O DOLO E A CULPA NO DIREITO CIVIL
Rogério Tadeu Romano
I – A SISTEMATIZAÇÃO DA MATÉRIA NO DIREITO ROMANO
O ato ilícito, a teor do artigo 186 do Código Civil, é o praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo. Causa dano a outrem, criando o dever de reparar tal prejuízo, como se observa da leitura dos artigos 927 e 944 do Código Civil, seja ele moral ou patrimonial(Súmula 37 do STJ). Logo, produz efeito jurídico, só que este não é desejado pelo agente, mas imposto pela lei.
Sabe-se que para a caracterização do ato ilícito, é necessário que haja uma ação ou omissão voluntária, que viole um direito subjetivo individual, causando dano a outrem, ainda que exclusivamente moral(Código Civil, artigo 186, segunda parte). É preciso, portanto, que o infrator tenha conhecimento da ilicitude de seu ato, agindo com dolo, se intencionalmente procura lesar outrem, ou culpa, se consciente dos prejuízos que advém de seu ato, assume o risco de provocar o evento danoso.
Havia no direito romano, a culpa, no sentido lato, como um comportamento consciente e ilícito que provocava o dano. Podia consistir numa ação ou em uma omissão(culpa in faciendo e culpa non faciendo), embora inicialmente o direito romano só definisse a culpa como ação. Entretanto, o direito extracontratual supunha sempre uma culpa in faciendo.
A culpa em sentido lato compreendia a culpa propriamente dita e o dolo. O dolo é a vontade de provocar o dano, ao passo que a culpa propriamente dita é a simples falta de diligência na ocorrência do dano.
O direito justiniâneo classificou a culpa segundo a gravidade em culpa lata e culpa laevis, e conforme a pessoa em culpa in abstracto e culpa in concreto. A culpa lata consiste em não usar a diligência que até o homem descuidado costuma ter; a culpa laevis consiste em não usar a diligência que só em a diligens paterfamilias. A culpa in abstracto configurava-se quando algém não se comportava com a cautela do diligens paterfamilias, a culpa in concreto ocorria quando esse comportamento nem se nivela com a diligência que a pessoa costumava ter com os próprios negócios. Em princípio, dizia-se que para o nascimento da responsabilidade bastava a culpa leve e in abstracto. No direito justiniâneo a culpa lata estava equiparada ao dolo(culpa lata dolo aequiparatur), salvo acerca de delitos.
Por sua vez, a consequência do ato ilícito era a obrigação de ressarcir o dano à parte lesada, a que chamamos de responsabilidade. A responsabilidade, funda-se no direito romano, na culpa, mas era lícito excluir a responsabilidade por culpa(propriamente dita) e casos havia de responsabilidade sem culpa. A doutrina traz à colação, para esses casos, o da responsabilidade do paterfamilias pelo direito do filho ou escravo e a do habitador de uma casa pelos danos causados aos transeuntes por coisas tombadas de sua casa, não importando quem fosse o agente da queda; o direito justiniâneo explica-os, porém, pela culpa in elegendo, que o pater familias e o habitator cometeriam por haver escolhido mal o escravo ou a pessoa que receberam em sua casa.
No direito clássico, eram casos de responsabilidade sem culpa os oriundos da falta de custódia de coisa alheia, nos quais a responsabilidade só se excluía diante da força maior, de nada valendo a prova da maior diligência. Mas o direito justiniâneo justificava esses casos com a noção de culpa, recorrendo a uma culpa levíssima, em que incorre o detentor da coisa por não haver usado de exatissima diligentia. Mas a exclusão da responsabilidade por dolo, cláusula de não indenizar, era ilícita, porque contrariava à moral e os bons costumes(pactum ne dolus praestatur.
Na lição de Giffard(Précis de Droit Romain, II, n. 310), o direito romano não chegou a elaborar a noção abstrata do ato ilícito, que conheceu com a denominação especial de delitos civis, na ocorrência de certos atos, como tais especificamente denominados e caracterizados: furtum, noxia et iniuria. Eram ilícitos típicos, que sujeitavam quem os cometesse à pena civil cominada, e esta responsabilidade dizia-se ex delicto.
II – A GRADUAÇÃO DA CULPA E OS DELITOS E QUASE-DELITOS
A doutrina moderna esquematizou as figuras causadores do dever de indenização, e transformar os tipos casuísticos dos delitos romanos na figura do ato ilícito, categoria genérica de procedimento que sujeita o agente à reparação, desde que se verifique o enquadramento da sua conduta nos respectivos extremos legais, como ensinou Roberto de Ruggiero(Instituições de direito civil, § 186).
Observa-se, nessas lições, a presença do dolo(infração consciente do dever preexistente ou a infração da norma com a consciência do dever preexistente ou a infração da norma com a consciência do resultado) e a culpa, a violação desse dever sem a consciência de causar dano. Há, certo, alguns autores que cogitaram na culpa uma gradação, que extrema a chamada culpa grave, equiparável ao dolo, da culpa leve, que seria a violação de um dever em situação na qual se encontraria o bom pai de família, e ainda culpa levíssima, em que se apresentaria a atuação do homem diligentíssimo, padrão de cuidado e probidade. Some-se a isso, por inteligência do que a doutrina seja italiana ou francesa, a dicotomia delitos e quase delitos.
Aliás, no direito romano, para Ruggiero(obra citada, pág. 389), estudando a matéria, à luz do direito italiano, seriam, pois, quase-delitos os casos de responsabilidade por fato alheio, isto é, aqueles em que alguém é obrigado pelo dano causado por uma pessoa que está na sua dependência ou lhe está subordinada, bem como pelos danos causados por um animal ou por um imóvel que lhe pertença. Assim haveria delito em qualquer outro fato ilícito próprio. Outros transferem para o campo do delito os casos de responsabilidade por fato alheio e englobam no do quase-delito somente os casos de responsabilidade resultante não de uma causa humana, mas de fato dos animais ou de coisas inanimadas; o delito compreende, desta forma, para os estudiosos, tanto os fatos dolosos como os culposos; tanto o fato próprio como alheio.
Mas a mais autorizada doutrina, segundo Ruggiero, afasta estes conceitos, por terem sido certamente estranhos aos compiladores do Código Francês e a quem deles foi o principal inspirador(Pothier), fixando o critério de distinção precisamente no elemento da culpa ou do dolo. Delito seria o fato danoso imputável, voluntário e praticado com o deliberado propósito de prejudicar ou de violar o direito alheio(dolo); quase-delito, o ato igualmente voluntário e imputável, mas que, sendo praticado sem má intenção, consiste numa negligência, isto é, em não se tem previsto as consequências danosas do comportamento próprio(culpa em sentido técnico). Por outro lado, porque a par da responsabilidade direta(por fato próprio) existe ainda uma responsabilidade indireta(por fato alheio ou pelo fato das coisas ou de animais próprios) e esta segunda espécie de responsabilidade se resume sempre numa culpa(por não se ter vigiado a pessoa dependente, por não se ter guardado o animal, por não se ter reparado a tempo o edifício, o âmbito do quase-delito alarga-se, vindo a englobar-se nele, sejam os fatos lesivos próprios(desde que culposos), sejam os fatos lesivos de terceiros, de animais, ou de cousas inanimadas.
A doutrina observa, na Europa, a noção mais precisa de delito e quase-delito nos seguintes requisitos:
a) nem toda a violação do direito alheio é delito;
b) qualquer violação dessas não pode constituir senão num fato positivo. Se em responsabilidade por omissão incorre só quem era obrigado a cumprir alguma coisa por virtude de uma relação precedente, é evidente que a omissão não poderia ser causa de responsabilidade quando se esteja no campo da culpa aquiliana, a qual pressupõe a violação de um direito independente de qualquer vínculo preexistente. Ainda anotou Ruggiero(obra citada, pág. 392) que nos quase-delitos, a culpa em sentido técnico, que os distingue dos delitos, e ela mesma uma omissão, porquanto é defeito da diligência devida, mas só em tal caso é verdade que o ato ilícito possa consistir num fato, quer positivo, quer negativo;
c) que o fato lesivo viole ainda ou não a lei penal, é indiferente para o conceito de delito no campo do direito civil. O delito civil se distingue do penal precisamente por isso: que o primeiro é violação de um direito subjetivo privado e o segundo é violação da lei penal; o primeiro implica como consequência a indenização do dano, o segundo uma pena, seja corporal ou pecuniária, estabelecida no interesse exclusivo do Estado. Do delito penal ou crime nasce, pois, sempre uma ação penal(ainda outras medidas, previstas em lei, como a transação, o sursis processual, nos crimes de menor potencial ofensivo), podendo nascer a ação civil, onde se visa a indenização, para alguns ressarcimento, pela conduta que levou ao dano; do delito civil somente nasce esta última ação. Portanto, assim como há atos que são delitos civis, mas não penais, da mesma forma há outros que são delitos penais, mas não civis e, finalmente, outros que ainda revestem uma e outra qualificação. Ao passo que o delito civil é uma categoria abstrata e geral, os delitos penais constituem tipos fixos e concretos no direito penal, à luz do que preceitua o princípio da legalidade;
d) não há um delito civil se não houver dano. Antes fala-se em ação inibitoria, que visa a cessar a continuidade do ilícito ou que ele se inicie(de cunho preventivo, nos casos de obrigações de fazer ou não fazer). Depois se fala em dano, onde o objeto para o lesado sera obter, em juízo, um ressarcimento. É, pois, indiferente que este seja no patrimônio ou em outros bens da pessoa, como os bens imaterais. O dano é sempre indenizável;
e) o fato lesivo deve ser voluntário e imputável. Assim se se abstrai, na verdade, dos casos de responsabilidade objetiva ou ex re, nos quais não se investiga acerca da culpa, é sempre elemento indispensável da responsabilidade por delito ou quase-deltito, segundo Ruggiero, ainda na linha de estudo do direito civil italiano, que a ação se ligue a uma livre determinação da vontade, que ela consista num propósito malicioso ou numa imprevidência das consequências danosas do comportamento próprio(dolo ou culpa) e ainda que seja mínima a culpa do agente(in lege Aquillia et levissima culpa venit). Tudo isso ainda se acrescenta no que chamamos de responsabilidade objetiva, pela qual assim como o proprietário do edifício e do animal respondem pelos danos por eles provocados só por ser seu proprietário, da mesma forma deve responder pelos danos produzidos por um demente ou por uma criança, ainda que nenhuma culpa se pudesse atribuir àqueles que tinham a seu cargo a sua guarda ou vigilância. Há, por certo, todavia, fatos que, mesmo sendo imputáveis, não originam responsabilidade posto que desejado, não foi o efeito de uma livre determinação, como aqueles praticados em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal.
A responsabilidade que resulta, seja do delito ou ainda do quase-delito é o dever de indenizar o dano produzido à vítima do fato lesivo.
III – A CULPA E SUA CONCEPÇÃO MODERNA
Posteriormente, como explicitou Caio Mário da Silva Pereira(Instituições de direito civil, 1993, pág. 455), a doutrina ateve-se as figuras do ato ilícito puro e simples. Sem indagar-se se o agente tinha ou não a consciência do resultado e sem cogitar se o seu procedimento se escusaria em função de qualificar-se ou não como homem diligente e probo, mas, atendendo apenas para o caráter antijurídico da conduta e seu resultado danoso, quando o direito moderno fundiu as ideias de culpa e dolo, abolindo sutis distinções.
Modernamente, a ideia de culpa abrange toda a espécie de comportamento contrário ao direito, seja intencional ou não, porém imputável, por qualquer razão ao causador do dano, como ainda ensinou Roberto de Ruggiero. É certo que essa concepção genérica de culpa – violação de uma obrigação preexistente – que confina com o dever geral negativo – não prejudicar a outrem – deve ser completada, acrescentou De Page, por um elemento concreto, positivado no erro de conduta, e então a ideia se comporta em definitivo, dizendo-se que a culpa importa em um erro de conduta, que leva o indivíduo a lesar o direito alheio.
Há a culpa contratual, se se trata de dever oriundo do contrato. Em caso contrário, chama-se culpa extracontratual ou aquiliana, nome este último preso à tradição do direito romano, uma vez que naquele direito o dever de reparar o dano por fato culposo não contratual decorria da lei aquilia – a lege Aquilia.
Mas, ao lado da culpa contratual e da culpa extracontratual, a doutrina alemã, com Ihering, distinguia a culpa in contrahendo, que se pode caracterizar no ilícito, situado na conduta do agente que leva o lesado a sofrer prejuízo do próprio fato de celebrar o contrato. Isso contra a opinião de Ihering, que a conceituava como culpa contratual, é antes a rigor uma espécie de culpa aquiliana, porque não resulta de um dever predefinido em contrato, como acentuou Caio Mário da Silva Pereira(obra citada), mas decorre do fato de criar o agente uma situação em que a celebração do ajuste é a causa do prejuízo. Fundada pelo criador, na doutrina do interesse geral negativo, foi aceita a noção de culpa in contrahendo pelo Código alemão, no caso de um dos contratantes induzir o outro à celebração do negócio, muito embora já conhecesse a impossibilidade da prestação(BGB, artigo 307).
Há culpa própria, quando o agente é obrigado à reparação motivada por seu procedimento antijurídico; culpa de terceiro, naquelas situações em que a conduta antijurídica do agente repercute em outro, admitindo-se o dever de indenizar por culpa de uma pessoa diversa do causador do dano, mas a ele ligada por uma relação jurídica especial, como no caso do empregador, que responde por ato do empregado.
A culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência e cautela, compreende o dolo, que é a violação intencional ou de omissão de diligência e cautela, compreende: o dolo, que é a violação intencional que é a violação intencional ou de omissão do dever jurídico, e a culpa e sentido estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de violar um dever, como disse Yussef Said Cahali(Culpa – direito civil – in Enciclopédia Saraiva do Direito, volume 22, pág. 24).
IV – A CLASSIFICAÇÃO DA CULPA MODERNAMENTE
Observamos que a culpa, na doutrina pátria, é classificada:
a) Em função da natureza do dever violado: assim se tal dever se fundar num contrato(CC, artigo 389) tem-se a culpa contratual e a culpa extracontratual;
b) Quanto à sua graduação: a culpa será grave quando, dolosamente, houver negligência extrema do agente, não prevendo aquilo que é previsível ao comum dos homens. A leve(CC, artigo 629) ocorrerá quando a lesão de direito seria apenas evitável com atenção ordinária, ou adoção de diligências próprias de um bonus pater familias. Será levíssima(CC, artigo 243 a 246) se a falta foi evitável por uma atenção extraordinária, ou especial habilidade e conhecimento singular;
c) Em relação ao modo de apreciação: Considera-se in concreto a culpa quando se além do exame da imprudência ou negligência do agente, e in abstrato, quando se faz uma análise comparativa da conduta do agente com a do homem normal, ou seja o diligente pater familias dos romanos. Agostinho Alvim(Da inexecução das obrigações e suas consequências, 3ª edição, página 201, n. 152) ensinou que a culpa é, em regra, apreciada abstratamente, pois o Código Civil, ao dizer nos artigos 582 e 629 que sua apreciação é in concreto, não visa concretamente, mas sim encarecer a responsabilidade do agente;
d) Quanto ao conteúdo da conduta culposa; Se o agente praticar um ato positivo(imprudência) sua culpa é in committendo, se cometer uma abstenção(negligência) tem-se culpa in omittendo. A culpa in elegendo advém da má escolha daquele a quem se confia a prática de um ato ou o adimplemento da obrigação. A in vigilando, prevista no artigo 932, IV, do Código Civil) decorre da falta de atenção com o procedimento de outrem, por cujo ato ilícito o responsável deve pagar. Pelo artigo 933 do Código Civil, as pessoas indicadas no artigo 932, I a V, mesmo que não tenham culpa, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos, mas poderão, se o causador do dano não for descendente seu ou absoluta ou relativamente incapaz, reaver dele o que pagou, sendo solidariamente responsáveis pela prática do ato, a teor do artigo 942, parágrafo único do Código Civil. Têm obrigação de reparar o dano independentemente de culpa por força do artigo 933 e quando a atividade lícita desenvolvida implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, como se observa no artigo 927, parágrafo único). Será hipótese em que a responsabilidade civil é objetiva e não subjetiva, embora alguns autores entendam que a responsabilidade é subjetiva, em razão da presunção absoluta iure et de iure de culpa.
Há a chamada responsabilidade sem culpa, quando a obrigação de reparar o dano sofrido, independe de apuração da culpa do agente.
No caso da responsabilidade pelo fato de terceiro, há a culpa in elegendo, aquela que se caracteriza na má escolha do preposto; e culpa in vigilando, quando advém da falta de atenção com o procedimento de outrem, por cujo ato ilícito o responsável deve pagar.
Observe-se, por fim, que, em qualquer hipótese, para incidência da responsabilidade civil deverá haver a ocorrência de um dano, material e ou moral.