Não é demasiado afirmar que o caráter competitivo é a pedra fundamental que se escora a licitação[1]. Sem competição, inclusive, pode-se dar azo a contratação direta, por inexigibilidade de licitação[2].
Por isso, faz-se necessário cautela, ao ente que almeja realizar uma licitação, para que as exigências e requisitos de participação não acabem por frustrar a saudável disputa entre os potenciais interessados.
Por outro lado, a responsabilidade socioambiental também é relevante nas contratações. Em outros termos, é ponto a se considerar na licitação incentivar empresas a adotarem práticas de sustentabilidade ambiental e de responsabilidade social. Isso inclui, por exemplo, exigência de certidões ambientais que garantam que os produtos foram produzidos de maneira responsável ambientalmente.
É necessário, portanto, equilibrar a competição na licitação com boas práticas sociais e ambientais.
Sobre o tema, em sessão de 17/07/2019, o Tribunal de Contas da União – TCU exarou o Acórdão nº 1666/2019, do Plenário, de relatoria do Ministro Raimundo Carreiro, enfrentando esse aparente conflito.
Ficou consignado que “a exigência de comprovação da certificação florestal válida (referência: FSC, Cerflor) em nome do fabricante do material acabado, como critério de aceitabilidade da proposta, apesar de estar em consonância com o art. 2º do Decreto 7.746/2012, não deve, no caso concreto, comprometer o caráter competitivo da licitação”[3].
Naquela deliberação da Corte de Contas foi avaliado dois requisitos para a aceitabilidade de propostas postas nas disposições editalícias, quais sejam:
c) Comprovação do registro do fabricante do material acabado no Cadastro Técnico Federal (CTF) de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, acompanhado do respectivo Certificado de Regularidade válido, nos termos do artigo 17, inciso II, da Lei nº 6.938/81 e da Instrução Normativa IBAMA nº 06 de 15/03/2013;
d) Comprovação da certificação florestal válida (referência: FSC, Cerflor) , em nome do fabricante do material acabado;
No certame em questão o vencedor deveria fazer acompanhar com a proposta a documentação acima, voltada para a responsabilidade ambiental. Por conta disso, foi feita representação junto ao TCU ao argumento de restrição indevida de competição, pois diversos licitantes foram desclassificados por não apresentarem a documentação necessária para aceitação da proposta vencedora.
Ao se debruçar sobre a questão, o Relator pontuou que a exigência de certificação, como exigência para aceitabilidade da proposta, não é requisito de habilitação, mas sim verificação da “qualidade do produto objeto da licitação em tela e à obediência à política ambiental vigente no Brasil”. Nesse sentido, não se vislumbrou ilegalidade neste particular.
Todavia, verificou-se que, de dezenas de propostas apresentadas, quase a totalidade das mesmas, foram desclassificadas por não apresentarem a documentação acima.
Com efeito, continuou o relator, sob a óptica formal, o edital não possuía vícios, mas o mercado não estava, ao que se constatava pela ocorrência elevada de empresas desclassificadas, apto a cumprir na integralidade as exigências normativas ambientais.
Por tais fatores práticos do mercado empresarial, “não foi possível selecionar a proposta de preço mais baixo e, garantida a qualidade do produto, a mais vantajosa para a Administração pelas razões acima expendidas, não por irregularidades no edital de licitação ou na sua condução, mas por condições de mercado”.
Em suma, a exigência de atendimento ambiental, apesar de válida e plenamente justificável, diante do cenário do mercado, acabara por comprometer a licitação a tal ponto que inviabilizou a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
Diante de tal constatação, apurou-se potencial restrição à competitividade do certame, o que acabara por fulminar o objetivo da licitação, qual seja, selecionar proposta vantajosa e, em regra, com o menor preço proposto.
Mais uma pitada de pimenta no caso: o objeto da licitação era papel higiênico. Por isso, ainda que comprometida a competição, se o contrato fosse suspenso de imediato, culminaria na falta de papel, certificado ou não, no ente licitante.
Cabe registrar que a diferença de preço entre o menor, não certificado ambientalmente, e o contratado com certificação ficou superior a cinquenta por cento. Ou seja, a exigência de certificação e as consequentes desclassificações de empresas interessadas acabaram por tornar a contratação muito cara, à vista dos preços propostos.
Nesse cenário, para compatibilizar a necessidade do ente licitante e a suspensão do contrato, determinou o relator que fosse realizado imediatamente novo certame e, enquanto não contratado nova empresa, fosse mantido o contrato até então vigente, “somente até a conclusão do referido processo licitatório, a fim de evitar a descontinuidade do recebimento do material em tela pelo contratante”.
Dessarte, conclui-se que, nas licitações, deve-se equilibrar a ampla competição e a responsabilidade socioambiental, além de compatibilizar as exigências legais com a prática de mercado, pois de nada adianta uma norma, ainda que relevante e válida para proteger um meio ambiente sadio, se os potenciais fornecedores ainda não estão devidamente adaptados para cumpri-la. E quando a competição e a vantajosidade da contratação forem comprometidas, caberá afastar determinadas exigências, ainda que formalmente aceitáveis no bojo das disposições editalícias, com objetivo de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração.
[1] Art. 3º da Lei 8.666/93: “§ 1º É vedado aos agentes públicos: I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991; (Redação dada pela Lei nº 12.349, de 2010)”.
[2] Art. 25 da Lei 8.666/93: “É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial (...)”.
[3] Informativo de licitações e contratos TCU nº 373.