Você conhece o Tribunal de Montego Bay?

05/08/2019 às 20:59
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Relata algumas características desse importante tribunal internacional

Na perspectiva teórica que adota uma ideia de fragmentação do direito internacional, um dos aspectos relevantes para identificação de um regime internacional é a existência de um sistema original e relativamente autônomo de solução de controvérsias. Na perspectiva jurídica, a solução pacífica constitui um dos aspectos mais importantes de um ordenamento jurídico e, por isso, deve ser destacado em qualquer análise descritiva do direito[1].

Uma das características mais relevantes da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, conhecida também Convenção de Montego Bay, consiste no estabelecimento de um sistema sofisticado e original de solução de controvérsias, que faz uso de múltiplos instrumentos e que concebe um tribunal especializado (Tribunal de Montego Bay) para solução judicial de conflitos entre as partes acerca de temas relacionados ao direito do mar. Ainda o sistema de Montego Bay tenha sido precedido por outros, ele apresenta algumas características originais, que devem ser destacadas.

Primeiramente, é necessário notar que Convenção de Montego Bay não se restringe à solução de controvérsias. Seus diversos dispositivos tratam dos mais diferentes aspectos atinentes ao direito do mar. Alguns dos artigos mais importantes da Convenção são típicos dispositivos de direito material, que prescrevem deveres e obrigações para os destinatários das normas. Os conceitos de mar territorial, de zona contígua, de zona econômica exclusiva e de alto mar, por exemplo, são disciplinados detalhadamente na Convenção.

A solução de controvérsias, entretanto, recebe um destaque especial na Convenção de Montego Bay. Esta estipula o uso de mecanismos específicos de solução de controvérsias antes ou no lugar de se utilizar propriamente o Tribunal especializado, além de admitir a atuação concorrente de outros tribunais e de outras formas de solução de litígios. Como a Convenção prevê uma série de procedimentos de resolução de conflitos, bem como as formas e etapas de sua utilização, pode-se afirmar que as partes do tratado concordarem em conceber um complexo sistema de solução de controvérsias, que é flexível conforme a vontade das partes e a natureza da controvérsia[2].

O sistema de solução de controvérsias da Convenção de Direito do Mar é, portanto, múltiplo e confere ampla liberdade de escolha às partes. A Convenção prevê quatro tipos de mecanismos que podem ser escolhidos pelas partes[3]: 1) Tribunal Internacional de Direito do Mar (Tribunal de Hamburgo); 2) Corte Internacional de Justiça (CIJ); 3) Arbitragem (no modelo da CPA); 4) Tribunal Arbitral formado por Técnicos. Interessante notar que a Convenção possibilita a escolha da CIJ como organismo adjudicatório, em uma condição de paridade com o tribunal especializado de direito do mar.

Na prática, os Estados escolhem o organismo conforme o tipo de disputa em tela e de acordo com o contexto da controvérsia. Em questões relativas à soberania, os Estados preferem, geralmente, a arbitragem, uma vez que esta possibilita a escolha do direito aplicável ao conflito. Em questões históricas, os Estados preferem a Corte Internacional Justiça, em razão da autoridade institucional e da acurácia técnica desse organismo em temas politizados e que demandem conhecimento profundo de direito internacional geral. Em temas muito especializados, os Estados preferem o Tribunal de Hamburgo, pois, em tese, seus magistrados têm maior capacidade técnica de dirimir conflitos muitos específicos atinentes ao direito do mar, seja regulado pelas regras convencionais ou consuetudinárias.

A Convenção prescreve que os Estados devem verificar se a controvérsia não pode ser solucionada pela simples aplicação do direito interno. Com frequência, a simples liberação de embarcação estrangeira soluciona a controvérsia. Como em outros regimes de direito internacional, as regras do direito do mar para solução de conflitos são aplicáveis após o esgotamento dos recursos internos de solução de controvérsias. Assim o art. 295 prescreve os seguintes termos:

Art. 295

Esgotamento dos recursos internos

Qualquer controvérsia entre Estados Partes relativa à interpretação ou à aplicação da presente Convenção só pode ser submetida aos procedimentos estabelecidos na presente seção depois de esgotados os recursos internos de conformidade com o direito internacional.

Adicionalmente, conforme os artigos 283 e 284 da Convenção, os Estados devem recorrer aos mecanismos pacíficos não judiciais de solução de controvérsias com a finalidade de dirimir divergência interpretativas sobre os termos do tratado. Nos mencionados artigos são mencionados explicitamente a troca de notas e a conciliação, como formas não judiciais de solução de controvérsias. O art. 283 trata da troca de informações por meio de notas diplomáticas:

Art. 283

Obrigação de trocar opiniões

1. Quando surgir uma controvérsia entre Estados Partes relativa à interpretação ou aplicação da presente Convenção, as partes na controvérsia devem proceder sem demora a uma troca de opiniões, tendo em vista solucioná-la por meio de negociação ou de outros meios pacíficos.

2. As Partes também devem proceder sem demora a uma troca de opiniões quando um procedimento para a solução de tal controvérsia tiver sido terminado sem que esta tenha sido solucionada ou quando se tiver obtido uma solução e as circunstâncias requeiram consultas sobre o modo como será implementada a solução.

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Verifica-se, com base no art. 283, que a troca de opiniões não é exatamente facultativa. O texto da Convenção determina que as partes em divergência devem proceder a essa aproximação mediante troca de impressões e posições acerca da interpretação de determinada regra da Convenção.

O art. 284 da Convenção, por sua vez, prescreve o uso da conciliação como forma de solução de disputa entre as partes:

Art. 284

Conciliação

1. O Estado Parte que é parte numa controvérsia relativa à interpretação ou aplicação da presente Convenção pode convidar a outra ou outras partes a submetê-la a conciliação, de conformidade com o procedimento previsto na seção 1 do Anexo V ou com outro procedimento de conciliação.

2. Se o convite for aceito e as partes acordarem no procedimento de conciliação a aplicar, qualquer parte pode submeter a controvérsia a esse procedimento.

3. Se o convite não for aceito ou as partes não acordarem no procedimento, o procedimento de conciliação dever ser considerado terminado.

4. Quando uma controvérsia tiver sido submetida a conciliação, o procedimento só se poderá dar por terminado de conformidade com o procedimento de conciliação acordado, salvo acordo em contrário das partes.

A conciliação, apesar de também ser classificada como uma forma não judicial de solução de conflitos, apresenta maior formalização do que a mera troca de notas. A tentativa de utilizar a conciliação é etapa obrigatória de solução de controvérsias na sistemática da Convenção de Montego Bay. Sua aceitação, entretanto, não é compulsória, pois uma das partes pode rejeitar, sem penalização, o prosseguimento do procedimento conciliatório.

Em síntese, o sistema de solução de controvérsias da Convenção das Nações Unidas de Direito Mar caracteriza-se pela pluralidade e flexibilidade de instrumentos. Não apenas formas jurisdicionais (e.g. arbitrais e judiciais) são previstas, pois o sistema igualmente incorpora, por meio da referência ou da disciplina direta, meios diplomáticos, como as negociações e a conciliação.

Referências

MENEZES, Wagner. O Direito do Mar. 1. ed. Brasília: FUNAG, 2015.

TRINDADE, A. A. C. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos. 1. ed. Brasília: FUNAG, 2013.


[1] TRINDADE, A. A. C. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos. 1. ed. Brasília: FUNAG, 2013

[2] MENEZES, Wagner. O Direito do Mar. 1. ed. Brasília: FUNAG, 2015.

[3] Ver art. 287 da Convenção de Montego Bay.

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Informações sobre o texto

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