1. AS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS
O Estado, entidade soberana, exige que seus súditos lhe forneçam os recursos necessários para que possa desempenhar suas atividades. Essa relação antiga e imprescindível para sua manutenção já foi interpretada de várias formas ao longo das mais variadas tradições de pensamento dos sistemas governamentais.
Já foi considerada, em um primeiro momento, como uma revelação do próprio poder estatal. Quer dizer, foi fundamentada na ideia de soberania do Estado (a tributação era uma relação de poder: o poder tributário). É dessa relação fundada na soberania estatal que surge a tributação como expressão de poder do Estado Leviatã.
Este raciocínio sobreviveu por muito tempo, mas juristas contemporâneos já pregam que
nos dias atuais, entretanto, já não é razoável admitir-se a relação tributária como relação de poder e, por isto mesmo devem ser rechaçadas as teses autoritaristas. A ideia de liberdade, que preside nos dias atuais a própria concepção do Estado, há de estar presente, sempre, também na relação de tributação (MACHADO, 2016, p. 27).
Evidentemente o cenário atual é outro. Afinal, em um contexto moderno constitucional-liberal, entendido enquanto uma concepção do sistema político que envolve a imposição de limites aos poderes governamentais, a aderência ao rule of law e a proteção de direitos fundamentais constitui-se em uma técnica jurídica e arranjo institucional que busca assegurar aos cidadãos o exercício de seus direitos e impedir sua violação pelo Estado. Nos termos elaborados por Whittington,
Constitutionalism has often been associated specifically with liberalism, with the protection of individual rights against the state. The distinguishing feature of a constitutional state, in this view, would not be its possession of a written document called a constitution but its effective protection of individual rights1 (WHITTINGTON, 2008, p. 281).1
Nas democracias contemporâneas o contribuinte deve ser visto, antes de tudo, como um sujeito de direitos, e a relação de tributação deve se ater a limites constitucionalmente estabelecidos, de forma a garantir que os direitos mais básicos dos cidadãos sejam resguardados. Além disso, a própria tributação deve ser analisada sob a ótica de uma intervenção na propriedade, uma verdadeira mitigação, que certamente interfere na própria autonomia financeira das pessoas físicas e jurídicas (sejam de Direito Público ou Privado), o que ressalta a importância da imposição de limites às competências tributárias.
Neste sentido, a afirmação da tributação como uma “relação de poder” é incorreta, e a melhor expressão a ser utilizada é a “relação jurídica”, pois aquela nos remete à ideia de algo que se desenvolve e se extingue “segundo a vontade do poderoso, sem observância de qualquer regra que porventura tenha sido preestabelecida. Já a relação jurídica é aquela que nasce, desenvolve-se e se extingue segundo regras preestabelecidas” (MACHADO, 2016).
A partir da concepção da relação tributária como uma relação jurídica, surge a ideia da “competência tributária” ao invés do “poder tributário”. Afinal,
A palavra “poder” tem significado que transcende a ideia de direito, que está presente na palavra “competência”. “Poder” é a aptidão para realizar a vontade, seja por que meio for. Com, sem ou contra a lei. É do mundo dos fatos, e existe independentemente do sistema normativo. Já a palavra “competência” alberga a ideia de direito. Tem competência quem recebe atribuição outorgada pelo Direito. É do mundo das normas, e não existe fora do sistema normativo (MACHADO, 2016, p. 28).
É justamente com o intuito de assegurar os direitos individuais e a manutenção da uniformidade e integridade do pacto federativo, que a Constituição da República limita o “poder” do Estado de tributar em seus artigos 150 a 152. Há limitações gerais, como as previstas no artigo 150, e outras específicas para a União (art. 151), os Estados e os Municípios (art. 152).
Essas limitações, como explica Leandro Paulsen,
se apresentam como garantias do contribuinte (legalidade, isonomia, irretroatividade, anterioridade e vedação ao confisco), como concretização de outros direitos e garantias individuais (imunidade dos livros e dos templos) ou como instrumentos para a preservação da forma federativa de Estado (imunidade recíproca, vedação da isenção heterônoma e de distinção e de distinção tributária em razão da procedência ou origem, bem como de distinção da tributação federal em favor de determinado ente federado), constituem cláusulas pétreas (…) (PAULSEN, 2017, p. 128).
A Constituição da República atribui à União, aos Estados e aos Municípios a competência de tributar os fatos elencados nos artigos 153 a 156. Por essa atribuição de competências a Carta constitucional divide o poder tributário, ou melhor, a competência tributária, descentralizando, assim, o poder político.
Nos dizeres de Humberto Ávila (2006, p. 286), a competência tributária é resultado da análise conjunta das normas que atribuem poder ao Estado para instituir tributos sobre determinados fatos (normas de competência) e das normas que subtraem poder do Estado em relação a fatos que considera insuscetíveis da tributação (normas limitativas de competência). É justamente a supressão constitucional de parcela do poder de tributar que dá-se o nome de imunidade tributária. As isenções tributárias, por vezes confundidas com as imunidades, ao contrário, não decorrem da Constituição, mas são “sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão” (artigo 176, caput, do Código Tributário Nacional).
Eduardo Sabbag (2016, p. 521) explica que “enquanto a norma imunizante revela uma dispensa constitucional de tributo, a regra isentiva indica uma dispensa legal, no campo da tributação”.
A natureza jurídica das imunidades tributárias não possui um consenso doutrinário. Hugo de Brito Machado conceitua a imunidade como um “obstáculo decorrente de regra da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação” (2016, p. 287), enquanto Luiz Eduardo Schoueri (2012, p. 470) a considera como uma “limitação constitucional à própria competência tributária”.
Por sua vez, Paulo de Barros Carvalho entende como improcedente o raciocínio segundo o qual a imunidade é uma limitação constitucional às competências tributárias. O jurista explica que “a regra que imuniza é uma das múltiplas formas de demarcação de competência. Congrega-se às demais para produzir o campo dentro do qual as pessoas políticas haverão de operar, legislando sobre matéria tributária” (CARVALHO, 2004).
Além do mais, o autor também acha um absurdo a ideia de analisar a imunidade como exclusão ou supressão do poder tributário, pois entende que
a imunidade não exclui nem suprime competências tributárias, uma vez que estas representam o resultado de uma conjunção de normas constitucionais, entre elas, as de imunidade tributária. A competência para legislar, quando sirge, já vem com as demarcações que os preceitos da Constituição fixaram (CARVALHO, 2004, p. 172).
Segundo Carvalho, recortando o conceito de imunidade tributária unicamente com o auxílio de elementos jurídicos inerentes à sua natureza, é possível defini-la como
a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas (CARVALHO, 2004, p. 181).
Seja como for, a ideia de imunidade está relacionada a uma proteção. Quer dizer, a imunidade tributária impede que a lei defina como hipótese de incidência tributária aquilo que é imune, e a justificativa constitucional das imunidades não é genérica. A compreensão das imunidades se dá a partir da análise individual de cada limitação imposta pela Constituição da República.
1.1 A imunidade recíproca
A imunidade recíproca é a limitação do poder de tributar que impede que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituam impostos sobre o patrimônio, a renda ou os serviços, uns dos outros. Essa imunidade tem a finalidade de garantir a autonomia financeira das pessoas jurídicas de direito público e a consequente manutenção da federação, já que afirma a situação de autonomia e isonomia entre os entes dederativos.
Paulo de Barros Carvalho esclarece que
A imunidade recíproca, prevista no art. 159, VI, a, da Constituição é uma decorrência pronta e imediata do postulado da isonomia dos entes constitucionais, sustentado pela estrutura federativa do Estado brasileiro e pela autonomia dos Municípios. Na verdade, encerraria imensa contradição imaginar o princípio da paridade jurídica daquelas entidades e, simultaneamente, conceder pudessem elas exercitar suas competências impositivas sobre o patrimônio, a renda e os serviços, umas com relação ás outras (CARVALHO, 2004, p. 185).
Esta imunidade, como aponta Schoueri (2012), pode ser classificada como uma imunidade subjetiva, isto é, uma imunidade que alcança pessoas em função de sua natureza jurídica. Essa limitação ao poder de tributar, insculpida no art. 150, VI, “a”, da Constituição, se apresenta como uma garantia da independência entre as pessoas jurídicas de Direito Público, de forma a impedir
que um ente da Federação venha a interferir, por cobrança de impostos, na autonomia de outro ente, haja vista que, pelo Princípio Federativo, todos os entes encontram-se em situação de isonomia. A tributação por impostos de um ente pelo outro implicaria um vínculo de subordinação não tolerado em face da isonomia postulada pela forma federativa de Estado” (SCHOUERI, 2012, p. 473).
Luiz Eduardo Schoueri em pertinente observação (2012) aponta que apesar de a inspiração da imunidade recíproca ser o princípio federativo, este não é o único fundamento dessa limitação constitucional.
O autor explica:
Com efeito, em nome daquele Princípio, exigir-se ia que um tributo não fosse utilizado como instrumento de pressão de uma pessoa jurídica de Direito Público sobre outra; entretanto, como contrapor-se a um tributo módico, exigido indistintamente de todos? Há que convir que não seria o caso de falar em pressão política ou exagero (SCHOUERI, 2012, p. 480).
Um outro fundamento para essa escolha do constituinte, como leciona Schoueri (2012), seria a própria capacidade contributiva. Ora, se tudo o que o ente político arrecada já é destinado aos gastos da coletividade, não há que se falar em uma “sobra” que possa atender a gastos de outra pessoa jurídica de Direito Público. Estaríamos, portanto, diante de uma situação com plena capacidade econômica mas sem capacidade contributiva.
Por certo, dispõe a Constituição:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros (BRASIL, 1988).
Leandro Paulsen (2017, p. 114) ressalta que a imunidade recíproca não aproveita somente ao ente político, mas também às suas autarquias e fundações, nos termos do § 2º do art. 150, da Constituição. Dessa forma, todas as pessoas jurídicas de direito público gozam da proteção constitucional concedida pela imunidade recíproca.
No entanto, o §3º do dispositivo constitucional abre uma ressalva, explicando que a imunidade recíproca não se aplica
(…) ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel (BRASIL, 1988).
Com efeito, a imunidade em tela também não alcança, como regra, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, as quais não podem gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado (art. 173, § 2º, CF). A razão disso, como expõe Leandro Paulsen, é que
A imunidade se dá em função das atividades típicas dos entes políticos, de modo que não se aplica a eventuais atividades econômicas realizadas em regime de livre concorrência, regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel, nos termos do § 3º do mesmo artigo 150 (PAULSEN, 2017, p. 114).
De acordo com Schoueri (2012 p. 410), essas mitigações da imunidade recíproca são apoiadas na neutralidade concorrencial da tributação, sendo que “a limitação à imunidade recíproca, regida pelo artigo 150, § 3º, depende, para sua correta interpretação, da compreensão do conteúdo do artigo 173, que se inspira no princípio da livre concorrência”.
Quanto à sua amplitude, apesar da existência de correntes doutrinárias favoráveis a uma interpretação restritiva da imunidade recíproca, de forma a entender que “a imunidade recíproca somente se verifica dentro dos limites fixados pela Constituição Federal, vale dizer, relativamente a impostos e sobre o patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros” (OLIVEIRA, 2001, p. 156), nos parece mais correto a interpretação ampliativa do dispositivo constitucional.
Afinal, como aduz Schoueri,
a expressão patrimônio, renda ou serviços deve ter uma interpretação bem mais ampla: ao se referir àqueles três elementos, o constituinte procurou atingir a totalidade das situações econômicas passíveis de tributação. Recorde-se, aqui, o fluxo circular de renda (…) ainda que, juridicamente, o imposto possa incidir sobre uma transmissão de bens, ou sobre uma operação de circulação de mercadorias, economicamente todo imposto atingirá patrimônio, renda ou serviços do contribuinte. Daí parecer acertado afirmar que a imunidade recíproca estende-se a todos os impostos, qualquer que seja a hipótese tributária já que, sempre, ou o patrimônio, ou a renda, ou os serviços do ente imune serão afetados (SCHOUERI, 2012, p. 481).
Outros autores vão ainda além, sugerindo que a imunidade recíproca não engloba apenas os impostos, mas todo e qualquer tributo. Hugo de Brito Machado (2016, p. 291) esclarece que “o tributo, como expressão que é da soberania estatal, não pode ser exigido de quem a tal soberania não se submete, porque é parte integrante do Estado, que da mesma é titular”. No entanto, o Supremo Tribunal Federal já vê o texto constitucional com outros olhos. Com efeito, a Súmula nº 324, aprovada em 13 de dezembro de 1963, determina que “a imunidade do art. 31, V, da Constituição Federal não compreende as taxas”. Observa-se que o dispositivo citado é o atual art. 150, VI, "a", da Constituição Federal.
Mais acertado, portanto, o entendimento de Schoueri, segundo o qual “a imunidade recíproca estende-se a todos os impostos, qualquer que seja a hipótese tributária já que, sempre, ou o patrimônio, ou a renda, ou os serviços do ente imune serão afetados (2012, p. 481).
2. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 594.015/SP
De relatoria do Senhor Ministro Marco Aurélio Mello, o RE 594.015/SP tratou de definir se, à luz do artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, a imunidade tributária recíproca alcançaria, ou não, a sociedade de economia mista arrendatária de terreno localizado em área portuária pertencente à União.
No caso em epígrafe, a Décima Quarta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que é legítima a cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU de pessoa jurídica arrendatária de imóvel pertencente ao Poder Público. Na situação analisada, a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS era arrendatária da Companhia Docas do Estado de São Paulo – CODESP, de terreno localizado em área portuária pertencente à União.
A Petrobras, no recurso extraordinário interposto, alegou a violação ao art. 150, VI, “a”, da Constituição, explicando que o imóvel arrendado é bem de propriedade da União e afetado para a realização de atividades de utilidade pública, motivo pelo qual seu uso estaria alcançado pela imunidade em tela.
De acordo com a recorrente, o que dá ensejo à imunidade é a própria destinação do imóvel ao interesse público – abastecimento nacional de combustíveis. Segundo a Petrobras, não se trata de uma transferência a terceiros da imunidade prevista, mas sim de uma correta interpretação do dispositivo constitucional. Por último, a recorrente ressalta que
há precedentes do Supremo no sentido de incidência da imunidade quanto ao IPTU nos imóveis integrantes do acervo patrimonial do Porto de Santos, seja pela propriedade, seja pela destinação dos terrenos, devendo tal entendimento ser aplicado ao caso (BRASIL, 2016).
Por sua vez, a Procuradoria-Geral da República, em parecer, opinou pela procedência do recurso, alegando que a jurisprudência do Supremo é no sentido de a imunidade recíproca alcançar sociedades de economia mista cuja atividade-fim constitua monopólio da União.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio Mello, Relator, deixa claro o entendimento de que o pacto federativo é colocado em risco (especificamente as finanças municipais) quando particulares exploradores de atividade econômica que demonstram evidente capacidade contributiva esquivam-se da arrecadação tributária alegando que os imóveis onde desenvolvem suas atividades estão amparados pela imunidade recíproca. O Relator aduz que essa imunidade de caráter subjetivo não pode ser estendida para além daquelas pessoas elencadas no artigo 150, § 2º, da Constituição. Quer dizer, as autarquias e fundações instituídas pelo Poder Público.
No que diz respeito às sociedades de economia mista e às empresas públicas, o Relator sustenta que essas estão sujeitas ao tratamento previsto no art. 173, § 2º, da Constituição, ipsis litteris: “as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.
O Sr. Ministro Marco Aurélio explica que
O argumento de ser o imóvel pertencente à União utilizado para a persecução de interesse público não atrai a imunidade quanto a Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU. Isso porque a recorrente é sociedade de economia mista com capital social negociado na bolsa de valores. Cuida-se de pessoa jurídica de direito privado com claro objetivo de auferir lucro e, posteriormente, distribui-lo aos acionistas.
A imunidade recíproca não foi concebida com tal propósito. A previsão decorre da necessidade de observar-se, no contexto federativo, o respeito mútuo e a autonomia dos entes. Não cabe estendê-la, evitando a tributação de particulares que atuam no regime da livre concorrência (BRASIL, 2016).
Não obstante, o Ministro também aponta uma vedação à imunidade recíproca constante do próprio texto constitucional, ao lembrar que o art. 150, § 3º, estipula que
As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel (BRASIL, 1988).
Com isso, completa dizendo que se “nem mesmo as pessoas jurídicas do direito público, que exploram atividade econômica, gozam da imunidade, o que se dirá quanto ao particular”.
Reconhecer a imunidade recíproca, no entendimento do Relator, seria uma verdadeira afronta ao princípio da livre concorrência, insculpido no art. 170 da Constituição Federal, já que afastar a cobrança do Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU incidente sobre imóvel arrendado por pessoa jurídica de direito privado demonstraria uma manifesta concessão de vantagem, visto que o IPTU representa um grande custo operacional e essa ampliação da imunidade desrespeitaria os ditames constitucionais.
Em continuidade ao raciocínio, o Relator passa à análise do Código Tributário Nacional, mencionando que, nos termos do artigo 32 do diploma tributarista, a hipótese de incidência engloba não somente a propriedade, mas também o domínio útil ou a posse de bem imóvel, e que seu contribuinte, de acordo com o artigo 34, “é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”.
No mesmo sentido dispõem os artigos 38 do Código Tributário do Município de Santos (Lei n. 3.750/1971), ao estabelecer que o “contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título” e o artigo 39 do mesmo diploma, segundo o qual
O imposto é devido, a critério do Executivo:
I. pelo possuidor direto, sem prejuízo da responsabilidade solidária aos possuidores indiretos;
II. pelo possuidor indireto, sem prejuízo da responsabilidade solidária dos demais possuidores indiretos e ao possuidor direto;
III. pelo possuidor de imóvel não construído, arrendatário de área e instalações portuárias, dentro ou fora do porto organizado, no regime jurídico da exploração do porto e das operações portuárias previsto na Lei Federal nº 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, sem prejuízo da responsabilidade solidária do contribuinte e possuidor indireto.
Parágrafo único - O disposto neste artigo aplica-se aos sucessores das pessoas nele referidas a qualquer título (SANTOS, 1971).
Com isso explica o Ministro que
A hipótese de incidência do Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU não está limitada à propriedade do imóvel, incluindo o domínio útil e a posse do bem. O mesmo entendimento vale para o contribuinte do tributo, que não se restringe ao proprietário do imóvel, alcançando tanto o titular do domínio útil quanto o possuidor a qualquer título. Não há falar em ausência de legitimidade da recorrente para figurar no polo passivo da relação jurídica tributária (BRASIL, 2016).
O Sr. Ministro Marco Aurélio termina seu voto negando provimento ao recurso extraordinário interposto pela Petrobras, firmando posicionamento no sentido de não reconhecer a imunidade recíproca às sociedades de economia mista ocupantes de bem público, e fixou a seguinte tese: “Incide o IPTU considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público arrendado a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo”.
O Ministro Edson Fachin, posicionando-se contrariamente ao voto de Marco Aurélio, entende pela procedência do recurso extraordinário, aduzindo, inicialmente, que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), que possui como base econômica o patrimônio (a propriedade imobiliária) deve ser compreendido como um “imposto real, direto, fiscal, progressivo e complexivo, à luz da normatividade constitucional vigente”.
O Ministro explica que o fato incontroverso (nos autos) de a União ser a proprietária do terreno localizado na área portuária do município de Santos, atrai a incidência da imunidade recíproca, e que
a própria jurisprudência do STF é no sentido da aplicação da imunidade tributária recíproca à Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP), tendo em vista que se trata de instrumentalidade estatal, por explorar serviços públicos de administração portuária (BRASIL, 2016).
Edson Fachin faz uma exposição das razões de decidir do acórdão recorrido, que basicamente são:
(i) o mero arrendamento de bem público já caracteriza obrigação tributária, pois o art. 34 do CTN prevê que o contribuinte do IPTU é também o possuidor de imóvel a qualquer título; e (ii) não haveria autorização constitucional para a extensão da imunidade tributária recíproca às sociedades de economia mista que exploram atividade econômica, por força do art. 173, §2º, do Texto Constitucional (BRASIL, 2016).
Com essa exposição, o Ministro analisa e refuta cada uma das razões de decidir supracitadas, ao começar pela afirmação de que o mero contrato de arrendamento da área portuária “não possui o condão de tornar o arrendatário sujeito passivo da obrigação tributária referente ao IPTU, nem converter o domínio patrimonial da estatalidade em regime atinente aos direitos reais de propriedade, pelo menos, para fins tributários”.
Explica o Sr. Edson Fachin que é majoritária na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que apenas a posse ad usucapionem, isto é, aquela que pode conduzir à propriedade, é apta a legitimar o possuidor como sujeito passivo do IPTU.
Quanto ao segundo fundamento, o de que “não haveria autorização constitucional para a extensão da imunidade tributária recíproca às sociedades de economia mista que exploram atividade econômica, por força do art. 173, §2º, do Texto Constitucional”, trata-se de entendimento que não se coaduna ao procedimento licitatório prévio e aos regimes constitucionalmente diferenciados de exploração dos portos e do petróleo.
O Ministro finaliza seu voto conhecendo do recurso extraordinário e dando provimento ao mesmo para “reformar o acórdão recorrido e assentar a inexigibilidade do IPTU na espécie”.
O Ministro Roberto Barroso, quem inicia seu voto reconhecendo a coerência do voto do Sr. Ministro Edson Fachin com a jurisprudência até então vigente no Supremo Tribunal Federal, acaba por flertar com as razões trazidas pelo Ministro Marco Aurélio (p. 23)
Segundo o Ministro, a tese até então chancelada pera jurisprudência pode ser a melhor do ponto de vista técnico-formal, mas sob o aspecto da justiça fiscal acaba suscitando dúvidas, motivo pelo qual pediu vista dos autos, de forma que a sessão do dia 10/11/2016 teve sua continuação em 06/04/2017.
Na continuação, o Ministro Roberto Barroso expõe, logo de início, que se convenceu de que é, de fato, o caso de superar a jurisprudência anterior. Ele elogia a posição defendida pelo Ministro Relator, afirmando que ela sequer “merece retoque”, e que o Ministro Edson Fachin de fato representou a sustentação da jurisprudência tradicional da Corte.
O Ministro Roberto Barroso limitou-se a ler a ementa de seu voto, ipsis litteris:
Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPTU. INAPLICABILIDADE DA IMUNIDADE RECÍPROCA. IMÓVEL DA UNIÃO ARRENDADO A SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. INCIDÊNCIA DO TRIBUTO. CONSTITUCIONALIDADE.
1. A imunidade recíproca das pessoas jurídicas de direito público foi criada pelo constituinte para proteção do pacto federativo. Não há sentido em estendê-la a empresa privada arrendatária de bem público, que o utiliza para fins comerciais.
2. Entender que os particulares, que utilizam os imóveis públicos para exploração econômica lucrativa, não devem pagar IPTU significa colocá-los em vantagem concorrencial em relação a outras empresas. Isso porque a finalidade do bem é a geração de lucro à recorrente, que, portanto, possui capacidade contributiva para sofrer a tributação.
3. Os contratos firmados entre as empresas privadas e a Administração Pública conferem diversos direitos aos particulares. Assim, o bem é formalmente público e materialmente privado, uma vez que o particular tem quase todas as prerrogativas do proprietário, não havendo precariedade da posse. Nesses casos, resta caracterizado o fato gerador do IPTU e a sujeição passiva, que permite ao Município de Santos efetuar cobrança em face da recorrente.
4. Ademais, o referido Município possui previsão legal atribuindo responsabilidade tributária às empresas arrendatárias de bem público. Desse modo, impossibilitar a cobrança de IPTU de particular que explora atividade econômica em imóvel público é perenizar situação extremamente prejudicial aos Municípios, ao pacto federativo e à ordem econômica no que se refere à livre concorrência.
5. Recurso extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese sede de repercussão geral: “A imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese, é constitucional a cobrança de IPTU pelo Município.” (BRASIL, 2017).
Com as exposições do Ministro Roberto Barroso, o Sr. Ministro Edson Fachin retoma a fala com a finalidade de confirmar seu voto e ressaltar que manteve a posição que suscitou não apenas em homenagem à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mas especificamente porque entende que o caso em tela trata-se de um imóvel público na área portuária de Santos, cuja natureza não é posta em dúvida, motivo pelo qual é nítida a aplicação da imunidade prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição, ao terreno em análise, que é patrimônio da União. Isso significa que o bem público federal não pode ser eleito, “por força de lei municipal, para figurar como parte passiva de obrigação tributária referente ao IPTU”.
Pelo exposto, o Min. Roberto Barroso seguiu o Relator e votou no sentido de negar provimento ao recurso extraordinário; fixando, ainda, a seguinte tese de repercussão geral:
A imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese, é constitucional a cobrança de IPTU pelo Município (BRASIL, 2017).
Em seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes elaborou uma interessante perspectiva história das imunidades intergovernamentais citando a doutrina da Suprema Corte Americana no caso Mac Culloch v. Marland, onde a Corte
entendeu pela impossibilidade do Estado de Maryland tributar filiais do Banco nacional, tendo MARSHALL definido como previsão constitucional implícita a impossibilidade de “taxação” estadual em instrumentos federais, expondo que se os Estados pudessem taxar instrumentos utilizados pelo Governo Federal, no exercício de suas atribuições, poderiam intervir no exercício de suas competências constitucionais. No referido julgamento, MARSHALL cunhou a famosa frase, citada internacionalmente, de que “o poder de tributar envolve o poder de destruir” (the power to tax involves the power to destroy), ao afirmar que “o direito de taxar, sem limite nem contraste, é, na sua essencia, o direito e exterminar, ou de destruir; e, se uma instituição nacional pode ser assim destruída, todas as outras poderão, igualmente, ser destruídas” (BRASIL, 2017).
O Ministro continua seu raciocínio expondo as mudanças nos contornos da imunidade intergovernamental, explicando que na década de 30 a Suprema Corte Americana entendeu pela aplicação das imunidades recíprocas apenas em relação ao exercício das competências governamentais, de modo que essa imunidade não incidiria nas questões de natureza comercial (Helvering v. Power, Allen v. Regents of University of Georgia, Helvering v. Gearardt, Graves v. ex. re. O’Keefe).
De acordo com o magistrado, “a imunidade recíproca é uma norma implícita às federações, que a rigor nem necessitaria de previsão expressa”. Segundo ele,
Imunidade recíproca corresponde, portanto, a um parâmetro oclusivo do poder tributante, por meio do qual o texto constitucional (a) busca afirmar a igualdade dos diferentes entes políticos; (b) preserva a execução federativamente equilibrada das atribuições dos diferentes níveis de governo, sem que possa existir interferência na autonomia de cada um deles; e (c) reconhece que a arrecadação obtida por cada um deles é vertida em prol de finalidades públicas igualmente importantes para a realização dos projetos constitucionais.
Com isso, entende que “é a vinculação às finalidades públicas que legitima a norma imunizante”, de modo que a imunidade recíproca encontra seu limite quando o bem que compõe o patrimônio dos entes federativos deixa de ser utilizado em prol do interesse público. A imunidade recíproca estaria diretamente atrelada, portanto, ao interesse público.
O Ministro Alexandre de Moraes analisa, também, as consequências prejudiciais ao equilíbrio econômico nas hipóteses em que a imunidade recíproca é estendida às pessoas submetidas ao regime jurídico de Direito Privado. Conforme expõe o magistrado, o 173, § 2º, da CF, tem como escopo a preservação do equilíbrio concorrencial típico da livre iniciativa, e que em análise ao texto constitucional, especificamente no que diz respeito aos arts. 150, IV, e §§ 2º e 3º; e 173, § 2º, percebe-se que
nem todo patrimônio titularizado pelos entes federativos está compreendido na norma de imunidade recíproca, podendo haver tributação caso pessoas de direito privado constituídas com capital público se dediquem à exploração de atividade econômica (BRASIL, 2017).
Com as exposições realizadas, o Min.Alexandre de Moraes encerra seu voto negando provimento ao recurso, acompanhando o Relator.
A Ministra Rosa Weber, por sua vez, aponta logo de início que, sob um aspecto infraconstitucional, não seria o caso de acolher a tese do Município de Santos, aduzindo que
a posse capaz de configurar um fato gerador do IPTU é apenas aquela que decorre de um direito real ou que se exerce com animus domini, vale dizer, com a pretensão de adquirir por usucapião a propriedade do bem imóvel localizado em perímetro urbano (BRASIL, 2017).
No entanto, a Ministra explica que pela ótica constitucional, o que importa é analisar e definir a ratio essendi da imunidade recíproca, motivo pelo qual acompanha o voto do Min. Relator, entendendo que não pode haver extensão da imunidade recíproca para as empresas privadas, uma vez que essas exploram atividade econômica em regime de Direito Privado, sendo constitucional a cobrança do IPTU nessa situação.
O Min. Luiz Fux, analisando a situação sob a perspectiva da justiça fiscal, afirma ser inaceitável que um sujeito que explore atividade econômica não arque com o IPTU. O Ministro lembra que no RE 253.472 foram estabelecidos critérios pelos quais permite-se inferir se a imunidade recíproca deve ou não ser estendida para um determinado sujeito. Estes critérios são os seguintes:
1) a imunidade é subjetiva, aplicando-se à propriedade, bens e serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais, imanentes do ente federado, cuja a tributação poderia colocar em risco a respectiva autonomia política, daí porque não se pode permitir que a imunidade sirva de instrumento apenas para proporcionar ao ente federado a possibilidade de contratar em condições mais vantajosas independentemente do contexto;
2) as atividades de exploração econômicas destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares devem ser tributadas por representarem manifestação de riqueza, cuja tributação não afeta a autonomia política e revela capacidade contributiva; e
3) a tributação não deve ter, como efeito colateral relevante, a quebra dos princípios da livre concorrência e do exercício da atividade profissional e econômica lícita - conforme se colhe desses votos que foram agregados ao RE nº 253.472. (BRASIL, 2017).
O Min. Luiz Fux entende que, por não passar pelos critérios acima elencados, a Petrobras não faria jus à imunidade recíproca, além do fato de que a própria Constituição veda, no § 3º do art. 150, a extensão dessa imunidade ao caso concreto em análise. De acordo com o dispositivo constitucional supracitado,
As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel (BRASIL, 1988).
Por último, o magistrado ressalta que, “no tocante à justiça fiscal, não é justo para com o Município que ele não possa tributar essas entidades - tanto mais que essa é uma fonte de receita importante à luz das dificuldades por que passam as unidades federadas”. Com isso, conclui seu voto acompanhando o Relator, Min. Marco Aurélio Mello.
Em seu voto sucinto, o Min. Ricardo Lewandowski elucida que o Sr. Min. Luix Fux trouxe grande clareza para a discussão quando invoca o art. 150, § 3º, da Constituição.
Lewandowski esclarece que o dispositivo mencionado deve ser interpretado “literalmente, quando diz que todas aquelas atividades que estão relacionadas com a exploração de atividade econômica não podem beneficiar-se da imunidade recíproca”.
O Ministro explica que a Petrobras desenvolve atividades econômicas sob regime de concorrência, distribui lucro (não somente para o ente público controlador) para terceiros, e tem suas ações negociadas na Bolsa de Valores, motivo pelo qual seria injusto permitir que ela se subtraia ao recolhimento do tributo em tela, votando, na sequência, com o Min. Relator e negando provimento ao recurso extraordinário.
A Ministra Cármen Lúcia (Presidente) também menciona que a controvérsia em discussão já foi analisada pelo Plenário no julgamento do RE nº 253.472 (momento em foram estabelecidos critérios – supracitados – pelos quais permite-se inferir se a imunidade recíproca deve ou não ser estendida a um determinado sujeito), onde foi reconhecida a imunidade tributária do imóvel de propriedade da União mas afetado a Codesp para suas atividades fins.
Naquele recurso extraordinário foram reconhecidas peculiaridades que justificaram a extensão da imunidade recíproca, tal como o fato de a Codesp prestar serviços públicos que consistem na administração do porto marítimo e demais atividades necessárias à consecução desta atividade-fim. Com isso, a Presidente entende ser o caso de votar de forma alinhada com aquela jurisprudência e com a divergência iniciada pelo Min. Edson Fachin, dando provimento ao recurso.
O Ministro Celso de Mello, quem, logo de início, companha o dissenso iniciado pelo Min. Edson Fachin, também dá provimento ao recurso extraordinário por entender inexigível, no caso em exame, a cobrança do IPTU, limitando-se a dizer que invoca, como razão de decidir, “não só os fundamentos referidos pelo Ministro EDSON FACHIN, mas, igualmente, aqueles que expus nos julgamentos do RE 265.749-ED-ED/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, e do RE 458.164-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, entre outros”.
3. A SÚMULA VINCULANTE Nº 52 E AS RAZÕES DE DECIDIR DO RE 594.015/SP
Resultante, com ajustes em sua redação, da conversão da Súmula nº 724 do Supremo Tribunal Federal, a Súmula Vinculante nº 52 dispõe que
Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, "c", da Constituição Federal, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas.
A Súmula Vinculante nº 52 teve sua tese de repercussão geral definida no Tema 693, aprovada nos termos do item 2 da Ata da 12ª Sessão Administrativa do STF, realizada em 9-12-2015.
O leading case do tema 693 foi o RE 767.332, MG, e a Súmula nº 724 teve como precedentes os Recursos Extraordinários de números 203.248 (AgR), 235.737, 231.928, 217.233, 237.718 e 286.692.
O enunciado em tela deixa claro que nos precedentes até então julgados, a Corte entendeu que “tratando de imunidade que cobre patrimônio, rendas e serviços, não importa se os imóveis de propriedade da instituição de assistência social são de uso direto ou se são locados” (parte da ementa do RE n. 286.692, SP).
De fato, conforme o voto do Ministro Edson Fachin no Recurso Extraordinário n. 594.015, SP (exposto no Capítulo anterior), a jurisprudência da Corte – e não qualquer jurisprudência, mas aquela que possui “efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (art. 103-A, CF) – consubstanciada em uma Súmula Vinculante, entende que o IPTU, por ser um imposto real – já que possui como base econômica o patrimônio (a propriedade imobiliária), – atrai a incidência da imunidade tributária para o bem imóvel, independentemente de sua destinação; devendo ser levado em conta, para fins tributários, a propriedade propriamente dita (ou aquela posse ou domínio útil que possa conduzir à propriedade), e não o argumento de que um contrato de aluguel ou arrendamento eleva o locatário ou arrendatário à posição de contribuinte do IPTU.
De fato, conforme explicado pelo Ministro, apesar de o IPTU ter como sujeito passivo não apenas o proprietário, mas também o possuidor ou aquele que tem o domínio útil (art. 32 do Código Tributário Nacional), não é qualquer posse que tem o condão de alterar a sujeição passiva, mas apenas a posse ad usucapionem.
É certo que o entendimento do Min. Edson Fachin pode ser questionado e superado (como ocorreu no RE 594.015), mas, para isso, a Súmula Vinculante 52 deve ser cancelada pelo procedimento adequado (nos moldes estipulados pelo § 2º do art. 103-A da CF), já que o entendimento pretérito ainda possui efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública.
Percebemos que, por fatos extremamente semelhantes, a Corte tomou decisões absolutamente contrárias. Ora, se no caso da imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição (referente ao patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos), o Supremo entende que “ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades”, por que no caso de um arrendamento de um imóvel pertencente à União, a imunidade deve ser afastada? O raciocínio é o mesmo, mas apenas o fundamento constitucional é diferente (neste caso, a imunidade é a recíproca – art. 150, VI, “a”, da CF).
A Corte entendeu, no julgamento do RE 594.015, que a extensão dessa imunidade às pessoas jurídicas de Direito Privado violaria o § 2º do art. 173 da Constituição, pois configuraria um privilégio fiscal não extensivo ao setor privado, mas este entendimento também justificaria a incidência do IPTU nos imóveis pertencentes às entidades previstas no art. 150, VI, “c”, da CF.
O Min. Alexandre de Moraes explanou em seu voto no RE 594.015 que “é a vinculação às finalidades públicas que legitima a norma imunizante”, de modo que a imunidade recíproca estaria diretamente atrelada ao interesse público.
Em primeiro lugar é notório que a atividade desenvolvida pela Petrobras é de interesse público, e constitui inclusive monopólio da União (art. 177 da CF), e mesmo que explore lucro e tenha suas ações negociadas na Bolsa, isso não afeta a natureza da atividade desenvolvida.
Além disso, devemos levar em consideração o fato de que o próprio aluguel do bem é de interesse público, visto que a partir do momento em que o tributo seja exigível do particular arrendatário, o valor despendido pelo sujeito passivo será repassado ao ente público proprietário do bem (nem que seja através da minoração do valor do arrendamento), até mesmo porque o quantum estabelecido a título de contraprestação fora fixado tendo como parâmetro a imunidade tributária do bem, verdadeira causa de exclusão do crédito tributário (art. 175 do CTN). Seria utópico, portanto, pensar que o ente público auferiria o mesmo valor no caso de o arrendatário ter de arcar com o tributo municipal.
Nos parece correto, no entanto, o entendimento de que a extensão da imunidade recíproca às pessoas jurídicas de direito privado seria manifesta violação ao art. 150, §3º, da Constituição. Conforme esclarecido pelo Min. Ricardo Lewandowski, o dispositivo mencionado deve ser interpretado “literalmente, quando diz que todas aquelas atividades que estão relacionadas com a exploração de atividade econômica não podem beneficiar-se da imunidade recíproca”.
Segundo o dispositivo constitucional,
As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel (BRASIL, 1988)
Essa ressalva constitucional não está prevista para a imunidade prevista no art. 150, VI, “c” da Constituição, sendo, em nosso entendimento, o único dos fundamentos adotados pela Corte que verdadeiramente diferencia a incidência do IPTU no imóvel pertencente à União e arrendado à Petrobras daquela incidência nos imóveis pertencentes às entidades do art. 150, VI, “c”, alugados a terceiros.
No que diz respeito ao argumento de que a extensão da imunidade afetaria diretamente a livre iniciativa, sendo uma afronta ao § 2º do art. 173 da CF, explica Regis Fernandes de Oliveira que
Pode o Estado, como agente produtivo, ao lado de incentivar e planejar o desenvolvimento da atividade econômica, criar empresas públicas, sociedades de economia mista ou outras entidades, para exploração da atividade econômica (§ 1º do art. 173 da CF). Em tal caso, sujeitam-se elas ao Direito Privado, sofrendo o impacto de alguns princípios de Direito Público. Não deixam de ser empresas estatais, uma vez que mantêm vínculo jurídico tutelar com o Estado; todavia, no exercício de suas atividades, são empresas como quaisquer outras, não podendo usufruir de qualquer privilégio (§ 2º do art. 173) (OLIVEIRA, 2015, p. 142).
De fato, se os imóveis objetos dos julgamentos fossem de propriedade das pessoas jurídicas de Direito Privado, estaríamos diante de privilégios constitucionalmente inaceitáveis. Porém, como os bens são pertencentes ao Poder Público, e a imunidade tributária reflete diretamente no valor do arrendamento, pode-se afirmar que o ente político (no caso do imóvel portuário pertencente à União) aufere um valor maior em razão de possuir essa imunidade tributária constitucional, que exime o arrendatário de arcar com o tributo municipal.
CONCLUSÕES
Em um cenário atual onde a temática da segurança jurídica é altamente discutida e a atuação das autoridades públicas – seja em âmbito administrativo, controlador ou judicial – é cada vez mais publicizada e consequentemente criticada, esperamos de nossa Corte Constitucional um mínimo de coerência e de respeito pelos precedentes antigos e seriamente fundamentados ao longo dos anos.
Menciona-se, de passagem, a Lei n. 13.655 de abril de 2018, que incluiu no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.
O jurisdicionado espera, ao acionar a jurisdição estatal compulsória (tratando, agora, da análise do Recurso Extraordinário 594.015, realizada nos capítulos anteriores), uma resposta coerente com os posicionamentos até então adotados em situações símiles e, se for o caso de o órgão judicante entender pelo distinguishing; ou, quem sabe, até mesmo por um overruling, espera-se uma fundamentação que leve em conta todos os precedentes daquele órgão e explique, verdadeiramente, a necessidade de superação ou a distinção existente in casu.
Em uma breve exposição e análise dos votos proferidos no RE 594.015/SP, foi possível constatar uma grande escassez de fundamentos jurídicos nas manifestações dos Ministros, que acabaram por superar (ainda que com poucos e vagos argumentos) um entendimento jurisprudencial que vigorava há anos naquela Corte. Percebe-se que sequer foi feita qualquer menção à Súmula Vinculante 52 e às semelhanças existentes entre a lide objeto de julgamento e o enunciado com efeito vinculante, que, apesar de tratar de uma imunidade tributária distinta, prescreve uma situação fática praticamente idêntica, e cujas razões de decidir são evidentemente aplicáveis ao leading case analisado neste trabalho.
Observa-se, por exemplo, que quando o Ministro Edson Fachin abre uma divergência em relação ao relator, e menciona (dentre outras coisas) que o IPTU é um imposto real, e que não é qualquer posse ou domínio útil que seriam capazes de elevar certa pessoa à condição de contribuinte, mas apenas aquela posse ad usucapionem (aquela apta a conduzir à propriedade), pôde-se perceber que nos votos seguintes essa importante questão sequer fora objeto de análise. Dizia-se muito, no entanto, em “justiça fiscal”, “interesse público” e “finalidade pública”, mas em termos e valorações absolutamente abstratos e que poderiam ser interpretados de diversas maneiras.
A afronta à livre iniciativa (art. 173, § 2º, da CF) tomou o cenário, mas o interesse do ente público proprietário do imóvel portuário em arrendar uma propriedade imune (e consequentemente auferir um valor substancialmente maior a título de contraprestação) sequer foi objeto de discussão. Afinal, a renda obtida com aquele arrendamento era revertida e aplicada pelo próprio ente político proprietário do imóvel (no caso, a União), o que demonstra mais uma semelhança com a Súmula Vinculante 52 – sequer mencionada no acórdão – que condiciona a extensão da imunidade ao IPTU aos terceiros locatários à necessidade “de que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas”.
Estas poucas ponderações demonstram que o nível de aprofundamento dos Ministros nas razões de decidir do RE 594.015/SP foi seriamente superficial, o que sugere uma postura de desapreço para com o jurisdicionado e com a própria jurisprudência até então vigente e tão trabalhada e enriquecida pela Corte em seus julgamentos passados.
Em um momento em que mais uma vez discute-se no Brasil questões relacionadas a uma pretendida reforma institucional, algumas das observações e críticas feitas ao longo dos capítulos anteriores poderiam ser úteis para se pensar nas linhas de uma revisão de alguns dos aspectos da configuração de nossas instituições. Isso é particularmente válido para o Supremo Tribunal Federal, cuja atuação vem sendo submetida a críticas que não podem ser menosprezadas: “Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo” (MENDES, 2018, p. 91).
Quando se olha para a forma de recrutamento dos membros do nosso Supremo Tribunal Federal, pode-se conjecturar se não seria mais adequado que tivéssemos uma participação institucionalizada dos três Poderes na escolha de seus membros, a exemplo do que ocorre na Itália. Isso poderia ser útil para a superação da ficção de que nossa jurisdição constitucional é exercida em bases estritamente técnico-jurídicas, mas jamais políticas.
Ao invés de ministros que ocupam cargos vitalícios, não seria plausível pensarmos em juízes detentores de mandato no Supremo Tribunal Federal? Isso não permitiria uma maior oxigenação do Tribunal e uma maior correspondência entre suas decisões e a dinâmica política de um país como o Brasil?
A adoção de um modelo de corte constitucional cujos membros seriam escolhidos mediante a participação dos três Poderes e com juízes detentores de mandato poderia permitir-nos aprimorar as reações entre Executivo, Legislativo e Judiciário no Brasil. O que permitiria que se mitigasse o sentimento amplamente difundido de que no Brasil o Poder Judiciário tem-se sobreposto aos demais poderes.
Afinal, de acordo com resposta a críticas formuladas ao Tribunal, um dos seus atuais intergrantes admitiu que “Todas as instituições democráticas estão sujeitas à crítica pública e devem ter a humildade de levá-la em conta, repensando-se onde couber” (BARROSO, 2018, p.106).
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1O constitucionalismo tem sido frequentemente associado especificamente ao liberalismo, com a proteção dos direitos individuais contra o Estado. A característica distintiva de um estado constitucional, nessa visão, não seria a posse de um documento escrito chamado de constituição, mas sua efetiva proteção dos direitos individuais (tradução do autor).