Confinamento feminino e Reforma Penitenciária (Tradução)

15/07/2019 às 19:02
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Tradução do artigo “Encierro femenino y Reforma Penitenciaria” de autoria de Alba Martínez Omedo, de língua espanhola para portuguesa. Link do texto original: http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2017/10/doctrina45826.pdf

Confinamento feminino e Reforma Penitenciária

¹ Alba Martínez Omedo

² tradução por Matheus Maciel 

RESUMO

O sistema penitenciário uruguaio tem sido e será ponto de reflexão e discussão em todas os âmbitos.Tema que vem ganhando peso nos últimos anos após o início da reforma penitenciária ordenada pela Lei nº 28719 de 2010. Embora em toda a América Latina as reformas não tenham sido bem-sucedidas nem homogêneas, uma mudança de paradigma e modelo de gestão implica uma transformação não apenas estrutural, mas funcional e com ela a soma de grandes dificuldades e resistências.

 Esta instância de debate e reflexão sobre as mulheres dentro dos contextos de confinamento acrescenta um grande tema que geralmente não é visualizado quando falamos de gestão penitenciaria.A mulher ao longo da história penitenciária tem permanecido invisível em muitos aspectos e nos últimos anos os esforços são maiores para trazer para os espaços de discussão não apenas a situação das mulheres encarceradas, mas também as implicações além daquilo que podemos visualizar e que nos toca a todos e todas como sociedade. Por esta razão, me pareceu extremamente importante participar desta jornada onde podemos perceber, além das palavras,as pessoas reais que com desejo legítimo buscam uma mudança na visão das mulheres presas, conhecer seu contexto, suas motivações e entender o significado da punição imposta.

INTRODUÇÃO

Ante a proposta para este espaço de debate e reflexão,começarei dizendo que as mulheres estivemos invisíveis no sistema penitenciário ao longo da história, tanto de um lado quanto do outro lado da cerca. Desde o início da história penitenciária uruguaia tivemos mulheres privadas de liberdade e tivemos mulheres ocupadas com as "delinquentes", "mulheres privadas de liberdade" ou como a história punitiva queira chamá-las, porém todas elas invisíveis e ausentes da história penitenciaria.Exceto por alguns dados em bibliografias temáticas, blogs ou acadêmicassão nos últimos anos que começa a surgir o caminho da necessidade de datar, escrever, documentar as mudanças e a necessidade de ter, também, uma política penitenciária forte e definida que transcenda governos.

Ainda estamos passando pelo processo de mudanças do sistema penitenciário uruguaio iniciado em 2010, previsto na Lei nº 18.719, e embora se pudesse pensar que a reforma penitenciária já é um fato, ainda há desafios e dificuldades a superar. Em geral, as reformas penitenciárias latino americanas não têm sido completamente bem-sucedidas ou homogêneas, mas tiveram mais dificuldades do que o esperado, embora deva ser ressaltado que ante qualquer reforma institucional profunda, sempre existirão dificuldades e resistências de fora e de dentro da própria instituição, porém hoje podemos celebrar a mudança de paradigma e modelo penitenciário com um ressonante "não há como voltar atrás".

Por isso que essas instâncias de troca, reflexão, de diferentes atores e áreas de debate são apropriadas para enfrentar novamente algumas questões e entender a ressignificação e a necessidade de tornar os outros mais visíveis.

 Este ano, em nível pericial, a "gestão penitenciária" foi definida como "... forma de ser e comportar-sedo sistema prisional em um determinado momento ...", e essa simples definição nos obriga a pensar e entender cada comportamento institucional em um determinado período ao longo da história punitiva do estado.

Palavras-chave: cárcere, mulher, reabilitação, sociedade, gestão penitenciária.

A mulher e a prisão

Pilar Pavón, espanhola, em sua obra intitulada "La Cárcel y elencarcelamientoenel mundo romano " faz alusão, quase no início de sua obra feita para o Instituto de História na Espanha, que a origem, a gênese do encarceramento, é atribuída ao rei "Anco Marcio" que é visto como o "construtor" do encarceramento, cujo mito fundacional também sustenta que foi ordenado por ele,que umavestale chamada "Rhea Silvia" foi a primeira pessoa presa e de maneira perpétua como punição pela violação de seus votos de castidade.Portanto, o ingresso ao sistema carcerário feminino é mais velho do que pensamos e, como tal, a instituição penitenciária recebe uma mulher como a primeira pessoa privada de sua liberdade e de maneira perpetua, punindo uma virtude imposta pela então sociedade grega que buscava a perfeição. E quem se dedica à história pode reafirmar que foi uma sociedade que perpetuava a desigualdade vista aos olhos do século XXI, tudo se tratava sobre classes, os livres (cidadãos e não-cidadãos dependendo se os impostos foram pagos ou se eram imigrantes) e escravos (desprovidos de quaisquer tipo de direitos) .  As mulheres gregas careciam de todos os direitos e estavam sujeitas ao homem, mesmo que fizessem parte de famílias ricas. Da mesma forma, seus movimentos também eram restringidos, assim como seus espaços dentro dos próprios lugares que eram chamados de "gineceu", em grego: gynaikonitis / γυναικωνῖτις). Ali viviam não só as mulheres, mas os servos e escravos, e os quartos ficavam no final da casa.

Com um olhar histórico crítico, quando falo de prisão feminina, meremeto a essa sociedade grega refletida hoje em alguns aspectos.Mulheres sem direitos nas prisões que foram feitas por homens e para homens, porque as mulheres tiveram mais do que um bônus histórico para o tempo que estão dentro do sistema punitivo, não apenas das origens do mesmo, mas ao longo dos séculos.

Em geral, em quase todas as áreas, as mulheres devemos construir-nos a nós mesmas de acordo com o que culturalmente nos chega como aprendizado.Eu sempre digo, a primeira e nefasta aprendizagem de violaçõescomeça quando nascemos, para deixar-nos claro que tem sido para sofrer !!,..... nos damos conta que estamos no século 21, e não tem sido apenas com palavras, mas com o costume assumido de perfurarmosas orelhas com a intenção bem fundamentada de nos decorarmos.Éesta uma mensagem imbatível de caminho futuro cheio de dificuldades e dores físicas vindas e assumidas por nossos costumes culturais.Por isso, pessoalmente com a minha filha, resisti a tal costume decorativo originado quem sabe onde e por quem. A ela permiti escolher quando e como transpassar o lóbulo da suaorelha e do resto de seu "ser".

Na antiguidade, assim como hoje, quando falamos de encarceramento e privação de liberdade, a mulher teve que compartilhar as mesmas condições carcerárias que os homens. Portanto, não é um fenômeno novo que a estrutura penitenciáriaesteja realizada e estruturada sem nenhuma perspectiva de gênero.

De mais, cabe destacar um autor como Hobbes que insistia em seu "Leviatã" que era necessário o nascimento do Estado, pois o homem é o lobo do homem, para fundamentar entre outras coisas o sistema punitivoestatal.Porém, lhe direi que para muitos estudiosos do indivíduo, nenhum ser humano nasce mau, embora em 1651 Hobbes insistia que o Estado veio com todo o seu "imperius" punitivo, para acabar com a maldade do homem, porque todos e todas somos maus por natureza.A realidade nos diz que ninguém nasce com a maldade, ninguém nasce com ódio,nem com egoísmos etc., Todos herdamos ao socializar essas qualidades de nossos contextos,que definitivamente é quem nos alimenta e condiciona muitas vezes, e não apenas contextos históricos, mas também sociais, políticos, religiosos, econômicos, etc.

 O triste é que, apesar de passarem os séculos, os tempos, as revoluções, as democracias, as sociedades, cada uma em seus ritmos e níveis, continuamos mantendo dentro de nossas prisões os mesmos problemas a serem resolvidos, superlotação, más condições ... e as mulheres! Sempre reduzidas a suas "penitenciárias ginecológicas",a serem consideradas um problema a resolver, mas não resolvido! E em geral passam os tempos de forma invisível com as mesmas mochilas no ombro por parte dos sistemas penitenciários.

 Acontece que, em sua grande maioria, essas mulheres encarceradas, mais quevitimizadoras, tem sido, em geral, vítimas e não por esta questão de gênero ou feminismos potencializados ou questões do feminino observado como "marketeiro", mas porque é um dado da realidade, que a maioria das mulheres criminalizadas tem a ver com um período em que se incrementou a comercialização de narcóticos e algo chamado de feminização da pobreza, e é um fenômeno que as mulheres encarceradas em quase toda a América Latina compartilham. Outro fator compartilhado, lamentavelmente, é o olhar punitivo e, muito pior,como resolvemos a criminalidade feminina e não atacamos os fatores socio-ocupacionais e sociais dessas mulheres criminalizadas.Vemos o como e não o porquê, apesar do passar dos séculos.

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 Nas últimas décadas, o sistema "família" estabelecido nas sociedades tem tido grandes e aceleradas mudanças, que não foram impulsionadas agora nestes últimos anos, mas que correntes de diferentes tipos vêm trabalhando e exigindo a nossa sociedade, modelos de convivência de toda a comunidade.Ea mulher, apesar de todo o esforço que fazemos em diferentes lugares, não conseguiu sair do eixo problemático que historicamente a acompanha.Somos o centro de todas as falhas, se a família não funciona, se um filho “sai do trilho", se economicamente estamos mal, se não tivermos boa saúde (a mulher grávida também é culpada), etc.

 Portanto, as mulheres carregam todos os estigmas e censuras não só penais, mas sociais, políticas, culturais, etc., desde o início dos tempos, algo que hoje em dia se torna mais visível e público.É que se trata de conscientizar disto a toda sociedade e obviamente parece que o efeito oposto é alcançado, dado o índice de violência de gênero a nível mundial.Mas, este será outro eixo ou corte a ser refletido em outra instância.

 O sistema punitivo não é alheio à sociedade que estamos tendo, mas sim a resposta que a mesma solicita, sem perguntar-nos que consequências terá a criminalização feminina e desconectada de origem real de tais condutas.Os sistemas penitenciários, em geral, quando a acusação criminal já foi feita e a mulher é presa, a única coisa que consegue é aprofundar e perpetuar todas as violações, não apenas individuais, mas também as familiares, porque se termina constatando, quase sempre, que as mulheres são mães, filhas, esposas, namoradas, irmãs, etc apoiadoras emocionais e econômicas em geral, e a prisão, portanto, acaba sendo uma ferramenta a mais para aprofundar a desigualdade e o dano.

Creio que é hora de nos olharmos mutuamente, para aquelas do outro lado da cerca, ondeencontramosmuitasreduzidas ao mínimo de dignidade humana e que, muitas vezes, minimizamos as condenações não só penais, mas sociais, familiares, emocionais, etc. Creio que o sistema punitivo, e nós como sociedade, nos devemos uma reflexão, para conseguir assumir responsabilidades,não somente com as mulheres, mas com todos os indivíduos criminalizados: representar sua estrutura familiar, e realmente sentir que talvez seja hora de que o encarceramento, de uma vez por todas, deixe de ser um espaço de punição e passe a ser um campo de contenção, de troca, de valorização, de estímulo e coragem, de reconhecimento mútuo.E que todos e todas envolvidas nesta tarefa invisível, neste processo que chamamos de reabilitação, possamos consensuar e refletir a respeito - sobre que tipo de sociedade queremos, que tipo de sociedade teremos se não nos ocuparmos do encarceramento feminino para começar.  Aproveitemos, então,  estes tempos de transição da gestão penitenciária, onde se fazem os máximos esforços de todas as áreas, para construir entre todos e todas e passar o nível penitenciário de ser um modelo de exclusão ao de inclusão, no qual participam atores de todos os âmbitos públicos e privados, nessa etapa de reforma penitenciária na qual transitamos.

REFLEXÃO FINAL

A abordagem é infinita e, portanto, dá para fazer uma reflexão mais profunda que a que eu tentei fazer nesta contribuição.Apenas os convido a acompanhar estas instâncias e agradecer a oportunidade de construir juntos uma sociedade melhor.  Apoiar o caminho que vem transitando a reforma penitenciária é essencial, bem como envolver-nos e convidar a envolver-se e a cooperar com a cidadania nestas questões que, em última análise, também nos define como país.

¹ Perita penitenciária.

² Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.

REFERÊNCIAS

Revista de PensamientoPenal. Práctica judicial pericial enlaGestión Penitenciaria. pag.8- D.Of.Nº29667p.5859/ 21/3/2017. Disponível em: <http://www.pensamientopenal.com.ar/doctrina/45526-buscando-perfildel-perito-gestion-penitenciaria#>.

 Pilar Pavón. La cárcel y elencarcelamientoenel mundo romano" Anejos de Aespa XXVII/2003/ pag 23.

http://etimologias.dechile.net//https://red.didactalia.net/comunidad/CClasica/rec urso/

http://www.lr21.com.uy/editorial/29303-la-agresion-a-la-mujer-y-la-feminizacionde-la-pobreza

Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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