra. Quintanilla é Presidente da Comissão Conjunta para o Estudo do Problema das Drogas.

Não é necessário que os políticos que trabalham na área da saúde sejam médicos. Nem que aqueles que trabalham na Defesa sejam militares de carreira ou professores do Ministério da Educação. Mas suponho que não é muito pedir que um político que se dedique à agricultura saibam a diferença entre terra irrigada e seca, ou que aqueles que legislam na Internet saibam o que é banda larga ou Wi-fi.

Digo isso porque é alarmante que quem preside um órgão parlamentar de nível nacional para estudar o “problema das drogas" não conheça conceitos tão básicos como a diferença entre prevenção universal, seletiva e indicada ou até mesmo os mais simples, como "redução de danos". A este último é dada especial relevância (pelo menos no papel) na Estratégia Nacional sobre Vícios 2017-2024 que o Conselho de Ministros acaba de aprovar. E nos lembramos que o governo que preside a Nação e o Partido no qual Quintanilla milita é o mesmo.

 A matemática básica também não parece ser o ponto forte da Sra. Quintanilla. Ou talvez ela pratique o surrealismo literário. Porque a frase "Os 14,8% das pessoas entre 15 e 64 anos que consomem drogas morrem durante ou depois de fazê-lo em nosso país" é absurda, inquietante e perturbadora. As pessoas sempre morrem em algum momento, mas só quando usam drogas em nosso país? Durante o consumo ou durante a viagem de entrada ou saída? Se um islandês toma uma cerveja em uma balança no aeroporto de Barajas e depois vai para a China ... qual é o risco? A propósito, a Espanha informou ao Observatório Europeu de Drogas e Toxicodependência 402 mortes (13 por cada milhão de habitantes) relacionadas a drogas no ano de 2016, precisamente na faixa etária entre 15 e 64 anos. Onde está o resto, é um enigma.

Outra interpretação possível é que tanto a Sra. Deputada quanto o restante dos jornalistas, políticos, especialistas e formadores de opinião levaram as mãos para a cabeça com o assunto, eles não dão a mínima para o tema. A única coisa que lhes interessa é procurar qualquer desculpa para acusar ou desfigurar a conduta do adversário político e minar sua credibilidade. Aqui o fim justifica os meios e dá o mesmo contra o que deve ser atacado para mostrar aos cidadãos que "as Podemitas" (substantivo que se destaca em quase todas as notícias) têm uma agenda oculta para corromper a juventude e arrastá-la para o vício da toxicodependência.

Exagero? Poucos dias após o evento em Zaragoza, devido a um erro de impressão no programa do Festival de SantaEulália em Barcelona, patrocinado pela Câmara Municipal, uma oficina sobre teste de drogas pelo controle de energia foi incluída entre as atividades para os jovens. Essa atividade não estava entre o que foi planejado e o Controle de Energia desmentiu de forma imediata que a Prefeitura tivesse solicitado algo a esse respeito. Se tratou simplesmente de um erro que foi corrigido e explicado imediatamente por todas as partes. As manchetes da imprensa? :

"Barcelona inclui em uma festa infantil um ‘teste’ de drogas para ‘promover o consumo consciente "(ABC 8/2/18)

"A Colau promove o uso de drogas de maneira ‘consciente’ oferecendo um teste de pureza gratuito" (OK Diario 8/2/18)

"Colau promove uma degustação de drogas" (Libertad Digital 9/2/18)

"Colau, forçado a retirar um teste de drogas em uma festa infantil" (La Vanguardia 9/2/18)

Não importa que a atividade hipotética, não programada e inexistente fosse endereçada a "jovens" em vez de "crianças" ou às explicações oferecidas sobre o erro (e para errar, todos erramos). Se você tiver que atacar a redução de riscos para trazer à luz a intenção de Colau em sair distribuindo testes de drogas à rua a crianças de quatro anos e já colocou salgadinhos de salsicha catalã com guardanapos da senyera e tripis camuflados (que já se sabe como estão por lá), então vá em frente. 

E tampouco caiam na tentação de pensar que isso é um ataque da Direita conservadora contra a Esquerda progressista. A estupidez, a ignorância e o uso interessado da saúde dos cidadãos não são propriedade de nenhum partido político. Em 2002, com um governo do PP, o Plano Nacional de Drogas subsidiou um dos primeiros folhetos sobre redução de danos e cocaína publicadas na Espanha.

A resposta da imprensa se produziu em forma de manchetes como "as ONGs ensinam a se drogar  com o dinheiro do Plano Nacional" com um esquema delineado que temos vistos nesses casos. Para honrar a verdade, o então Delegado do Governo da PNSD do Partido Popular, Gonzalo Robles, foi o primeiro a dar explicações e defender o Projeto.

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Idêntica é a sequência que ocorreu no País Basco em 2017 quando, coberta pelo Euskadi VIII Plan Addictions, a difusão de cartões para interromper substâncias por via intranasal em certos ambientes de lazer levou a manchetes como "Bilbao retira uma campanha municipal em como cheirar uma carreira de cocaína" (SER, 9/13/18) ou "Bilbao está fazendo uma campanha para jovens viciados em cocaína" (El Confidencial, 15/9/18).

Não é apenas a saúde dos usuários de drogas que pode ser colocada em risco, mas a de qualquer outra minoria. Em 2007, com Zapatero no governo, o coletivo Stop Aids publicou dois excelentes guias sobre sexo voltados para a população gay (“Esta guía va de culo” e “Esta guía es la polla”), financiados pelo Ministério da Saúde. O escândalo midiático ("Um guia subsidiado pela Saúde induz o uso de drogas nas relações homossexuais" (ABC, 25/4/2008) intimidou o governo, que finalmente optou por não publicá-lo.

E insisto, o uso como arma da Estratégia de Redução de Danos, estratégia reconhecida em todos os Planos Estratégicos de Drogas, coloca em risco a saúde das pessoas. Atualmente, temos evidências de que vaporizadores aprovados eliminam substâncias tóxicas e cancerígenas no uso intrapulmonar de cannabis. Não me canso de repetir nos meus artigos, mas uma intervenção tão simples como um anúncio apoiado pelas Autoridades de Saúde com essa mensagem inserida na mídia do público-alvo (esta revista e outras semelhantes) seria uma medida barata, pertinente e eficiente para salvar vidas. Sim, sim ... porque reduzir o número de bronquites crônicas ou câncer de pulmão é isso, salvar vidas.

Alguém de alguma instituição me lê? Se sente encorajado? Venha, sairá  muito barato. Eu o ajudo a procurar os melhores que farão isso por muito pouco. E tenho certeza de que sou capaz de convencer a "Indústria da Cannabis" (como desdenhosamente vocês chamam) de que o filme seja lançado e eu o publique de graça. Porque são maconheiros e procuram ganhar dinheiro, mas, geralmente, têm mais consciência social e senso comum que o grupo medíocre ao que fiz referência neste artigo.

Destaques:

1) A redução de danos é apresentada como uma arma para atacar o adversário político.

2) Todas as partes fazem uso desta estratégia

3) Surrealismo nas manchetes da imprensa atinge extremos delirantes

4) A pressão da mídia levou à remoção de ferramentas reconhecidas como eficazes na Prevenção

5) A atitude de alguns políticos indica ignorância ou extremo cinismo

6) Atacar a Redução de Danos é um ataque à Saúde Pública

7) Materiais sobre sexualidade ou drogas foram censuradas desde 2000

¹Fernando Caudevilla 

²Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.

Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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