A Ilha do Deserto: o abolicionismo como possibilidade... (Tradução)

16/07/2019 às 22:58
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Tradução do artigo “La isla desierta: el abolicionismo como un possible...” de autoria de Ezequiel Kostenwein. Link do texto original: http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2017/04/doctrina45232.pdf

A Ilha do Deserto: o abolicionismo como possibilidade...

¹ Ezequiel Kostenwein

² tradução por Matheus Maciel 


 

Abordagens tradicionais ao abolicionismo criminal geralmente o designam como uma corrente radical dentro da criminologia crítica. Evitando estas restrições, neste trabalho, ele será analisado como um processo ético e subjetivo que é implantado como uma prática política da economia do desejo (abolicionismo molecular). Veremos que é a partir da perda de nomes próprios que torna-se necessário abrir-se a multiplicidades intensivas, escapando simultaneamente a dispositivos dominantes de significação.  Em outras palavras, aquele vem a ser projetado como um abolicionista molecular - ou criminologista menor - à medida em que não tem a responsabilidade do criminologista tradicional nem a culpa do criminalizado.

Palavras-chave: abolicionismo criminal, situação problemática, valor, punição

1- Interrupção e virtualidade

O título deste artigo, A ilha deserta: o abolicionismo como um possível ..., tem uma intenção clara. Por um lado, os dois pontos têm, pelo menos nos tratados sobre o assunto, o significado de uma pausa, produto da maior intensidade em relação ao ponto e vírgula, e de menos força ao redor do ponto. Segundo Agamben, "os dois pontos são como o semáforo verde no tráfico da linguagem" (2007: 486). Por outro lado, a elipse com a qual conclui é um paradoxo, uma vez que nunca pretendem concluir com algo: os três pontos não se fecham, não finalizam absolutamente nada. Portanto, o abolicionismo como um acontecimento - como um evento - é sempre possível, uma vez que, como Zourabichvili aponta, "o possível é criar o possível. Passamos aqui para outro regime de possibilidade, que nada tem a ver com a disponibilidade atual de um projeto a ser realizado, ou com a vulgar aceitação da palavra utopia (imagem de uma nova situação que é brutalmente substituída na situação atual, na esperança de reunir o real a partir do imaginário: operação no real, e não no próprio real). O possível vem pelo acontecimento e não o contrário; o acontecimento político por excelência - a revolução é a realização de um possível, mas a abertura de um possível "(2002: 138).

Assim entendido, o abolicionismo não pretendia transformar-se em nova atitude, ou a batalha pela consolidação de uma escola: é a inauguração, repetimos, de uma possibilidade, que no presente estourou dinamicamente o novo. Inclusive, não tem nada a ver com a implementação de planos ou alternativas, mas com o que está pairando no momento em que esses planos ou alternativas são desenvolvidos. Por isso, deve ser considerado absurdo dizer que alguém "é" abolicionista, porque na verdade ninguém pode estar diante de uma situação que oferece condições para se tornar abolicionista. "Ser" isto ou aquilo é reservado para religiões, para partidos políticos, para o Estado, para todos que, como estes, acreditam em tribunais e excomunhões, mas não para aqueles que buscam desafiar os poderes estáveis da terra.

Inclusive, ninguém se torna abolicionista sob nenhuma circunstância especificamente, se entendermos o abolicionismo como um evento que não "é" o que acontece, mas "é" o que está no que acontece. Talvez a coisa mais correta seja falar de um devir abolicionista, que está sempre associado a uma nova maneira de perceber os eventos. É, em suma, ter afetos, ideias e conceitos aqui e ali para alcançar aquelas evoluções paralelas que garantem todo o futuro, já que como alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele. Portanto, o abolicionismo é uma dimensão que se sobrepõe a qualquer situação problemática, uma dimensão que não é tão desconhecida quanto irreconhecível. Este último, por causa da imagem muito aliciante que temos nos circuitos do sistema penal.

O que foi discutido até agora deve nos levar a entender melhor por quais razões existem prognósticos infelizes como "o abolicionismo não é viável" ou "o abolicionismo nunca será possível". O abolicionismo como possível não é nem o futuro nem o passado de qualquer época: é uma construção - sempre frágil - que só conseguimos efetuar em uma situação. E é Zourabichvili que está correto novamente quando diz que "realizar um projeto não traz nada de novo ao mundo, já que não há diferença conceitual entre o possível como projeto e sua realização: simplesmente o salto para a existência [...]. Há uma diferença no status entre o possível que é realizado e o possível que é criado. O evento não abre um novo campo do viável, e o campo do possível não se confunde com a delimitação do que pode ser alcançado em uma dada sociedade "(Ibid .: 139). O possível como tal é criar novas possibilidades de vida, ou o que é o mesmo, criar um modo de existência com critérios únicos de valorização, de afetação e de ser afetado, bem e mal desaparecendo como eixos transcendentais de avaliação, sendo o bem e o mal - para cada um - o que define um fato, a uma pessoa, um afeto. 

Podemos dar um passo adiante e sugerir que o abolicionismo, como o consideramos, sempre se revela uma questão de ética imanente que se opõe a toda moral transcendente que busque elevar valores a partir dos quais julgar as pessoas sob qualquer circunstância. Isto significa, como Deleuze e Guattari afirmaram, que "nos falta a menor razão para pensar que os modos de existência precisam de valores transcendentes que os comparam, os selecionam e decidem que um é "melhor"que o outro. Pelo contrário, não há mais critério que os imanentes, e uma possibilidade de vida é valorizada em si pelos movimentos que traça e pelas intensidades que cria ...; o que nem traça nem cria é descartado. Um modo de existência é bom, ruim, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independentemente do Bem e do Mal e de todo valor transcendente: nunca há mais critério do que o teor da existência, a intensificação da vida "(2005: 76).

2- Abolicionismo Imperceptível

Começamos a notar que as distinções convencionais não têm mais a mesma capacidade de manobra: abolicionismo penal radical ou abolicionismo institucional (Pavarini, 1990), abolicionismo extremo ou abolicionismo moderado (Crespo, 2003), abolicionismo da primeira geração ou abolicionismo da segunda geração (van Swaaningen, 1997): isso é francamente supérfluo. A univocidade do abolicionismo se manifesta, precisamente, quando se consegue obter que os nomes próprios e as formalidades não existem, ou seja, que só são alcançados através do processo mais agudo de despersonalização. Isso é mais claramente evidenciado quando observamos que, muitas vezes, as propostas mais desafiadoras contra as margens do imaginário punitivo não provêm do espectro estritamente criminológico. Casos como os de Spinoza, Nietzsche, Deleuze - para citar três - expressam a ausência de limites com os quais a pesada tradição criminológica consegue fazer sentir sua autoridade. Escapar desta pesada tradição é fazer da criminologia um conhecimento menor.

O abolicionismo molecular de que estamos falando também significa algo imperceptível - imperceptível para as pessoas que o atravessam, aquelas que se tornam abolicionistas? Absolutamente: imperceptível para a máquina de sobrecodificação e seus termos sócio-semióticos, imperceptíveis à linguagem dominante da punição, juntamente com os binarismos que a sustentam. Pelo contrário, para o futuro, para o desejo, para o que se quer na vontade do abolicionismo, não há nada mais tangível: é simplesmente a vontade do poder abolicionista.

E esse devir abolicionista é nunca imitar, nem fazer como, nem se adaptar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Nunca há um termo do qual se separa, dizem Deleuze e Parnet, "nem o que chega ou deva ser alcançado. Os devires não são fenômenos de imitação ou assimilação, são fenômenos de dupla captura, de evolução, não paralela, de casamentos de dois reinos" (1980: 10, Deleuze e Guattari, 1988: 239). Uma pessoa se torna abolicionista quando, diante de um certo evento infeliz, experimenta uma certa intolerância por causa do modo banal como tenta resolvê-la. Ela percebe como é vergonhosa a nomenclatura com a qual estava acostumada a definir e responder a um evento, e a vergonha é um grande estimulante para modificar as percepções. Mais especificamente, o imperceptível é a novidade que lhe acontece sob o regime daquilo para o qual foi orientado até aquele momento. O imperceptível é o novo, se permanecermos ancorados no velho.

Com as próximas seções, tentaremos mostrar o abolicionismo como "um possível perceptível". E faremos isso a partir de três questões capitais: primeiro nos perguntaremos "o que pode ser uma situação problemática?". Em segundo lugar, analisaremos o valor dos valores em que a punição estatal é recomendada. Finalmente, vamos sugerir uma micropolítica orientada para as minorias, para o surgimento de uma criminologia menor.

3- O que pode ser uma situação problemática?

A questão de Spinoza (1980) sobre o que um corpo pode fazer é bem conhecida. E a resposta para isso é que um corpo é, precisamente, o que pode. Portanto, de acordo com este filósofo, ninguém sabe de antemão o que um corpo pode. E esses mesmos corpos Deleuze e Parnet afirmam que "não são definidos pelo gênero ou pela espécie, pelos órgãos e funções, mas pelo que podem, pelas afecções de que são capazes, tanto na paixão como na ação" (1980: 74; Deleuze, 1984; Deleuze e Guattari, 1988).

Assim entendido, a situação problemática é um corpo como qualquer outro, sobre o qual não faz sentido perguntar a sua natureza - seja ela boa ou má, justa ou injusta - mas, como dissemos, do que ela é capaz? Ou o que pode ser? Tudo isso se transforma tão estritamente spinoziano para o abolicionismo quanto possível, porque se afasta dos eventos definidos pelo que eles são, para se interessar pelo que eles podem.

Está claro que a situação problemática enfrenta o tipo penal, que se caracteriza por reduzir ao máximo uma multiplicidade de situações: crimes contra pessoas, contra a honra, contra a liberdade individual, etc. Cada uma das normas criminais protege diferentes ativos legais pelo que são. O que há de errado com isso? Que tudo é previamente definido, e não há como alterá-lo dentro da gramática predominante. Como previsto por Hulsman e de Celis, "ao chamar um fato de crime", todos esses outros modos de reação são excluídos, para começar; o que significa limitar-se ao estilo punitivo e ao estilo punitivo do aparato sócio-estatal, isto é, a um estilo punitivo dominado pelo pensamento jurídico, exercido com grande distanciamento da realidade por uma estrutura burocrática rígida. Chamar um fato de "crime" significa se fechar desde o começo nessa opção infértil "(1984: 89-90). Como está claro, tanto Spinoza quanto o futuro abolicionista sabem da importância de criar palavras imprecisas para fazê-los dizer algo exatamente. Portanto, para Hulsman "[...] não há crimes ou delitos, mas situações problemáticas. E, além da participação das pessoas diretamente envolvidas nessas situações, é impossível abordar sua resolução com humanidade "(Ibid.: 90).

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E as alianças aumentam. Nada é mais prejudicial do que julgar os fatos "de fora", com transcendência, em relação à qual todo o abolicionismo possível está reunido. Spinoza, Nietzsche ou Christie chegam à encruzilhada de todo o sistema de julgamento, tão prevalente na tradição judaico-cristã. Hulsman, dentro da mesma linhagem de pensadores, afirma claramente: "À primeira vista, isso pode parecer paradoxal, de fato. Não é assim na prática da minha vida. Eu fundamentalmente experimento uma reticência em julgar, apreciar uma situação, antes de ter tentado capturar um modo de vida global e internamente"(Ibid.: 32). 

Utilizar uma situação problemática para escapar da lógica do julgamento - como Hulsman faz - é uma das tarefas do abolicionismo, que pode levá-lo para fora das restrições legais, e retornar aos seus protagonistas construtores de significado, e não seus destinatários. E essa situação problemática será definida, justamente, pelo que abre quem a atravessa, pelas possibilidades que proporcionam - as situações problemáticas - de afetar quem intervém nela. Em resumo, essa é a imanência não-digerível do sistema penal, e para a qual o abolicionismo sempre reivindicou.

Só assim compreendemos a urgência e a convicção sobre a necessidade de um novo marco conceitual, alheio à idiossincrasia punitiva. Só assim entendemos que "seria necessário se acostumar com uma nova linguagem, apto a expressar uma visão não estigmatizante sobre as pessoas e sobre as situações vividas. Assim, falar de "atos lamentáveis", de "comportamentos indesejáveis, de "pessoas envolvidas", de "situações-problema" já favorece uma nova mentalidade. As barreiras que separavam o evento e limitavam a possibilidade de resposta, o que impedia, por exemplo, relacionar, do ponto de vista da emoção ou do trauma vivenciado, um assalto à quebra com as dificuldades no trabalho ou na relação do casal. Liberta da compartimentalização institucional, uma linguagem aberta dá origem a possibilidades de agir até agora desconhecidas" (Hulsman e de Celis, 1984: 85, 1991: 198).

A imagem do mundo oferecida pelo sistema penal é apoiada principalmente pelas palavras, protocolos e maniqueísmos: despertar nas pessoas o compromisso com a criação de um vocabulário abre caminhos sempre imprevisíveis.

4- Os valores e o valor da punição

Toda cultura - e seus valores produzidos e produtores - afetam decisivamente o que, em geral, podemos ser tentados a criticar ou apoiar. Isso acontece na área da punição em particular, como resumido por Geertz (1987), argumentando que cada povo ama sua própria forma de violência. Embora seja frequentemente sugerido que um dos grandes flagelos desse período seja a queda da graça de certos valores, sabemos bem que o problema fundamental dos valores não é sua presença ou ausência, mas sua criação. A produção de valores aponta para o valor dos valores, para as avaliações anteriores que dão valor a determinados valores. Por este motivo Deleuze sugere que "as valorações, referidas ao seu elemento, não são valores, mas modos de ser, modos de existência daqueles que julgam e valorizam, servindo precisamente como princípios aos valores em relação aos quais eles julgam. Esta é a razão pela qual sempre temos as crenças, os sentimentos e pensamentos que merecemos com base em nosso modo de ser ou nosso modo de vida. Há coisas que não podem ser ditas, sentidas ou concebidas, valores em que só se pode acreditar na condição de valorizar o "baixo", de viver e pensar "humildemente". Há aquele essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil não são valores, mas representam o elemento diferencial do qual deriva o valor dos valores"(Deleuze, 2000: 8). Uma maneira de conceber a cultura, dentro das categorias indicadas, é como resultado e como um processo pelo qual esse resultado é alcançado. Avaliações, crenças, tradições, significados e valores são o que definem, sendo definidos, na construção sempre frágil da vida cotidiana - e da suspeita, segundo Garfinkel (1967), de compartilhá-la.

A cultura é treinamento, e isso é alcançado, para Nietzsche (1986), com a ética do costume, com a camisa de força social colocada no ser humano. Então, pode-se notar que todo hábito gerado por essa mesma cultura é arbitrário - embora o hábito de criar hábitos não seja. E a punição, o que mais é isso, se não for um hábito? E o caminho de praticá-lo, o que mais é, se não for um hábito? É claro que um dos elementos cardeais para entender o papel social da punição é localizá-lo como uma técnica que procurou engendrar a memória no homem, que por natureza não possui. A necessidade de retornar a pessoas previsíveis e responsáveis é um fator decisivo na história da punição e, como tal, é uma questão privilegiada para o abolicionismo. E este último deve-se tanto a tantos genealogistas, preocupados com o valor dos valores, por sua transvaloração e sua denúncia. É por isso que Nietzsche insiste que "a pena, diz-se, teria a coragem de despertar no culpado o sentimento de culpa [...]. [Mas] o verdadeiro remorso de consciência é algo muito raro entre criminosos e delinquentes; as prisões, as penitenciárias não são as incubadoras em que aquela espécie de verme roedor de preferência floresce [...]. Considerando as coisas como um todo, a pena endurece e torna frio, concentra, exacerba a sensação de estranheza, fortalece a força de resistência" (1986: 105). Portanto, é difícil saber com rigor por qual motivo as penalidades são impostas. Uma interpretação possível, entre outras, é a da indiferença, a da neutralidade, a dos valores envolvidos na especialização em uma área sensível da cultura, como o controle social. Se isso fosse verdade, mesmo em parte, a que poderíamos nos opor? Talvez à vulnerabilidade, atributo de todo ser humano, desde o início de sua vida em comunidade. E talvez, com base nesse sentimento coletivo de fragilidade, seja possível produzir - ou reinventar - uma série de valores compartilhados que evitam o uso excessivo de danos intencionais. Distingue-se um conjunto de critérios que, sem defini-los como consciência coletiva, poderíamos considerá-los como ampla aceitação. Vamos pensar apenas em alguns: sendo gentil, não matando, não torturando, não infligindo dor intencionalmente, o perdão está acima da vingança (Christie, 2004). Esses valores básicos têm uma presença tangível, embora também seja verdade que é uma presença frágil, então uma tensão é gerada: quanto mais indolência, menos chance de ser orientada por eles. E vale lembrar que para o abolicionismo quanto possível, o que realmente merece compromisso não é a reclamação nostálgica por um passado melhor, mas a criação de valores que são o produto de outra imagem do homem, que nada mais é do que pensar em outra imagem de punição. É a partir desse "pathos da distância [elemento diferencial, sensação de distância] que devemos nos arrogar o direito de criar valores, cunhar nomes de valores: o que importa sua utilidade?" (Nietzsche, 1986: 37). 

A punição, insistimos nisso, é um valor que tem a particularidade de ser usado para dar valor a outros valores. Em princípio, e por princípio, um Código Penal para proteger a segurança jurídica faz isso. Mas, da mesma forma que procura reforçá-los, simultaneamente os enfraquece. Assim, impor uma penalidade é a busca constante de um certo equilíbrio entre danos causados e danos infligidos, além do fato de que esse objetivo é totalmente irrealizável: a punição não gera uma solução, pelo contrário, é sempre um problema.

No entanto, é um problema nosso, sempre atual, pois essa punição, juntamente com sua dor, não tem apoio na utilidade social que lhe é frequentemente atribuída, não serve para melhorar ninguém, nem para reforçar certos valores, muito menos para controlar ao crime. É um problema ético, como definimos este último, e é um problema cultural também. Depende de como queremos criar memória para o homem. E nesse sentido, diz Chrisite, "uma alternativa para a concepção da lei como algo preexistente, vindo de Deus ou da natureza, é aquele que sustenta que os princípios básicos da justiça estão presentes o tempo todo, mas suas formulações concretas têm que ser recriadas repetidas vezes.

De acordo com esta alternativa, a justiça não é formada por princípios preexistentes que devem ser escavados usando os métodos do Direito ou das ciências sociais, mas pelo conhecimento comum que cada geração deve formular em princípios jurídicos [...]. Mais que uma ferramenta de engenharia social, o nível e o tipo de punição são um espelho das normas que reinam em uma sociedade [...]. Somos livres para escolher o nível de dor que nos parece aceitável; não há diretrizes estabelecidas, exceto em nossos valores morais [...]. Nossa oposição, como trabalhadores da cultura, [...] consiste em demolir esse mito e trazer toda a operação novamente ao campo da cultura. O fato de distribuir a dor, para quem e por que, contém um conjunto infinito de questões morais sérias. Se há especialistas nessas questões, são os filósofos. Há também especialistas em dizer que os problemas são tão complexos que não podemos agir de acordo com eles. Nós temos que pensar. Talvez essa não seja a pior alternativa quando a outra opção é a distribuição da dor" (1993: 189-191). Portanto, não devemos renunciar a avaliar a punição como um valor na - e da - nossa sociedade, a partir do qual se pretende entregar valor em relação a outros valores. Em suma, o nível e o tipo de valores que precisamos proteger através da punição são um espelho das regras que reinam em uma sociedade.

5- Uma micropolítica, as minorias

a- Por que devemos caracterizar o abolicionismo como uma molécula sobre a qual falamos neste trabalho? Porque, como indicam Deleuze e Guattari (1988), consideramos que toda sociedade e toda pessoa estão atravessadas por dois segmentos: um social molar e outro molecular desejante. Não há contradição entre os dois, mas coexistência. E a análise dessa coexistência é a que deve levar adiante a micropolítica. Em outras palavras, a diferença mais importante para essa abordagem não é entre o social e o individual, mas entre o molar que domina as grandes representações sociais e o molecular que funciona no nível dos desejos e crenças. Guattari e Rolnik ensinam que "a questão micropolítica - isto é, a questão de uma análise das formações de desejo no campo social - fala sobre a maneira pela qual o nível das mais amplas diferenças sociais (que eu chamei de "molar") cruza com o que chamei de "molecular" (2006: 149) .

Não pretendemos simplificar a questão dizendo que o molecular seria bom e o molar seria ruim. É essencial enfatizar que você pode desfrutar de todas as credenciais, ser um famoso abolicionista em termos molares, mas ser identificado de acordo com as exigências punitivas de certos eventos particularmente chocantes. É por isso que o abolicionismo é possível e, portanto, só pode se tornar abolicionista. Não existem vouchers que nos isentam de fazer o trabalho árduo de nos recompor - para cada evento - o mais próximo possível de uma resposta não excludente. E como Deleuze já nos disse, "ninguém pode fazer por nós a lenta experiência do que é apropriado à nossa natureza, o lento esforço para descobrir nossas alegrias" (2002b: 224-5).

É impossível nos consagrarmos como abolicionistas de antemão. O abolicionismo é um processo e a batalha no meio desse processo. Não há resultado para chegar - não chegamos a ... - mas devemos nos submeter de tal maneira que a punição não seja boa responda pelo nosso modo de existência. É nesse ponto que vemos o que uma situação problemática - sua latitude e longitude - e o que podemos fazer nela, ou seja, que valorizações devemos ser capazes de alcançar certos valores não punitivos.

b- Voltando à micropolítica, o mais importante para isso não é nem a contradição nem a coesão do tecido social. Do ponto de vista da micropolítica, dizem Deleuze e Guattari, "uma sociedade é definida por suas linhas de fuga, que são moleculares, algo sempre flui ou foge, o que escapa às organizações binárias [...]. Assim, o ponto é que o molar e o molecular não são apenas distinguidos pelo tamanho, escala ou dimensão, mas pela natureza do sistema de referência considerado "(1988: 220-1).

E a micropolítica, especificamente abolicionista, pretende, com base em uma série de possibilidades e limitações oferecidas por questões históricas e conjunturais, exaltar ao máximo uma maneira de perceber o mundo em que o atalho punitivo não é preferível. Nas palavras de Bianchi, "enquanto a idéia de punição permanecer intacta como uma maneira razoável de reagir ao crime, nada de bom pode ser esperado de uma mera reforma do sistema. Em resumo, precisamos de um novo sistema alternativo de controle do crime que não se baseia em um modelo punitivo, mas em outros princípios legais e éticos, de tal maneira que a prisão ou outro tipo de repressão física se torna fundamentalmente desnecessária" (Larrauri, 1998: 29).

Mas especificamente, essa micropolítica - além de usar algumas categorias sociais amplas como mulheres, homens, marginalizados, garantidos etc. - aponta para o fator não representável do desejo, que circula abaixo de todas as ideologias construídas. O que não podemos atribuir é o que podemos definir como abolicionismo molecular, como um movimento que luta contra o uso da violência como forma de controle da violência (Bianchi, 1987).

Essa micropolítica abolicionista, que é traduzida com sucesso a partir do futuro abolicionista ou abolicionista molecular, vem sendo esboçada há algum tempo. O caso de Mathiesen é um dos mais altos: "Precisamos de ideias sobre como organizar as relações humanas de uma maneira alternativa, para que os conflitos sejam resolvidos de novas formas que sejam socialmente aceitáveis. Em suma, precisamos de imagens da sociedade ou estruturas dentro da sociedade, formuladas como ideologias, no bom sentido da palavra, sobre as quais trabalhar. Em minha opinião, é muito importante desenvolver as condições que fomentam e alimentam os elementos antiautoritários das relações humanas" (1989: 117).

c- De tudo o que foi dito até agora, fica claro que o abolicionismo, como a micropolítica, como evolução molecular, é uma questão de minorias. Não está destinado a conquistar discursos axiomáticos, mas enfraquecê-los, evitar que a estupidez que eles implicam atinjam limites insuspeitados. A questão fundamental não é a verdade ou a mentira, uma vez que existem muitas verdades construídas com base em certas tolices. Na criminologia, temos um exemplo claro em realismo de direitas.

A estupidez não é um erro de pensamento, mas uma estrutura, o sintoma de um modo de pensar baixo. Diante disso, o ataque é realizado menos das "escolas" do que das "trincheiras". O abolicionismo escolhe o último, precisamente porque é uma minoria que renuncia aos tribunais, sejam eles jurídicos ou criminais. E as minorias, sabe-se, "não podem ser distinguidas numericamente das maiorias, uma minoria pode ser mais numerosa do que a maioria". O que define a maioria é um modelo que deve ser conformado ... Em contraste, as minorias não têm um modelo, são um processo. Pode-se dizer que ninguém é maioria. Todos, de uma forma ou de outra, estamos presos a uma minoria que nos arrastaria para caminhos desconhecidos se decidíssemos segui-lo" (Deleuze, 1999: 271-2).

A potência do abolicionismo vem dos conceitos e perspectivas que ele foi capaz de criar, um poder que será integrado em maior ou menor medida no modelo punitivo predominante, mas nunca dependendo dele. O abolicionismo é sempre uma minoria criativa que persevera em motivar percepções com as quais o castigo do estado é experimentado como injustificável.

7- A ilha, ainda deserta

O abolicionismo penal é possível, assim como as ilhas desertas de Deleuze (2005), um estatuto científico frágil. E esse abolicionismo também expande algo que pertence às ilhas desertas. É um movimento da imaginação que faz dessas ilhas um modelo, um protótipo da alma coletiva. O abolicionismo não pode avançar sem o apoio de um modelo coletivo, mas menor. É uma guerra de guerrilhas que oferece um vocabulário refratário às armadilhas da simplificação punitiva, para ir contra os clichês que buscam redirecionar qualquer situação problemática para o caminho maniqueísta do sistema penal. É também uma disputa sobre a punição como um valor, bem como sobre o valor da punição: os valores que precisamos proteger através da punição são um espelho do movimento da alma coletiva. É, finalmente, uma micropolítica que exige uma maneira de maximizar o movimento da alma coletiva em que o atalho punitivo não é preferível. Em suma, o abolicionismo em que trabalhamos confirma, em primeiro lugar, que a capacidade de resistência ou, pelo contrário, a submissão a um controle, é decidida no decorrer de cada tentativa.



 

¹Ezequiel Kostenwein, do Instituto de Cultura Jurídica Universidade Nacional de La Plata Conicet (Argentina). 

² Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas. 

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Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

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