- A INTERVENÇÃO FEDERAL NA CONSTITUIÇÃO AMERICANA
Os elaboradores da Constituição dos Estados Unidos, ao adotarem a federação, discutiram a necessidade de ser introduzido um instrumento que possibilitasse a interferência do governo central nos governos estaduais. As unidades da federação não eram dotadas de soberania e consequentemente havia limites para as decisões políticas que adotassem. Todos os entes da federação deveriam cumprir as leis e decisões emanadas pelos poderes federais. Existia também o temor de que alguma unidade federativa adotasse a forma monárquica de governo e trouxesse de volta dinastias européias para dentro do país, favorecendo o retorno ao colonialismo.
Diante deste quadro, foi fixada, na Constituição de 1787, a possibilidade da União intervir nos Estados, em casos excepcionais. Esta regra encontra-se inserta no artigo 4º, seção 4º, que assim dispõe:
Artigo 4º
Seção IV
Os Estados Unidos garantirão a cada Estado desta União a forma republicana de governo e defendê-lo-ão contra invasões; e, a pedido da Legislatura, ou do Executivo, estando aquela impossibilitada de se reunir, o defenderão em casos de comoção interna.
Observe que a Carta americana não utiliza diretamente o termo intervenção federal. A redação do artigo é branda, apenas fixando que a União, em hipóteses restritas, agiria para afastar situações de grave instabilidade interna e de risco ou ameaça à própria existência da federação.
A ação interventiva estava limitada a três casos. Primeiro, quando um estado da federação americana sofresse a invasão por parte de outra unidade ou de outro país. Os Estados Unidos haviam declarado sua independência e havia riscos de nova tentativa de incorporação do país por parte da Inglaterra.
Segundo, para preservar a forma republicana. As colônias estavam cercadas por áreas dominadas por três monarquias europeias: a inglesa, a francesa e a espanhola. Terceiro, quando houvesse situações de instabilidade ou de ameaça à existência da federação. Seria o caso, por exemplo, de guerras civis ou de revoltas populares. Portanto, como regra geral, a União estava impedida de intervir nos Estados, somente podendo fazê-lo em casos excepcionais.
- A INTERVENÇÃO FEDERAL NA PROPOSTA CONSTITUCIONAL DE 1890
Na Constituição Imperial de 1824, o Brasil era uma república unitária. Consequentemente, inexistia tanto o federalismo quanto o instituto da intervenção federal. O território era dividido em províncias, dotadas de autonomia mínima e reduzido poder decisório.
Mas na prática, ocorreram com frequência intervenções nas províncias, em especial para combater movimentos de oposição política ou de caráter separatista. Podemos exemplificar com a intervenção promovida, em 1824, no Estado de Pernambuco, para debelar a "Confederação do Equador".
A intervenção também era levantada, com frequência, por políticos, como o meio necessário para resolver os problemas internos das províncias. Foi o caso de Rui Barbosa, que, em 1882, defendeu a intervenção nas provinciais para corrigir deficiências do sistema educacional, destacando “não é lícito ao Governo cruzar os braços ante o retardamento e a distribuição defeituosa da instrução nas províncias. Não lhe embargam o passo nesta direção as franquezas descentralizadoras do ato adicional ... "
Com a proclamação da República, em 1889, o cenário muda por completo, pois passamos a ser uma federação. Era lógico que a Constituição americana exerceria forte influência sobre a estruturação do nosso modelo de pacto federativo. Em 23 de outubro de 1890, foi publicado o Decreto nº 914 A, contendo o texto do anteprojeto encaminho pelo governo provisório à Assembleia Constituinte, o qual fixava a possibilidade do governo federal intervir nos estados, em quatro hipóteses. Esta regra encontrava-se no artigo 5º do mencionado projeto, que assim dispunha:
Art. 5º. O governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos estados, salvo:
1º. Para repelir invasão estrangeira ou de um Estado em outro;
2º Para manter a forma republicana federativa;
3º Para restabelecer a ordem e a tranquilidade nos estados, à requisição dos poderes locais;
4º Para assegurar a execução das leis do Congresso e o cumprimento das sentenças federais.
Da análise da proposta apresentada, evidenciamos que o instituto da intervenção era de uso restrito, apenas envolvendo os casos em que a interferência no estado se mostrava estritamente necessária. Na primeira situação, um dos estados sofria riscos de não mais existir dentro da federação, seja por invasão estrangeira, seja por invasão de outro estado. Logo, a União deveria intervir para garantir a própria sobrevivência do ente federado e de sua autonomia política.
Na segunda situação, um estado desejava substituir a forma republicana pela implantação de governos vitalícios monárquicos. Ressaltamos que o Imperador D. Pedro II, ao ser derrubado do trono, fora banido do país, junto com toda a família imperial. Se o modelo de monarquia fosse reimplantado em algum estado, haveria a intervenção por parte da União.
A terceira situação envolvia maior subjetividade, pois previa a possibilidade de intervenção no caso de quebra da ordem e da tranquilidade nos estados. Tratam-se de conceitos abertos. Logo, qualquer situação poderia servir de pretexto para a União interferir. Mas, neste caso, deveria haver requisição dos poderes locais, ou seja, dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário do Estado.
Por fim, a proposta previa que haveria intervenção para dar o devido cumprimento a leis e sentenças federais.
3. AS DISCUSSÕES NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1890
Na assembleia constituinte, a comissão dos 21, responsável por dar parecer sobre o projeto encaminhado, apenas propôs uma pequena alteração neste artigo, substituindo, no item 3º, a expressão "à requisição dos poderes locais" por "a requisição dos respectivos governos".
No entanto, a redação do projeto foi alvo de críticas por alguns constituintes, dando origem a propostas de emendas. O deputado Chagas Lobato propôs que se substituísse o termo "em negócios peculiares dos estados" pela expressão "no território dos estados". Para o constituinte, havia clara imprecisão, pois se os negócios eram peculiares dos estados, não poderia haver intervenção.
O constituinte F. Veiga propôs a seguinte emenda:
Ao artigo 5º, substitua-se pelo seguinte:
"o governo federal não poderá determinar a intervenção da força pública nos estados, salvo:
1º. Para repelir invasão estrangeira ou de um Estado em outro;
2º Para assegurar a fiel execução da Constituição e das leis federais e o cumprimento das sentenças e decisões dos juizes e tribunais da União;
3º Para restabelecer a ordem e a tranquilidade nos estados, à requisição dos poderes locais;”
O constituinte Meira de Vasconcelos manifestou que o texto proposto não era claro, pois, na verdade não se tratava de assuntos peculiares dos estados que poderiam ensejar a intervenção. Tratava-se, sim, de matérias afetas às competências da União. Do discurso que proferiu na constituinte, destacamos o seguinte:
"Meus senhores, qualquer de vós, examinado estas hipóteses a que faz referência a primeira parte do artigo que acabo de ler reconhecerá logo à primeira vista que nenhuma conexão tem elas com assuntos que se possam dizer peculiares á vida dos estados. Parece que há na disposição uma visível contradição. Ninguém dirá que repelir a invasão estrangeira ou de um estado em outro, manter a forma republicana federal, restabelecer a ordem e a tranquilidade nos estados e assegurar a execução das leis do Congresso e das sentenças federais, constituem negócio peculiar dos estados.Todas estas coisas são de interesse geral e, por consequência, da competência do governo federal".
(Anais da Assembleia Constituinte de 1890, vol. I, p. 726)
O mencionado constituinte propôs emenda alterando a substituição da proposta pela seguinte redação:
Ao artigo 5º, substitua-se pelo seguinte:
"O governo federal não intervirá, em caso algum, nos negócios peculiares aos Estados.
Ao bem dos interesses da União, porém cumpre-lhe:
1º. Repelir invasão estrangeira ou de um Estado em outro;
2º Manter a forma republicana federativa
3º Restabelecer a ordem e a tranquilidade nos estados, à requisição da respectiva assembléia ou do respectivo governo, quando aquele não estiver funcionando;”
4º Assegurar a execução das leis do Congresso Nacional e o cumprimento das sentenças e de quaisquer outros atos federais;
Destacamos que, apesar da relevância do tema, a proposta de intervenção federal foi muito pouco discutida na constituinte. Contribuiu para esta falta de relevância, o fato de que muitos constituintes não tinham a devida familiaridade com o tema, seja pela inexistência da intervenção na Constituição de 1824, seja por serem representantes de províncias dotadas de reduzida autonomia.
4. O TEXTO FINAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1891
Em 24 de fevereiro de 1891 foi promulgada a Segunda Constituição brasileira. O instituto da intervenção federal surgia pela primeira vez no texto constitucional, estando inserido no artigo 6º da nova Carta, que assim dispunha:
Art. 6º - O Governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo:
1 º ) para repelir invasão estrangeira, ou de um Estado em outro;
2 º ) para manter a forma republicana federativa;
3 º ) para restabelecer a ordem e a tranqüilidade nos Estados, à requisição dos respectivos Governos;
4 º ) para assegurar a execução das leis e sentenças federais.
Da análise desta previsão, evidenciamos que a redação proposta no anteprojeto elaborado pelo governo provisório praticamente foi mantido inalterado. Consequentemente, adotamos um texto muito sintético, lacunoso e deficitário, pois não fixava quaisquer regras sobre os procedimentos a serem adotados, sobre o agente competente para promover a intervenção, sobre os limites da atuação da União, sobre os direitos dos Estados sob interferência, dentre outros assuntos importantes. Deixou-se, assim, o alcance e a interpretação da ação interventiva para o campo político e jurídico, e sujeitos a manipulações e ingerências diretas por parte do Presidente da República.
Mesmo com todas estas deficiências, introduzimos, no ano de 19891, em nosso ordenamento constitucional, o instituto da intervenção federal, que perdura até os dias atuais.