TRIBUNAL DO JÚRI: ENSAIO SOBRE O DISCURSO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA.

02/08/2019 às 13:34
Leia nesta página:

trata-se de anotações sobre a forma e o mérito do discurso do Promotor de Justiça em Plenário do Tribunal do Júri

1. INTRODUÇÃO

Na Constituição Federal de 1988, é reconhecida a instituição do Júri com a organização que lhe der a lei, com competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio doloso, infanticídio, participação em suicídio e o aborto, tentados ou consumados), encontrando-se disciplinado no artigo 5°, XXXVIII, inserido no Capítulo Dos Direitos e Garantias Individuais. Referidos crimes seguirão o procedimento especial previsto nos artigos 406 a 497 do CPP, independentemente da pena prevista.

Sua finalidade é permitir que, no lugar do juiz togado, preso a regras jurídicas, os réus sejam julgados por seus semelhantes, além de ampliar-lhes o direito de defesa.

A fase de debates é a mais importante do julgamento da causa pelo Tribunal do Júri. É nessa fase que o caso é apresentado aos jurados, que devem entender o processo e suas implicações antes de decidir. Como não tiveram acesso prévio aos autos ou por não ter capacidade de manusear as provas coletadas, aguardam os debates para entender o caso e tomar suas decisões, convencidos da inocência ou culpabilidade, bem como de elementos acessórios, aptos a formar suas convicções.

O Órgão do Ministério Público, portanto, tem a responsabilidade de apresentar as provas coletadas, fazendo a correta classificação e explicando todos os corolários jurídicos. E deve ter uma técnica em seu discurso.

Esse pequeno ensaio é um esboço sobre o discurso em Plenário por parte do Órgão Ministerial, não buscando esgotar o tema.

 

2. SUSTENTAÇÃO ORAL PELO ÓRGÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

2.1. Generalidades

O art. 127 da Constituição Federal dispõe: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. As funções do Ministério Público descritas no art. 129, CF/88 e no art. 23 da LOMP, revelam a preocupação do legislador com uma atuação do MP mais compromissada com a defesa da sociedade. O MP foi elevado ao status de órgão independente, com autonomia de propor sua própria lei orçamentária e seus membros foram revestidos de diversas prerrogativas para que pudessem exercer tal função, que hoje se mostra tão importante no Estado Democrático de Direito.

Em atuação no Tribunal do Júri o Representante do Ministério Público deve atuar em função dupla, apesar de estar exercendo função de acusação, sua função de fiscal da lei não pode ser suprimida, devendo zelar pelo cumprimento das garantias e direitos do réu.

Assim, o Representante do Ministério Público não deve buscar prejudicar o réu simplesmente porque no seu íntimo, ele reprova sua conduta e deseja afastá-lo da sociedade, deve pautar seus atos pela lei e pelos princípios que regem sua atuação, tanto como servidor público tanto pela missão de fiscal da lei.

Não deve o Promotor, diante de um Júri, injuriar o réu, utilizar-se de sentimentos de ódio, vingança para fundamentar sua oratória. O que se busca no processo penal é a verdade real dos fatos. O Promotor, em obediência as atribuições constitucionais atribuídas a ele, não deve buscar uma condenação a todo custo, deve zelar pela defesa do interesse da sociedade e garantir também as garantias e direitos do réu, sem fazer de cada caso um problema pessoal, envolvendo-se em disputas com a defesa.

Por todo o exposto, vê-se que o Ministério Público, a partir da Constituição Federal de 1988 tem status de órgão que deve buscar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, a atuação do Representante do Ministério Público, deve sempre se pautar nessa atribuição constitucional, garantindo não só o interesse da sociedade como também os direitos individuais do réu, mesmo na qualidade de acusação. Depreende-se que o legislador buscava assim, uma atuação mais imparcial do MP.

Assim, a ideia de que o Representante do Ministério Público como um justiceiro, que se colocava a “caçar” maus elementos na sociedade deve ficar esquecida. O Representante do Ministério Público deve buscar sempre pautar seus atos na moralidade, impessoalidade e ética administrativa, na qualidade de servidor público.

 

2.2. Controle dos casos que chegam ao Tribunal do Júri pelo Ministério Público.

O Júri tem atribuição para processar e julgar os crimes contra a vida. Atribuições mínimas. Ou seja, pela letra da Carta Maior, quanto mais crimes forem julgados pelo povo, mas haverá a conjugação dos princípios democráticos. No entanto, essa norma não pode ser vista de forma isolada, e como desculpa para se mandar a plenário todos os casos de prática de crimes contra a vida, sem qualquer respaldo probatório e/ou jurídico. Não podemos esquecer que o Tribunal do Júri é uma garantia. Portanto, havendo risco aos ditames constitucionais, não se pode encaminhar o caso a esse tribunal popular.

Entendemos que o Promotor de Justiça deve fazer o primeiro (ou segundo, caso se trate de Delegado diligente presidindo o IP) controle sobre os casos de crime contra a vida. Ao receber o IP, o promotor geralmente analisa o RELATÓRIO da autoridade policial, que, em regra, termina com o INDICIAMENTO. O Delegado de Polícia, sendo formado em direito e profissional qualificado, costuma tecer considerações jurídicas sobre a prova, apontando a TIPICIDADE do fato criminoso, incluindo possíveis QUALIFICADORAS. Obviamente, o Promotor de Justiça, e o juiz, posteriormente, não ficam adstritos a essa consideração jurídica.

O Promotor de Justiça diligente deve considerar o Inquérito Policial como peça única, não analisando apenas o RELATÓRIO com o seu INDICIAMENTO. Ao fazer isso, deve se questionar: a) A prova coletada pode ser repetida judicialmente, e é suficiente para o convencimento dos jurados? b) A prova coletada está de acordo com a tipicidade apontada pelo Delegado de Polícia? c) Resta comprovado o animus necandi do agente, de forma objetiva? d) No caso de tentativa de homicídio apontada, há comprovação de lesão em órgão vital ou error in procedendo nesse sentido, para evitar futura desclassificação? e) dentre outras questões. Em sendo negativas, o mais correto é se requerer novas diligências, apontando inclusive as provas a serem produzidas.

O certo é que o crime é um quebra cabeças que deve ser montado, servindo a primeira fase do júri, o iudicium acusatoriun, para delimitar os casos que efetivamente devem ir a plenário. A denúncia delimita a acusação. O Promotor diligente, ao denunciar, já se vê em Plenário, sustentando a peça inicial, corroborada pelas provas apontadas na denúncia.

Essa é a fase em que o Promotor de Justiça deve analisar o caso, verificando se: a) conduta, nexo e resultado restam interligados pela prova colhida em sede inquisitorial e se essa prova pode ser repetida validamente; b) resta comprovado exclusão de antijuridicidade ou ilicitude, de forma clara (para evitar que vítima de assalto seja julgada por ter matado o algoz, v.g.); c) há casos de exclusão da pena (inimputabilidade, erro de proibição, coação moral irresistível, inexigibilidade de conduta diversa, etc); d) dentre outros aspectos casuísticos.

O Ministério Público não tem a obrigação jurídica de conseguir a condenação de todos os réus levados ao Tribunal do Júri, mas derrotas sucessivas tendem a jogar dúvidas por parte do homem comum à atuação desse órgão. Por isso, havendo dúvida fundada sobre a prática do crime de lesão corporal ou de tentativa de homicídio, o mais prudente é a denúncia pelo primeiro crime, principalmente se a lesão for leve. Evita-se, com isso, que o réu vá a julgamento, haja a desclassificação em plenário, e esse seja beneficiado por uma causa de prescrição. Melhor utilizar os instrumentos da Lei 9.099/95, que dão, ainda que tímida, uma resposta à vítima.

Naturalmente que a atuação de delimitar o que vai a plenário não se resume apenas à apresentação da denúncia. Tome-se um caso concreto: x pratica um crime de homicídio. O Delegado aponta as provas. O Promotor denuncia. Ao final da instrução as provas coletadas são insuficientes para a condenação (antecipando hipoteticamente, a decisão do Conselho de Sentença). O que o Promotor de Justiça deve fazer em sede de alegações finais? Manter a postura irredutível e pedir a pronúncia? Ao fazer isso, e considerando que convença o juiz (indícios de autoria bastam para a pronúncia, mas não para a condenação, frise-se), pode ocorrer: a) a condenação de um inocente (a decisão do Júri é quase como uma loteria, que às vezes absolve contra as provas ou condena sem essas); ou b) a absolvição, o que é mais provável.

No caso, havendo a absolvição, o mérito foi decidido, e, após o trânsito em julgado, não se poderá mais discutir o fato. E se novas provas surgirem posteriormente, comprovando sem sombra de dúvidas que foi x o auto do fato criminoso? Essas provas não poderão ser consideradas ante a coisa julgada material. Como explicar que a impunidade se deveu a uma “teimosia” do Promotor de Justiça?

Portanto, não havendo embasamento, após a dilação probatória, para a condenação, melhor é o Promotor de Justiça pedir a desclassificação, se for o caso, ou manifestar-se pela IMPRONÚNCIA, evitando o risco citado acima.

Voltamos a frisar que essa delimitação não visa reduzir numericamente os casos que vão a julgamento pelo Tribunal do Júri, mas apenas evitar a desmoralização desse Tribunal, que deve julgar casos juridicamente relevantes e com provas pelo menos indiciárias, coletadas na primeira fase. E não nos esqueçamos que o Tribunal do Povo é uma garantia, e assim deve ser tratado, inclusive e principalmente, pelo Ministério Público.

2.3. Técnicas utilizadas para o discurso.

2.3.1. Divisão formal do discurso.

Segundo Maurice Garçon1, o discurso forense divide-se nas seguintes fases: a) exórdio, a apresentação do caso, e breve cumprimento aos jurados, juiz, e a parte contrária; b) cumprimentos, nos quais, serenamente, o Promotor de Justiça cumprimenta o juiz e o tribuno adversário. O excesso dos elogios, mormente se forem destituídos de verdade, devem ser evitados; c) proposição, a parte inicial da introdução, a defesa de uma ideia a ser comprovada (O Ministério Público provará que fulano de tal praticou o crime tal em data tal, tendo por vítima tal); d) narração, a parte essencial do discurso, onde o Promotor de Justiça, de forma clara e verossímil narra os acontecimentos; e) discussão, fase inserida na narração, na qual se analisa com profundidade os fatos. Aqui o bom orador deve raciocinar emocionando e emocionar raciocinando; f) digressão, uma saída breve do caso, como uma espécie de distração, para que os fatos narrados sejam apreendidos pelos jurados. Exemplos de vida, experiência em outros casos, contextualização de jurisprudência adequada ao discurso, sem a maçante leitura de repertórios. De qualquer forma, a digressão deve ser breve, para evitar a fuga do processo; g) peroração, o encerramento do discurso. Pode ser iniciado com um resumo do caso, e deve concluir a proposição. Se na proposição foi dito que o Ministério Público irá provar que fulano de tal ceifou a vida de fulano de tal, na peroração, deve haver a conclusão desse raciocínio, apontando as provas que fundamentam a primeira afirmação.

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Segundo WALFREDO CUNHA CAMPOS2, há regras sobre o que se deve fazer e o que não se deve fazer.

a) O Promotor de Justiça deve: i) ter um roteiro da fala; ii) falar de maneira natural e objetiva; iii) ser didático; iv) amalgamar razão e emoção; v) vigiar a postura (evitar abraços com o adversário, cochichos risonhos com o juiz, descuido com sua imagem, etc), já que o jurado observa não só o discurso formal, mas a postura de quem o propõe; vi) explicar os quesitos, como pretende que eles sejam votados; vii) ser entusiasmado, lembrando-se que a apatia depõe contra o orador; viii) adiantar possíveis objeções, ou seja, possíveis argumentos do adversário. O autor aqui faz uma ressalva prática: o Promotor deve medir as forças do adversário antes, para não dar ideias a um rival sem imaginação; ix) prender sempre a atenção; x) ter uma pasta, com material em ordem, a ser folheada; xi) explorar o aspecto moral da causa, lembrando-se que a moral vem antes e acima do texto legal, no Tribunal do Júri; xii) estabelecer empatia com os jurados, colocando-se no lugar deles; xiii) fazer a análise psicológica da prova, extraindo do jeito do réu e testemunhas se comportarem, elementos para fundamentar a sua tese; xiv) ser teatral, mas não ridículo; xv) ser sincero; xvi) ter imaginação; xvii) ter rapidez de espírito; xviii) tomar anotações; xix) tocar em todos os argumentos, mesmo que pueris, já que os indícios servem de elemento de prova; xx) falar para os jurados, e não para a plateia; xxi) acusar e defender, focando na utilidade do discurso; xxiii) usar as pausas, dando tempo de meditação por parte dos jurados; xxiv) controlar a irritação, mesmo que acossado pelo adversário ou pelo juiz; xxv) controlar o nervosismo (fingir que a plateia não existe é uma técnica); xxvi) ler, ler e ler, pois ter o que dizer é o grande segredo da eloquência, como diria Enrico Ferri; xxvii) ser honesto, pois o processo passa e a reputação fica; e xxix) viver, pois as experiências de vida ajudam a melhorar o discurso jurídico.

b) O Promotor não deve: i) xingar gratuitamente, podendo ser agressivo, mas em relação ao processo, e nunca em relação ao adversário; ii) afiançar resultados, pois o Promotor não pode garantir o resultado do processo, e não pode criar falsas expectativas; iii) apartear sistematicamente. Saiba apartear. O autor cita frase de Napoleão Bonaparte, para quem jamais se deve interromper um inimigo quando ele estiver cometendo um erro; iv) fazer do júri um circo. A estratégia do ruído é eticamente condenável, e, percebendo que a defesa faz uso dessa técnica vergonhosa, o correto é pedir a intervenção do juiz e/ou a consignação na ata3; v) deixar a emoção nublar o raciocínio; vi) fazer acordos (por exemplo, desistir das qualificadoras se a defesa assumir a culpa no homicídio simples); vii) esperar gratidão ou reconhecimento.

Esses são aspectos formais da condução do discurso. Passaremos ao mérito em si.

2.3.2. Divisão Material do Discurso.

A função do Promotor, assim que lhe é dada a palavra, para a sustentação oral em plenário, é fazer uma correlação entre a denúncia e as provas produzidas sobre o crivo do contraditório, na primeira fase do processo. Os fatos imputados na denúncia devem ser correlacionados com as provas produzidas validamente e com o direito objetivo. Muitas vezes a denúncia trás fatos que não são comprovados. A primeira obrigação do Promotor de Justiça é reduzir a denúncia, caso entenda necessário. Não pode defender qualificadoras impertinentes, por exemplo, apenas como estratégia de ação. O julgamento pelo povo não é um jogo.

O Promotor de Justiça deve ter uma estratégia em seu discurso, não podendo se servir de improvisos. O bom orador sempre tem uma linha de atuação mental. Cada profissional tem sua estratégia própria, já que não há regra.

Em interessante monografia sobre o discurso no Tribunal do Júri, Wanderson de Melo Gonçalves4 divide o discurso em três partes, segundo a tríade aristotélica:

a) ethos, a negociação de identidades;

b) pathos, o sentimento; e

c) logos, a legitimação.

Tomando por referência essa tríade, o Promotor de Justiça deve criar uma identidade positiva de si, da legitimidade de seu discurso, e da vítima, já que, indiretamente, essa também está sendo julgada. Essa é a fase do ethos. Na fase do pathos, o membro do parquet deve conduzir a formação do sentimento nos jurados. Certamente a defesa tentará vitimizar o réu e demonizar a vítima. O Ministério Público deve se antecipar a esse discurso, trazendo argumentos lógicos e jurídicos, mas também de ordem sentimental, desde que não perca o “prumo”. A terceira fase da tríade aristotélica é o logos, a legitimação. O Promotor deve fundamentar o seu discurso na prova constante nos autos, para legitimar a sua retórica. E, naturalmente, antecipar-se às “invencionices” da defesa, para desconstruir o discurso vago, “sentimentaloide”.

Quanto ao discurso jurídico em si, não há uma regra geral de como deve ser conduzido o discurso de acusação.

Mesmo não havendo regra geral, a classificação analítica do crime pode servir de base para o discurso. Por essa teoria (tripartite ou bipartite, dependendo o doutrinador base), o crime tem três elementos: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade (alguns excluem esse último, por ser consequência do crime).

Tome-se o primeiro elemento: TIPICIDADE. Esse se subdivide em: a) conduta; b) nexo; c) resultado; e d) tipicidade em sentido estrito. O Promotor deve provar, em primeiro lugar, a autoria (ou participação). Em seguida, comprovando a autoria, deve comprovar que o réu agiu dolosamente. No caso, deve comprovar o animus necandi, ou seja, a vontade dirigida à supressão da vida humana. O dolo pode ser direito ou indireto (dolo eventual). Aqui, o Promotor pode antecipar uma tese bastante comum utilizada pela defesa: a desclassificação, seja para o crime de homicídio culposo, seja para o crime de lesão corporal, caso se trate de homicídio consumado ou tentado. O resultado material do crime de homicídio é a morte. O Promotor deve comprovar a morte, utilizando, em regra, o exame cadavérico. Após, deve fazer uso das provas produzidas para comprovar o nexo entre a ação do réu e a morte. A tipicidade em sentido estrito nada mais é do que a previsão legal do crime. O promotor, nessa primeira etapa de seu discurso deve encerrar fazendo a subsunção da conduta dolosa com o tipo penal, explicando aos jurados o que significa homicídio simples e/ ou qualificado, defendendo as qualificadoras nessa etapa.

O segundo elemento da classificação analítica do crime é a antijuridicidade. O crime é um fato antijurídico, pela teoria tradicional. Há quatro causas de exclusão da antijuridicidade, afastando o próprio crime: a) legítima defesa; b) estado de necessidade; c) estrito cumprimento do dever legal; e d) exercício regular de um direito. No Brasil ninguém tem o direito ou dever de suprimir a vida humana (nem policiais), por isso restam afastadas as causas “c” e “d”. Raramente a defesa alega estado de necessidade como causa de exclusão do crime de homicídio. Portanto, a causa de exclusão mais utilizada (com abusos na maioria das vezes), é a legítima defesa. Acreditamos que esse é o momento para demonstrar que essa tese é incabível.

O terceiro elemento da classificação analítica do crime é a culpabilidade. O crime é fato típico, ilícito (ou antijurídico) e culpável. Sem culpa não há pena. Excluem a culpa: a) inimputabilidade; b) potencial consciência da ilicitude do fato; e c) exigibilidade de conduta diversa. Os elementos são cumulativos. A inimputabilidade pode ser cronológica ou biológica. Dificilmente será alegada pela defesa, nessa fase. Seria teratológico levar a plenário do júri um menor de 18 anos. Da mesma forma, entendendo que o réu não tinha a plena capacidade de se orientar durante a execução do crime, deverá fazer uso do incidente de insanidade mental, que preclui com a decisão de pronúncia. A potencial consciência da ilicitude atenua a regra geral de que a ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei. Dificilmente é alegada pela defesa. Ninguém poderia alegar que “não sabia” que era proibido matar. Caso alguém pense assim, comprovadamente, seria considerado inimputável. O último elemento pode até utilizado, para fundamentar a desclassificação do crime ou em defesa do crime privilegiado. Portanto, o Promotor pode antecipar essas teses, comprovando que o réu deveria ter agido de forma diversa do que agiu. V.E.: recebeu um empurrão em uma festa. Foi em casa buscar uma arma. Voltou ao local e matou o agressor. O Promotor deve comprovar que ele deveria ter se portado de forma diferente (exigibilidade de conduta diversa), ficando em casa, segundo o exemplo dado.

Seguir o esboço da classificação analítica do crime é apenas uma sugestão. Não há regra. É mais comum o Promotor começar o seu discurso jurídico comprovando a materialidade, passando pela autoria e questões acessórias, antecipando as principais teses defensivas alegáveis.

De qualquer forma é importante conhecer o processo em todas as minúcias, podendo inclusive verificar nos autos a tese utilizada em resposta preliminar ou em alegações finais para saber qual a tese preponderante da defesa. Mas o ideal é afastar todas as teses possíveis de serem utilizadas.

 

CONCLUSÃO

 

Muitos afirmam que aquele que fala por último leva vantagens no debate. Isso não é falso, mas pode também ser uma armadilha discursar por último. Ao antecipar a tese da defesa, o Promotor consegue dois trunfos: a) provar a sua capacidade de convencimento, já que demonstra a sagacidade tão cara ao leigo, em “adivinhar” os argumentos de quem fala depois; e b) inverter o ônus da prova.

Todos ficam impressionados com um bom orador, que domina o tema sobre o qual está falando. Por isso, um discurso concatenado, bem dividido e fácil de ser compreendido é o primeiro passo para o sucesso no plenário. Quanto à inversão do ônus da prova, essa ocorre da seguinte forma: o Promotor, analisando o caso, verifica que a tese preponderante da defesa será a legítima defesa. Começa o discurso explicando por que não se aplica essa causa de exclusão de ilicitude ao caso, de forma bastante didática, citando as provas. A “bola” é passada então para a defesa, que terá que contrariar o que o Promotor já disse anteriormente, “provando” que o Ministério Público está errado. A primeira ideia está na mente do jurado, e essa ideia apreendida pelo juiz leigo deverá ser mudada pelo defensor. Houve a inversão da prova quanto à aplicação do instituto jurídico.

Após as questões jurídicas, traduzidas para linguagem coloquial, o Promotor deve explicar os quesitos e tomar outras providências legais, de acordo com a praxe.

Cada membro do Ministério Público tem sua forma de discursar em Plenário, e suas próprias técnicas ou formas de agir, adaptando-se a cada caso que lhe é levado.

Mas algo é indiscutível: conhecer a técnica do discurso jurídico é essencial para a boa praxe do Promotor de Justiça em Plenário do Tribunal do Júri.

 

 

REFERÊNCIAS

CUNHA CAMPOS, Walfredo. Tribunal do Júri: Teoria e Prática. 2ª Edição. 2013.

GONÇALVES, Warderson de Melo. Discurso Formal no Tribunal do Júri: Estratégias Argumentativos-Interacionais. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/10099/1/2011_WandersondeMeloGon%C3%A7alves.pdf.

NEVES, Serrano. Tática e Técnica da Defesa Criminal. Editora J Ozon, SP, 1962.

RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. 6ª Edição. Atlas, SP, 2018.

 

1Citado por: CUNHA CAMPOS, Walfredo. Tribunal do Júri: Teoria e Prática. 2ª Edição. 2013. Pgs. 565.

2Obra citada, fls. 566 e seguintes.

3Vide mais sobre a Tática do Ruído em Serrano Neves, Tática e Técnica da Defesa Criminal, p. 121.

4Gonçalves, Warderson de Melo. Discurso Formal no Tribunal do Júri: Estratégias Argumentativos-Interacionais. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/10099/1/2011_WandersondeMeloGon%C3%A7alves.pdf.

Sobre o autor
José William Pereira Luz

Promotor de Justiça do Estado do Piauí

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