Em 1909, no Reino Unido, o gabinete liberal do Primeiro Ministro Herbert Asquith apresentou a proposta de lei orçamentária. Defendendo a criação de um amplo programa de seguridade social, os liberais haviam proposto a instituição de cobertura para aposentadorias, pensões e benefícios a pessoas pobres a partir de 70 anos. Para custear os valores a serem pagos aos beneficiários, Lloyd George [1], então Chanceler do Tesouro, quando da elaboração da lei de orçamento, propôs a elevação do imposto sobre a renda e a criação de outro imposto que incidiria sobre a transferência da propriedade sobre a terra.
Por fixar a assistência a necessitados, esta lei recebeu o nome de "orçamento do povo". Ao apresentar sua proposta, Lloyd George proferiu o seguinte discurso no parlamento:
Este é um orçamento de guerra. É para levantar dinheiro para travar uma guerra implacável contra a pobreza e a falta de honestidade. Não posso deixar de esperar e acreditar que antes que esta geração tenha passado, teríamos avançado um grande passo em direção àquele bom momento, quando a pobreza, a miséria e a degradação humana que sempre seguem em seu acampamento, serão tão remotas para o povo de este país como os lobos que uma vez infestaram suas florestas.
O "orçamento do povo" foi aprovado na Câmara dos Comuns, mas foi rejeitado, por 350 votos a 75, na Câmara dos Lordes, então dominada por conservadores que discordavam sobre a imposição do novo imposto sobre a terra, até porque muitos deles ainda pertenciam à aristocracia fundiária e seriam diretamente atingidos pela tributação. Os lordes alegaram que o governo, na verdade, pretendia retirar recursos de pessoas com maior patrimônio para distribuí-los aos mais pobres. O veto paralisou as finanças nacionais, pois não havia uma terceira casa para desempatar e, tampouco, havia previsão legal ou constitucional que resolvesse rapidamente o impasse entre as duas câmaras.
A única praxe aplicável ao caso residia no aumento, pelo monarca, do número de integrantes da câmara dos lordes, denominados de pares, os quais seriam ligados ao partido liberal. Com a mencionada alteração, os novos pares conseguiriam alterar o resultado da votação a favor dos liberais e o orçamento seria aprovado[2]. Esta situação conflituosa evidenciou que o sistema parlamentarista ainda apresentava algumas falhas e precisava de reformas.
Lloyd George fez intensa campanha nacional contra a posição da Câmara dos Lordes, acusando-a de impedir os mais pobres a terem direito a uma velhice com o mínimo de dignidade. Sua postura combativa foi decisiva nessa difícil missão de derrubar séculos de domínio aristocrático dentro do jogo parlamentar[3].
A impopularidade da Casa Alta subiu perante a população e os liberais viram neste fato a possibilidade para resolver a crise. O Primeiro Ministro Herbert Asquith procurou o apoio do Rei Eduardo VII para derrubar o veto dos lordes. Mas, o monarca decidiu que deveria seguir o precedente observado na conflituosa aprovação da Lei de separação da Igreja Irlandesa, em 1869, quando foram necessárias novas eleições gerais para comprovarem o apoio público à proposta do partido liberal.
Os liberais concordaram e foram, então, convocadas eleições gerais para janeiro de 1910. O Partido Liberal não obteve sozinho a maioria das cadeiras no parlamento. Mas realizou uma coligação majoritária com o Partido Parlamentar Irlandês e com o Partido Trabalhista. Na nova Câmara dos Comuns recém-eleita[4] pela vontade popular, o orçamento, contendo o programa de seguridade social dos liberais, foi aprovado. Em face deste resultado, a Câmara dos Lordes se viu obrigada a aceitar a lei orçamentária, caso contrário, teria sua composição alterada. Em 28 de abril de 1910, ou seja, no dia seguinte a sua aprovação na Câmara dos Comuns, o orçamento foi posto em votação. Os lordes conservadores se abstiveram de votar, e, em consequência, a lei foi aprovada. O consentimento real foi conferido no dia 29 de abril, tornando o orçamento uma lei nacional. Estava resolvida a primeira questão.
Mas havia ainda a necessidade de impedir que este quadro de crise entre as casas legislativas se repetisse. O país não poderia ficar paralisado de novo, por causa do veto imposto pela Câmara Alta. Para evitar o ocorrido, seria necessário retirar a possibilidade da Câmara dos Lordes vetar futuras leis orçamentárias. Tratava-se de uma tarefa muito difícil, pois, na prática, estava sendo eliminada uma das principais competências da segunda casa legislativa e criando uma clara ascendência dos comuns sobre os lordes.
Mas os liberais resolveram enfrentar o desafio, alegando que a Câmara dos Comuns era formada por membros eleitos e, consequentemente, deveria ter ascendência sobre a Câmara dos Lordes, cujos membros não eram eletivos. Foi, então, proposta a Lei do Parlamento fixando a retirada do poder de veto sobre leis financeiras, até então atribuído aos lordes. Evidentemente, a Câmara Alta não aceitaria uma reforma que, na prática, estava lhe retirando os seus poderes.
Novamente o monarca teria que ser envolvido para solucionar a questão. Mas, desta vez, o rei Eduardo VII falecera em 06 de maio de 1910, sendo substituído por seu filho, George V. O Primeiro Ministro Herbert Asquith solicitou ao novo monarca que convocasse uma segunda eleição geral para que, caso os lordes rejeitassem a reforma, fossem criados os pares liberais necessários à aprovação. Se o rei não atendesse a esta solicitação, o gabinete renunciaria.
George V se viu, portanto, envolvido no mesmo problema de crise constitucional entre as duas casas legislativas que seu pai enfrentara. O monarca acabou cedendo e, em dezembro de 1910, foram realizadas novas eleições gerais, com nova vitória da coalização liberal. Em agosto de 1911, o Parliament Act foi aprovado, na Câmara dos Lordes, por 131 votos a 114[5].
O Parliament Act 1911 traz três disposições principais. Na seção I, ela prevê que a Câmara os Lordes apenas poderá aprovar leis que contenham disposições sobre impostos, receitas e despesas pública, empréstimos e dívidas do tesouro nacional ou outras disposições orçamentárias e relativas a finanças públicas. Consequentemente, projetos de leis que contenham este conteúdo, se aprovadas pela Câmara dos Comuns, não poderão ser vetadas e serão encaminhadas para o consentimento real.
Em sua Seção II, o Reforma Act prevê que os demais projetos de lei apenas podem ficar suspensos por até dois anos, desde a sua apresentação. Ou seja, se fosse aprovado pela Câmara dos Comuns, em três sessões separadas, desde que passados dois anos, o projeto poderia ser apresentado diretamente para aprovação real, e, assim, virar lei. Consequentemente, o poder de veto a um projeto dos comuns, até então existente, foi substituído pelo poder de atrasar a sua aprovação, pelo período máximo de dois anos.
Por fim, foi alterada a Lei Septenial, de 1715, reduzindo-se a regra de duração do parlamento (Câmara dos Comuns) de sete anos para cinco anos.
O Ato do Parlamento de 1911 reduziu significativamente o papel de casa revisora até então desempenhada pela Câmara dos Lordes. Os conservadores continuaram a deter a maioria na Câmara Alta, mas esta situação seria alterada em face da previsão de reestruturação nas regras para composição da Câmara dos Lordes, que poderia, inclusive, passar a ser eletiva. No entanto, em 1914, iniciou-se a Primeira Guerra Mundial, o que acabou paralisando o avanço desta agenda e levando a discussão para o futuro.
O Parliament Act de 1911 seria utilizado para pacificar os futuros conflitos surgidos entre a Câmara dos Comuns e a Câmara dos Lordes. Desde a entrada em vigência, as novas regras já foram utilizadas por seis vezes, dentre elas, temos a Lei de Crimes de Guerra (1991), a Lei de Eleições Parlamentares Européias (1999) e a emenda à Lei de Delitos Sexuais [6] (2000). A sua ultima utilização ocorreu quando o trabalhista Michael Martim, que presidiu a Câmara dos Comuns entre 2000 e 2009, invocou o Parlament Act de 1911, para aprovar a lei de proibição de caça com a utilização de cães.
[1] Em 1908, Lloyd George havia visitado a Alemanha e procedeu a uma análise detalhada do sistema de seguridade social implantado por Bismarck. O avançado modelo alemão exerceria forte influência sobre as propostas de seguridade social que Lloyd George apresentaria.
[2] Havia precedentes deste caso. Para solucionar o impasse entre as duas Câmaras pela aprovação do Tratado de Utrecht, a rainha Anne criou doze pares conservadores a mais na Câmara dos Lordes, de modo a mudar o resultado da votação. Em 1831 e 1832, o impasse entre as Câmaras se repetiu. Nestes anos, a Câmara dos Lordes rejeitou a reforma eleitoral aprovada pela Câmara dos Comuns. O rei Guilherme IV, por solicitação do Primeiro Ministro Earl Gray, ameaçou a criação de novos pares, de forma a alterar a votação. Diante desta pressão, os lordes acabaram cedendo.
[3] Lloyd George nunca pertenceu à nobreza (apenas no ano de sua morte, seria elevado à nobreza). Sua família também não possuía ligações aristocráticas. Na verdade, ele era galês e o inglês era a sua segunda língua. Seu pai era professor em escola primária. Sua mãe era filha de um pastor batista. Desde cedo, Lloyd alinhou-se a causa da melhoria de vida do homem comum em face dos que ele denominava de "duques" (aristocracia). De 1916 a 1922, assumiu o cargo de Primeiro Ministro. O envolvimento com a Primeira Guerra Mundial e as conseqüências do pós guerra se sobreporiam a sua agenda social.
[4] Nas eleições gerais de 1910, o Partido Liberal passou a ocupar menos cadeiras na Câmara dos Comuns. No entanto, os liberais formaram uma coligação com o Partido Parlamentar Irlandês (IPP) e com o Partido Trabalhista, o que lhes garantiu a maioria. O apoio irlandês deveu-se ao veto dos lordes, em 1893, à proposta do Primeiro Ministro William Gladstone, de “Home Rule”, a qual tentava criar um parlamento próprio na Irlanda. Como retribuição pelo apoio, o Primeiro Ministro liberal Asquith apoiou novamente a criação da assembléia irlandesa, mas os conservadores se opuseram à proposta.
[5] Votaram favoravelmente à aprovação do Parliament Act, onze dos treze lordes espirituais (integrantes da igreja anglicana) e vinte pares conservadores.
[6] A emenda alterou a idade mínima para o consentimento de atos homossexuais, que foi reduzida para dezesseis anos.