RESUMO
O escopo do presente trabalho é demonstrar por meio da análise dos tipos penais; do conceito de contribuição previdenciária e de contribuição social e da acepção de tributo a existência de uma duplicidade de condutas (tipos penais) existente no atual ordenamento jurídico brasileiro. Teceremos alguns comentários a respeito da discrepância entre os tipos, como, por exemplo, a diferença das nas penas cominadas para o Crime de Apropriação Indébita Previdenciária, descrito no Artigo 168-A do Código Penal e para o Crime descrito no artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/00 (Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária). Também comentaremos acerca da aplicabilidade do princípio geral de direito penal Novatio Legis In Pejus na celeuma apresentada.
Palavras-chave: Apropriação Indébita Previdenciária. Crime Contra a Ordem Tributária. Duplicidade de Condutas. Pacto de São José da Costa Rica. Convenção Americana de Direitos Humanos.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se vale de uma ótica interdisciplinar do Direito Brasileiro e, por meio dos hiperlinks realizados entre as competências, busca-se evidenciar e tornar cristalino o tema objeto de estudo, qual seja: a possível existência de uma duplicidade de condutas em nosso ordenamento jurídico, com penalizações diversas entre si. Nessa linha, evidenciaremos, através do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que as Contribuições Previdenciárias objeto do artigo 168-A do Código Penal, são, em verdade, as nomeadas Contribuições Sociais da conduta descrita na Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária (Lei nº 8.137/00, Inciso II do Artigo 2º), tornando possível visualizar a duplicidade mencionada acima.
Além disso, falaremos a respeito do caráter tributário desses tipos penais, demonstrando que as Contribuições são uma espécie de tributo e que, com a devida atenção ao bem jurídico tutelado tanto pelo Código Penal como pela legislação específica, ambas as tipificações tratam da supressão de um mesmo tributo/contribuição.
No teor da presente análise, traremos à ideia de que o tributo possui uma finalidade de arrecadação de recursos aos cofres públicos e que as penas trazidas nas normas incriminadoras possuem em seu ímpeto, a mesma finalidade, levando-se em consideração a interpretação que teceremos a respeito das causas extintivas de punibilidade que são descritas em ambas tipificações.
Não obstante, caracterizaremos um conflito intertemporal (conflito de leis penais no tempo), identificando a existência de uma Novatio Legis in Pejus(nova lei penal em prejuízo ao réu) e a consequente necessidade de aplicação da lei mais benéfica, qual seja: a Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária, e em última ratio.
2 DESENVOLVIMENTO
Quase oitenta anos depois da sua entrada em vigor, o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1.940) foi alterado pela lei nº 9.983 de 2000 para que fosse incluído no rol dos crimes contra o patrimônio o artigo 168-A e os seus respectivos incisos e parágrafos, tipificando então, o crime da Apropriação Indébita Previdenciária, passando a punir com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa (note que trata-se de uma pena cumulativa) aquele que deixar de repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional.
Ocorre que, a Lei nº 8.137 de 27 de dezembro de 1.990, que trata dos Crimes Contra a Ordem Tributária e dos Crimes Contra a Economia e as Relações de Consumo já tipificava em seu Artigo 2º, Inciso II, uma conduta similar à inclusa no Código Penal por meio da lei n. º 9.983/00, sendo este o principal assunto deste trabalho.
Mais adiante, espera-se que seja percebido pelo leitor que as duas tipificações embora editadas em épocas distintas – o Artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137 no ano de 1990 e o Artigo 168-A do Código Penal Brasileiro no ano 2000 - nos fornecem indícios de que tratam, ao fundo, de uma mesma conduta do agente. Logo, em momento oportuno, analisar-se-á os tipos penais de forma individual, observando a expressa previsão legal de cada um deles, os indivíduos que figuram como sujeitos da ação, o bem jurídico tutelado, dentre outros aspectos.
Determinados os tipos penais supramencionados e as suas respectivas peculiaridades, temos como intuito que reste configurada a mencionada duplicidade de condutas e, se tratando do mesmo fato típico, poderemos tornar evidente o que é denominado na doutrina como um conflito intertemporal entre as normas incriminadoras, bem como teceremos comentários quanto ao método de solução deste tipo de conflito.
Possuindo uma ótica interdisciplinar, o presente estudo também analisa o tema sob a ótica do Direito Tributário, abordando o conceito de contribuições e o conceito de tributos e, com o objetivo de não fornecer margem às dúvidas quanto aos termos Contribuição Previdenciária e Contribuição Social, será demonstrada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a conclusão de que os termos são sinônimos, sendo esse o entendimento do então Ministro Carlos Velloso. Nessa esfera, falar-se á também da destinação das contribuições que figuram nos tipos penais.
Por fim, em capítulo específico analisar-se-á a ótica humanística do Direito, abordando o princípio da intervenção mínima, bem como algumas disposições contidas no Pacto de San José da Costa Rica e os seus reflexos esperados nos tipos penais objeto de estudo.
2.1 Análise dos Tipos Penais
2.1.1 O crime descrito no Código Penal
Como mencionamos anteriormente, o Código Penal, em seu artigo 168-A, Caput tipifica a conduta chamada de Apropriação Indébita Previdenciária, conforme abaixo:
Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000). Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000).
Em suma, tal conduta consiste em deixar de repassar as contribuições recolhidas no prazo e forma legal ou convencional para a previdência social, sendo ela apenada com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa, portanto, sujeita o agente a uma pena cumulativa.
Assim, para que se possa configurar o delito em estudo é preciso que, em caso concreto, sejam verificados os seguintes elementos integrantes do tipo penal: a) a conduta núcleo de deixar de repassar à previdência social; b) as contribuições já anteriormente recolhidas dos contribuintes; c) no prazo e forma legal ou convencional.
Entendemos aqui que a expressão “deixar de repassar” possui o sentido de não levar a efeito o recolhimento aos cofres da previdência social as contribuições que foram previamente recolhidas dos seus contribuintes. Isso significa que, embora tendo efetuado os descontos pertinentes aos valores cabidos à previdência social, o agente não os repassa aos cofres do Estado, não os recolhe em benefício da destinatária da contribuição.
Finalmente, depreendemos da leitura do tipo que somente se caracterizará o delito de apropriação indébita previdenciária uma vez decorrido o prazo legal ou convencional concedido para que fosse realizado o repasse. Antes de esgotado o prazo, que se encontra previsto na Lei nº 8.212/1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências, o fato deve ser considerado um indiferente penal.
Para a correta analise do tipo, importante ressaltar que o sujeito ativo da conduta é o denominado substituto tributário, ou seja, aquele que, por força normativa, tem o dever de recolher certo quantum, que por sua vez, também está legalmente previsto, e entregá-lo ao órgão competente, neste caso, a Previdência Social. Já no que concerne ao sujeito passivo da conduta, este não poderia ser outro senão o Estado, de forma mais específica a Previdência Social, por intermédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
É de se ressaltar que o elemento subjetivo do tipo é o dolo, não existindo previsão legal de forma culposa para o crime em questão. Desta forma para que a conduta do agente se torne um fato típico, é necessário que haja o dolo de fraudar a previdência social. Nesse sentido, de acordo com o Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de crime omissivo próprio, não se esgota somente no ”deixar de recolher”, isto significando que, além da existência do débito, haverá a acusação de demonstrar a intenção específica ou vontade deliberada de pretender algum benefício com a supressão ou redução, já que o agente ”podia e devia” realizar o recolhimento (STJ, AgRg. no Ag. 1388275/SP, Relª Minª Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJe 5/6/2013).
Contudo, embora esse tipo penal tenha as indicações de ser um crime omissivo próprio, o Supremo Tribunal Federal se manifesta em sentido contrário em um dos seus julgados, afirmando que na conduta do agente não se faz necessária uma finalidade específica, ou seja não é necessário que o agente de fato queira lesar a previdência social, valendo-se apenas da existência do dolo genérico para a configuração do crime. Neste sentindo, a título de exemplo vejamos a ementa do HC 96092 de 2009:
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO (ANIMUS REM SIBI HABENDI). IMPROCEDÊNCIA DAS ALEGAÇÕES. ORDEM DENEGADA. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que para a configuração do delito de apropriação indébita previdenciária, não é necessário um fim específico, ou seja, o animus rem sibi habendi (cf., por exemplo, HC 84.589, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 10.12.2004), "bastando para nesta incidir a vontade livre e consciente de não recolher as importâncias descontadas dos salários dos empregados da empresa pela qual responde o agente" (HC 78.234, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 21.5.1999). No mesmo sentido: HC 86.478, de minha relatoria, DJ 7.12.2006; RHC 86.072, Rel. Min. Eros Grau, DJ 28.10.2005; HC 84.021, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14.5.2004; entre outros). 2. A espécie de dolo não tem influência na classificação dos crimes segundo o resultado, pois crimes materiais ou formais podem ter como móvel tanto o dolo genérico quanto o dolo específico. 3. Habeas corpus denegado.
Perceba-se, então, que não há uma uniformização a respeito do tema pelos Tribunais, porém, parece-nos mais acertada a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que em seus julgados preza pela necessidade do dolo específico para a configuração do tipo, conforme se depreende da ementa abaixo:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. TIPO PENAL (ART. 168-A DO CP). DOLO ESPECÍFICO. NECESSIDADE DE A DENÚNCIA DESCREVER A INTENÇÃO DE SE FURTAR AO RECOLHIMENTO TRIBUTÁRIO. O tipo do art. 168-A do Código Penal, embora tratando de crime omissivo próprio, não se esgota somente no "deixar de recolher", isto significando que, além da existência do débito, haverá a peça acusatória de demonstrar a intenção específica ou vontade deliberada de pretender algum benefício com a supressão ou redução, já que o agente "podia e devia" realizar o recolhimento. Agravo provido para também prover o recurso especial, de modo a reconduzir a sentença de rejeição da denúncia.
Com isso, cremos ser esse o entendimento mais acertado, já que não é possível se tipificar a ação de um agente que, seja por esquecimento seja por impossibilidade momentânea, deixou de repassar a previdência social contribuição que regularmente tomou do contribuinte. Queremos dizer aqui que não cabe neste momento à esfera penal (última ratio) a atuação face a um crédito tributário puro (uma ‘dívida’ cujo credor é o Estado).
A respeito do bem jurídico tutelado, salienta Antonio Monteiro Lopes (2000. p. 31):
na verdade esse novo artigo protege o patrimônio não de uma pessoa ou de algumas pessoas, como nos demais crimes previstos nesse Título, mas o patrimônio de todos os cidadãos que fazem parte do sistema previdenciário. Ademais, embora se fale em crime contra a Previdência Social, no fundo é a Seguridade Social tal como descrita no art. 194 da Constituição da República que está sendo tutelada.
Por fim, temos como objeto material desse tipo penal a contribuição que foi recolhida do contribuinte e não foi repassada aos cofres públicos.
2.1.2 O crime descrito na Lei nº 8.137/90
A Lei em referência define os Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de consumo, e dá outras providências, tratando em seu capítulo I dos Crimes Contra a Ordem Tributária em si e, na seção I traz a tipificação dos crimes praticados por particulares. O caput do Artigo 1º diz que constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório. Para o presente estudo levamos em consideração apenas a conduta descrita no artigo 2º, inciso II, transcrito abaixo:
Art. 2º Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)
I (...);
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Segundo a doutrina de Guilherme de Souza de Nucci (2013. p. 1045):
o crime em questão quanto à sua classificação é na realidade um crime próprio, já que pode ser praticado pela pessoa física ou jurídica indicada em lei como substituto tributário; material, pois depende da ocorrência do efeito prejuízo para o Estado, consistente na falta de recolhimento do tributo (que é verificado com o competente lançamento do débito tributário); de forma livre(pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente); omissivo (deixar de fazer algo que era devido), muito embora exista conduta comissiva prévia (descontar ou cobrar o tributo de alguém); instantâneo (a consumação ocorre em momento definido); unissubjetivo (cometido em um ato, por ser crime omissivo) e, assim como o crime do Artigo 168-A do Código Penal, não admite a modalidade de tentativa.
Vale ressaltar que, de acordo com a súmula vinculante número 24 do Supremo Tribunal Federal (STF) o crime apenas se tipifica apenas com o lançamento definitivo do tributo, ou seja, constitui-se primeiramente o crédito tributário para posteriormente falarmos em um crime material.
No crime em testilha, figura como sujeito ativo o substituto tributário, ou seja, aquele que recolheu o tributo, mas não o entregou ao órgão estatal responsável, enquanto no polo passivo, encontramos o Estado.
Por sua vez, no que se refere à pena cominada para esse tipo penal, conforme o texto legal temos a pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Com relação ao bem jurídico tutelado, para alguns estudiosos seria a função tributária do Estado, a função institucional arrecadadora do Estado, ou ainda, seria o Erário, os cofres públicos, ou seja, para os defensores desta tese, o bem jurídico estaria relacionado à atividade institucional de arrecadação de tributos, pelos interesses estatais vinculados à arrecadação de tributos devidos à Fazenda Pública, protegendo o Erário, a Fé a Administração Pública.
Tal tese tomou este caminho considerando o tratamento que a legislação brasileira vigente tem em relação aos crimes contra a ordem tributária, visto que o mais importante para o Estado (aparentemente) seria o crédito tributário em vista da possibilidade de exclusão da punibilidade com o simples pagamento do tributo, já que, mesmo o Artigo 14 da Lei em comento ter sido revogado, a Lei 10.684 extingue a punibilidade com o adimplemento da obrigação e, no caso de parcelamento, a pretensão punitiva fica suspensa.
Portanto, com base nessa premissa, podemos entender que o legislador, assim como fez ao inserir o Artigo 168-A do Código Penal, vale-se do Direito Penal para coibir o responsável tributário ao recolhimento do erário e, este não sendo realizado, concede ao Estado o poder de interferência na liberdade individual da pessoa.
Para o Professor Anderson Soares Madeira (MADEIRA, Anderson Soares. Direito tributário. Rio de Janeiro: Rio, 2006), o entendimento moderno é no sentido do não cabimento de prisão (sendo ela civil ou penal tributária), mas, sim, na execução de seu patrimônio para a devida satisfação do tributo suprimido ou reduzido. Entretanto, enquanto os nobres ministros do Supremo Tribunal Federal não se manifestarem no mesmo sentido, é passível a aplicação de pena de prisão, conforme se depreende do julgado cujo relator Ministro Ricardo Lewandowski afirma que:
as condutas tipificadas na Lei 8.137/1991 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco. Por isso, os delitos previstos na Lei 8.137/1991 não violam o art. 5º, LXVII, da Carta Magna bem como não ferem a característica do Direito Penal de configurar a última ratio para tutelar a ordem tributária e impedir a sonegação fiscal.
Portanto, para nós, apesar de todos os indícios de que o objetivo do legislador é o de punir o agente que se furta do repasse aos cofres públicos, o Estado, por meio do Supremo Tribunal Federal, insiste em manter um posicionamento contrário, afirmando que as condutas não se referem simplesmente ao não pagamento dos valores devidos, por mais que a descrição do tipo seja direta nesse sentido.
2.1.3 Análise comparativa dos tipos penais
Muito embora o Artigo 168-A do Código Penal utilize o vocábulo ‘repassar’ e o Artigo 2º, inciso II da Lei 8137/90 utilize o termo ‘recolher’, ao interpretarmos o contexto dos tipos penais, entendemos que tratam da mesma conduta, pois, a palavra repassar (utilizada no Artigo 168-A, CP), a nosso ver, foi utilizada no sentido de destinar à Previdência Social as contribuições recolhidas. Do mesmo modo, a palavra recolher, utilizada na Lei 8137/90, também se encontra no sentido de destinar a verba à Previdência Social.
Imperiosa é a chegada a esta conclusão, pois, o tipo penal do Artigo 2º, inciso II da Lei 8.137, traz no final da sua redação a expressão que ‘deveria recolher aos cofres públicos’, logo, em se tratando de verbas de Contribuição Social, evidencia-se que os cofres públicos (aos quais as verbas deveriam ser recolhidas) não podem ser outros se não os da Previdência Social.
Em suma, ainda que o legislador utilize palavras distintas, as condutas previstas pelos dois tipos penais em questão são idênticas de forma que, tanto o tipo penal da Lei de Crimes contra a Ordem Tributária como o tipo trazido no Código penal, podem ser resumidos como sendo a conduta de um agente que efetivamente desconta do contribuinte uma quantia em dinheiro sob o pretexto de entrega-la ao órgão governamental competente (Previdência Social), mas que, efetuado o desconto, não o repassa ao Estado de forma a apropriar-se desta quantia monetária.
É de se destacar ainda que, ao aprofundarmos a análise da conduta do Crime de Apropriação Indébita Previdenciária do Código Penal e o Crime trazido na Lei nº 8137, poderemos identificar que a punibilidade pode ser extinta tanto em um quanto em outro diploma legal com o pagamento da obrigação fiscal, o que reforça o nosso entendimento no sentido de que realmente o Direito Penal acaba por ser utilizado como uma fonte de coerção e não como a última ratio do direito brasileiro. Portanto, conclui-se então, que ambos os crimes não são dotados de simples mera semelhança, mas, em verdade, podem resultar no mesmo fato típico, ou seja, numa mesma conduta.
Veja abaixo o quadro comparativo que preparamos:
Quadro 1 – Comparativo entre Código Penal e Lei nº 8.137
3 A FINALIDADE DAS NORMAS INCRIMINADORAS
Luiz Antônio de Souza (2010. p.26), ao classificar as normas penais, as faz em normas penais incriminadoras e normas penais não incriminadoras. Para nós interessa a explicação acerca da norma penal incriminadora, dizendo ele que:
Norma penal incriminadora é aquela que descreve uma infração penal. Possui dois preceitos: preceito primário e preceito secundário. No preceito primário, está a descrição abstrata ou típica do crime (ex.: no art. 121, caput, do Código Penal, o preceito primário é: “Matar alguém”). O preceito secundário traz a sanção abstrata (ou cominada) ao crime (ex.: no mesmo art. 121, caput, do Código Penal, o preceito secundário é “Pena – reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Nesse mesmo sentido, Rogério Greco (2009. p.21) afirma:
Às normas penais incriminadoras é reservada a função de definir as infrações penais, proibindo ou impondo condutas, sob a ameaça de pena. É a norma penal por excelência, visto que quando se fala em norma penal, pensa-se imediatamente, naquela que proíbe ou impõe condutas sob a ameaça de sanção. São elas por isso, consideradas normas penais em sentido estrito, proibitivas ou mandamentais.
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer então que os tipos penais analisados no presente trabalho são, em verdade, normas penais incriminadoras, pois, ambos trazem tanto o preceito primário quanto o preceito secundário, vejamos: No artigo 168-A do Código Penal, o preceito primário consiste em deixar de repassar (imposição de uma conduta) e o preceito secundário, por sua vez, consiste na pena cominada, qual seja: pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Por oportuno, o segundo tipo penal (Crime Contra a Ordem Tributária) possui como preceito primário deixar de recolher (imposição de conduta), sendo o seu preceito secundário a pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Ocorre que, como mencionamos anteriormente, parece-nos que as normas penais no contexto em que a estamos apresentando, são utilizadas apenas como forma de pressionar o agente em mora com os cofres públicos, pois, se o objetivo assim não o fosse, entendemos que não existiriam as causas de extinção de punibilidade mediante a satisfação do crédito.
Sendo o objetivo da lei penal constranger o agente à arrecadação, inócua é a pena trazida por ela, haja vista, interferir no direito de liberdade do sujeito mostra-se contrário a tal objetivo, pois, privando-o, entendemos que mais dificultoso será o recebimento dos valores devidos à Previdência Social, já que outros mecanismos, como, por exemplo, penhora de caixa, podem gradativamente satisfazer o crédito tributário.
4 ASPECTO TRIBUTÁRIO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS
Os crimes que abordamos no presente trabalho estão diretamente relacionados com o ramo do Direito Tributário, e, por esta razão, dispensaremos atenção especial a esta seara do Direito.
Conforme foi demonstrado até aqui, e até mesmo pela mera leitura do texto legal, percebe-se que a palavra contribuição é utilizada na tipificação das duas condutas em questão.
Portanto, para um melhor entendimento dos tipos penais, se faz necessário conceituar o termo Contribuição de forma didática. Para isso, nos dizeres de Eduardo Sabbag (2012. p.503):
As contribuições são tributos destinados ao financiamento de gastos específicos, sobrevindo no contexto de intervenção do Estado no campo social e econômico, sempre no cumprimento dos ditames da política de governo.
Tendo a presente assertiva como parâmetro, é certo dizer que as contribuições são uma espécie de tributo, e, mais uma vez trazemos à tona a questão da duplicidade de condutas até mesmo pelo objeto material dos tipos penais, pois, como vimos no capítulo de análise comparativa, temos em ambos a Contribuição Previdenciária nesta figura.
4.1 Conceituando o tributo
Para fins didáticos, optamos por trazer no presente estudo o conceito de Tributo, que se encontra estampado no Artigo 3º da Lei nº 5.172 de 25 de Outubro de 1966, denominada pelo Artigo 7º do Ato Complementar nº 36, de 13.3.1967 como Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
Com relação à expressão prestação pecuniária, ainda pelos dizeres de Eduardo Sabbag (2012. p.378):
“o tributo é prestação pecuniária, isto é, a obrigação de prestar dinheiro ao Estado”.
Por sua vez, Paulo de Barros Carvalho (1999. p.435) esclarece que:
“prestação pecuniária compulsória quer dizer o comportamento obrigatório de uma prestação em dinheiro, afastando-se, de plano, qualquer cogitação inerente às prestações voluntárias”.
Note que, conforme os dois posicionamentos acima, o tributo é uma prestação obrigatória, não estando dotado de voluntariedade. Por consequência, no contexto do presente trabalho, o recolhimento das Contribuições torna-se obrigatório, já que as contribuições também são tidas como tributo.
Não obstante, no que se refere à expressão de que o tributo não constitui sanção de ato ilícito, Hugo de Brito Machado (2008. p.57) relata que:
o tributo se distingue da penalidade exatamente porque esta tem como hipótese de incidência um ato ilícito, enquanto a hipótese de incidência do tributo é sempre algo lícito. Não se conclua, por isto, que um rendimento auferido em atividade ilícita não está sujeito ao tributo. Nem se diga que admitir que a tributação de tal rendimento seria admitir a tributação do ilícito.
Por sua vez, o referido conceito traz em seu bojo que a prestação pecuniária é instituída em lei. Para nós, temos em especial a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 – Lei Orgânica da Seguridade Social - que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio e dá outras providências. Na mencionada Lei, podemos verificar com clareza a obrigatoriedade do recolhimento das contribuições com a leitura de seu artigo 30.
Por fim, fechando a sucinta conceituação de tributo, verifica-se na sua parte final que a prestação será cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Nesse sentido, o Código Tributário Nacional menciona no parágrafo único do Artigo 142, que o lançamento é a atividade administrativa plenamente vinculada, vejamos:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.
No que diz respeito à nossa análise, o parágrafo 7º do Artigo 33, da Lei nº 8212/91 ratifica que:
“O crédito da seguridade social é constituído por meio de notificação de lançamento, de auto de infração e de confissão de valores devidos e não recolhidos pelo contribuinte”.
Pelo exposto, fechamos o raciocínio de que as contribuições sociais são prestações pecuniárias obrigatórias, que não constituem sanção de ilícito, instituídas em lei e cobradas mediante atividade administrativa plenamente vinculada – o lançamento -, sendo, portanto, uma espécie de tributo, logo, um crédito tributário em favor do Estado. Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho (1999. p.42) aduz que:
Não é de agora que advogamos a tese de que as chamadas contribuições sociais têm natureza tributária. Vimo-las sempre como figuras de impostos ou de taxas, em estrita consonância com o critério constitucional consubstanciado naquilo que nominamos de tipologia tributária no Brasil. Todo o suporte argumentativo calcava-se na orientação do sistema, visto e examinado na sua integridade estrutural. Assim, outra coisa não fez o legislador constituinte senão prescrever manifestamente que as contribuições sociais são entidades tributárias, subordinando-se em tudo e por tudo às linhas definitórias do regime constitucional peculiar aos tributos.
Ainda, segundo o autor supracitado, “A conclusão parece-nos irrefutável: as contribuições sociais são tributos...”. Oportuna, também, a lição de Hugo de Brito Machado (2010, p. 433):
“Diante da vigente Constituição, portanto, pode-se conceituar a contribuição social como espécie de tributo com finalidade constitucionalmente definida, a saber, intervenção no domínio econômico, interesse de categorias profissionais ou econômicos e seguridade social”. Por fim, esclarece o referido autor, que “É induvidosa, hoje, a natureza tributária destas contribuições (...)”.
4.2 Contribuição previdenciária como contribuição social
Elucidamos no decorrer da análise dos crimes em tela que enquanto o Código Penal trata de Apropriação Indébita Previdenciária, o que faz pressupor uma Contribuição Previdenciária, a Lei 8.137/90, por sua vez, fala em Contribuição Social. Logo, é essencial de se compreender que ambos os termos, na realidade, constituem-se na mesma espécie de contribuição.
Segundo o entendimento do Ministro Carlos Velloso, em seu relatório do Recurso Extraordinário nº 138284-8 do Estado do Ceará, as Contribuições Sociais desdobram-se em: contribuições de seguridade social - afirmado ser elas as contribuições previdenciárias -; outras de seguridade social, e, contribuições sociais gerais, vejamos trecho do voto:
As contribuições sociais, falamos, desdobram-se em a.1 contribuições de seguridade social: estão disciplinadas no artigo 195, I, II, e III, da Constituição. São as contribuições previdenciárias, as contribuições do FINSOCIAL, as da Lei 7.689, o PIS e o PASEP (C. F., art. 238). Não estão sujeitas à anterioridade (art. 149, art. 195, parág. 6º); a.2. Outras de seguridade social (art. 195, parág. 4º): não estão sujeitas à anterioridade (art. 149, art. 195, parág. 6º). A sua instituição todavia, está condicionada à observância da técnica da competência residual da União, a começar, para a sua instituição, pela exigência de lei complementar (art. 195, parág. 4º; art. 154, I); a.3. Contribuições sociais gerais (art. 149): o FGTS, o salário-educação (art. 212, parág. 5º), as contribuições do SENAI, do SESI, do SENAC (art. 240). Sujeitam-se ao princípio da anterioridade.
Interessante destacar que o Ministro supramencionado, fez questão de ratificar serem as Contribuições Sociais as tratadas no Artigo 195, I a III, da Constituição da Republica Federativa do Brasil.
Partindo desta premissa, podemos chegar à conclusão de que tanto o Código Penal quanto a lei 8137/1990 tipificam o recolhimento da mesma contribuição, qual seja: a Contribuição Social, pois, o Código trata a ausência de repasse das contribuições à previdência social (sujeito passivo das contribuições sociais/ previdenciárias) e a Lei claramente menciona as contribuições sociais, ou seja, o mesmo tributo em dois diplomas legais diversos.
4.3 Destinação das contribuições sociais
Luciano Amaro (2008. p.53) ao falar sobre as Contribuições sociais diz que:
O que importa sublinhar é que a Constituição caracteriza as contribuições sociais pela sua destinação, vale dizer, são ingressos necessariamente direcionados a instrumentalizar (ou financiar) a atuação da União (ou dos demais entes políticos, na específica situação prevista no parágrafo único do art. 149) no setor da ordem social.
Fácil notar que, embora a redação do artigo 2º, inciso II, da Lei 8137/1990 não utilize a expressão Previdência Social, como é feito no Artigo 168-A do Código Penal, trata claramente da expressão Contribuição Social. No que diz respeito ao termo Contribuição Social, ao analisarmos a Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, verificaremos em seu artigo 195, caput, que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, na forma da lei, mediante recursos provenientes do orçamento dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e das Contribuições Sociais. Particularmente, o inciso I trata da contribuição paga pelo empregador e, por sua vez, o inciso II trata da contribuição paga pelo empregado. Assim, podemos dizer que as Contribuições Sociais são destinadas efetivamente ao custeio da seguridade social.
Nesse aspecto, o Anuário Estatístico da Previdência Social de 2011, em sua Seção IV – Arrecadação, também aduz que as Contribuições Sociais são importâncias devidas à Previdência Social. Veja a íntegra da redação:
A Arrecadação compreende as atividades relacionadas ao recolhimento de receitas de Contribuições Sociais, patrimoniais e de outras importâncias devidas à Previdência Social, previstas na legislação.
Pelo exposto, conclui-se que independentemente do termo que lhe é conferido, ambas as contribuições são destinadas à Previdência Social, para custeio da seguridade social, o que reforça a nossa tese de que os tipos penais tratam de uma mesma conduta, duplamente tipificada.
5 A PREVIDÊNCIA SOCIAL
Em se tratando do destinatário das Contribuições que, se não repassadas, configuram as condutas penalizadas, mister esclarecer o que é a chamada Previdência Social.
Segundo, afirma o próprio Ministério que leva seu nome, a Previdência Social:
(...) é o seguro social para a pessoa que contribui. É uma instituição pública que tem como objetivo reconhecer e conceder direitos aos seus segurados. A renda transferida pela Previdência Social é utilizada para substituir a renda do trabalhador contribuinte, quando ele perde a capacidade de trabalho, seja pela doença, invalidez, idade avançada, morte e desemprego involuntário, ou mesmo a maternidade e a reclusão.
Sua missão é garantir proteção ao trabalhador e sua família, por meio de sistema público de política previdenciária solidária, inclusiva e sustentável, com o objetivo de promover o bem-estar social e tem como visão ser reconhecida como patrimônio do trabalhador e sua família, pela sustentabilidade dos regimes previdenciários e pela excelência na gestão, cobertura e atendimento.
Importante esclarecer que todo o sistema de Previdência Social funciona a partir do binômio Contribuição x Retribuição.
Por contribuição, entendemos ser a forma de arrecadação para os cofres previdenciários. Essa arrecadação está prevista na lei 8.212/91, denominada como a Lei de Custeio da Previdência Social. Tal dispositivo traz a forma de contribuição que deve ser feita por cada espécie de segurado, bem como as contribuições a serem recolhidas pelo empregador.
Em oportuno, por retribuição definimos como o sistema de pagamento de benefícios previdenciários aos segurados que regularmente inscritos na previdência, tendo a qualidade de segurado e a carência mínima exigida em lei. Os benefícios e a forma de pagamento dos mesmos estão previstos na Lei. 8.213/91.
Desta forma, é necessário que exista, primeiramente um número de contribuições previdenciárias, que somados à qualidade de segurado daquele que venha a solicitar o benefício, bem como ao atendimento das exigências para a concessão de determinado benefício, e ainda a carência mínima necessária exigida em Lei, para que sejam concedidos os benefícios pela Autarquia.
Vale salientar que a única exceção a essa regra é o Benefício de Prestação Continuada, que é regido pela Lei 8.742/93. Esse benefício é popularmente conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), sendo que não se trata de um benefício de natureza previdenciária, mas sim um benefício social, o qual é apenas administrado pela Previdência Social.
5.1 A finalidade da Previdência Social
A finalidade da Previdência Social vem descrita na Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 – Lei Orgânica da Seguridade Social – que traz em seu título III, no artigo 3º a seguinte redação:
A Previdência Social tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.
Pela redação do inciso supracitado, chega-se à conclusão de que a essencial finalidade da Previdência Social é prover aos seus beneficiários meios indispensáveis de sua subsistência e de sua família.
Cumpre-nos frisar, que os beneficiários da Previdência Social encontram-se nomeados no artigo 12 da Lei Orgânica da Seguridade Social, ou seja, da Lei nº 8.212 de 24 de julho de 1991.
Assim, se evidencia que a Previdência Social é um órgão governamental essencial ao Estado Democrático de Direito Brasileiro. Isto, pois a Previdência Social é, por muitas vezes, o braço governamental responsável e garantidor de ao menos o mínimo de dignidade e efetividade de direitos fundamentais a grande parte da sociedade.
É em decorrência dessa função exercida pela Previdência Social que o legislador entendeu ser necessário se utilizar da última ratio como forma de mecanismo para coibir, por meio da tipificação de condutas lesivas, qualquer forma de prejuízo ao sistema previdenciário nacional, contudo, a nossa ressalva sobre a efetividade/assertividade de tal atitude, visto que entendemos haver outras maneiras de satisfação de créditos tributários que não a privação à liberdade.
6 CONFLITO INTERTEMPORAL
Realizada a descrição das condutas em um e em outro diploma legal; explanado sobre o aspecto tributário das contribuições; realizada a definição da Previdência Social e da sua finalidade; e, explicado sobre as Contribuições Previdenciárias serem as Contribuições Sociais, logo, ficando demonstrada a duplicidade de condutas existentes no ordenamento jurídico vigente, passemos agora à análise do aspecto temporal das legislações em comento.
Em consonância com a lição apresentada pelo doutrinador Luiz Antônio de Souza (2010. p.31):
Conflito intertemporal é o conflito de leis penais no tempo, que ocorre quando leis penais, que tratam do mesmo assunto, mas de modo diverso, sucedem-se no tempo, havendo necessidade de se decidir qual a aplicável (...).
Entre as duas tipificações objeto deste estudo podemos entender que existe o mencionado conflito intertemporal, também chamado de conflito de leis penais no tempo, pois, quando da entrada em vigor do Artigo 168-A do Código Penal (que se deu em 12 de outubro de 2000, observado o período de Vacatio Legis, estabelecido na lei nº 9.983 que o instituiu) já existia no ordenamento a Lei nº 8137 de 27 de dezembro de 1990, tratando do mesmo assunto, conforme demonstrado no decorrer da presente leitura.
6.1 Descrição do conflito intertemporal
A nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XL, preceitua que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Percebemos que a “Lei das leis” instituiu o princípio da irretroatividade das leis, mas também salvaguardou as hipóteses em que sejam os réus beneficiados por uma lei que, a princípio, não poderia retroagir.
Por sua vez, o art. 1º do Código Penal Brasileiro nos traz o princípio da anterioridade da lei penal, ao estabelecer que não há crime ou pena sem lei anterior, mas o parágrafo único do art. 2º do CP, no alinhamento constitucional, também previu a hipótese da retroatividade da lei penal benigna (lex mitior), ou seja, aquela que de uma forma ou outra venha a beneficiar o acusado ou o réu.
Bem explicita MIRABETE (2005. p. 60), ao ensinar que:
“... havendo conflito de leis penais com o surgimento de novos preceitos jurídicos após a prática do fato delituoso, será aplicada sempre a lei mais favorável”.
Na prática, a solução buscada ao ocorrer o conflito de leis penais no tempo é alcançada a partir das seguintes hipóteses doutrinárias: novatio legis incriminadora; abolitio criminis; novatio legis in pejus e novatio legis in mellius. Nos ateremos aqui a novatio legis in pejus. Conforme ensina, mais uma vez, MIRABETE (2005. p. 60):
“nessa situação (novatio legis in pejus) estão as leis posteriores em que se comina pena mais grave em qualidade (reclusão em vez de detenção, por exemplo) ou quantidade (de 02 a 08 anos, em vez de 01 a 04, por exemplo); se acrescentam circunstâncias qualificadoras ou agravantes não previstas anteriormente; se eliminam atenuantes ou causas de extinção da punibilidade; se exigem mais requisitos para a concessão de benefícios, etc.”. (grifos nossos)
Nessa linha, voltando a atenção para os crimes estudados no presente trabalho, compreendemos que o conflito verificado entre o Artigo 168-A do Código Penal e a Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária seja o denominado de Novatio legis in pejus. No nosso caso, a Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária (Lei 8137/90)é a lei mais benéfica para o agente, haja vista, a pena cominada é de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, enquanto que o Código penal a pena para a mesma conduta é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Portanto, em casos de ausência de repasse dos tributos previdenciários, cremos que o Artigo 168-A do Código Penal não deva ser aplicado por constituir verdadeira Novatio Legis In pejus, já que discorremos até aqui a respeito da existência de uma duplicidade de condutas em normas penais distintas, sendo que a pena trazida no diploma penal (lei posterior)é mais gravosa tanto em qualidade como em quantidade (reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa ao invés de pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, conforme a Lei nº 8137/90.
7 COMENTÁRIOS SOB A LUZ DO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
Conforme já analisamos até aqui, os tipos em questão têm por finalidade preservar o recolhimento de tributos para custeio do serviço de Previdência Social, assim, o legislador houve por bem criar uma norma incriminadora para exercer, por meio da última ratio a coerção ao pagamento de referidos tributos.
Contudo, tal decisão legislativa, a luz do atual sistema de direitos humanos, não nos parece ser a mais acertada. Isto, pois, a tipificação destas condutas contraria completamente o princípio da intervenção mínima. Segundo Damásio de Jesus (2002, p. 10), referido princípio tem por escopo:
(...) restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes e a imposição de penas injustas, desumana ou cruéis, a criação de tipos delituosos deve obedecer a imprescindibilidade, só devendo intervir o Estado, por intermédio do Direito Penal, quando os outros ramos do Direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita.
No mesmo sentido, Cezar Roberto Bittencourt (2006, p. 17) assevera que:
(...) a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal dever ser a última ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.
Assim, concluímos que a tipificação seja por meio do delito do artigo 168-A do Código Penal, seja por meio do crime previsto na Lei 8.137/90, fere o princípio da intervenção mínima por parte do Direito Penal, uma vez que seria perfeitamente possível exercer o poder de coerção estatal por outros meios, elegendo-se a título de exemplo, a aplicação de multas, penhora de caixa e afins.
Ademais, conforme demonstrado, existe grande celeuma acerca da necessidade ou não de dolo específico de fraudar a previdência, para que restem configurados os tipos penais. Desta forma, não havendo certeza sobre o dolo envolto na conduta do agente, ainda que nos pareça mais acertado o posicionamento de que seria necessário dolo específico para a configuração, conclui-se que, na realidade os tipos penais por muitas vezes não pune aquele que deseja de fato fraudar a previdência, mas aquele que se encontra inadimplente para com o fisco, ou seja, em mora com o Estado.
Importante ressaltar que a Convenção Americana de Direitos Humanos, popularmente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica em seu Artigo 7º - Direito à Liberdade Pessoal – item 7, prevê expressamente que ninguém será recolhido a prisão em decorrência de dívida, excetuando-se se os mandados emanados da autoridade judiciária decorra de inadimplemento de obrigação alimentar. Sendo a República Federativa do Brasil signatária do referido pacto, que passou a ter validade no ordenamento interno a partir do Decreto 678 de 6 de novembro de 1992, torna-se impossível de se conceber por constitucional a prisão daquele que está em dívida para com o fisco.
Infere-se então que as tipificações em questão, além de toda a problemática trazida em decorrência da duplicidade de condutas, à primeira vista ferem diretamente a Constituição Federal, já que com a promulgação da Emenda Constitucional número 45 de 2004 (que trata da reforma do Judiciário), os tratados cujo teor trate de questões de direitos humanos passaram a vigorar de imediato e a ser equiparados às normas constitucionais.
8 CONCLUSÃO
Por todo o exposto no presente trabalho, chegamos à conclusão de que a conduta descrita no Artigo 168-A do Código Penal acaba por ser a mesma que anteriormente já era tipificada por meio do Artigo 2º, inciso II, da Lei 8137/1990, que define os Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo, e dá outras providências.
Tal conclusão pode ser obtida seja analisando a ótica tributária, considerando-se o tributo que é objeto material das duas tipificações (as Contribuições Sociais/Previdenciárias), seja pela destinação dos recursos de sua arrecadação (Previdência Social).
Concluímos também, que sendo as condutas dúplices no ordenamento, existe inegável conflito intertemporal entre elas, que foi demonstrado no sexto capítulo deste estudo, e, tratando-se de normas penais incriminadoras, a tipificação mais benéfica ao agente é a que deve ser aplicada, ou seja, a Lei nº 8137/1990. Isso, levando-se em consideração que a pena cominada em tal Lei é inferior à cominada no outro diploma legal (Código Penal).
Em tempo, conclui-se e traz-se à crítica de que as penas impostas nas dúplices tipificações se tornam, além de desarrazoadas e desproporcionais, o que por si só, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, já seria impeditivo para existência do tipo, são inócuas. Isto, pois, pudemos verificar que a principal finalidade de ambos é a preservação dos subsídios da previdência social. Na realidade, conforme restou demonstrado, os tipos penais em questão servem como forma de coerção ao agente que figura com substituto tributário, para que este não deixe de repassar ao destinatário – previdência social - o imposto – contribuição social - por ele recolhido. Sendo a finalidade das normas penais que foram objeto do presente trabalho atuar como meio de coerção, concluímos serem elas inócuas, pois, a pena imposta em ambas as tipificações acaba por privar a liberdade do agente, o que o impedirá de angariar fundos para o pagamento das contribuições, ou seja, sendo preso o substituto tributário nos crimes tratados por nós, a finalidade da norma penal não será atingida, isto porque se enquanto dispondo de sua liberdade o agente não pode honrar com o pagamento das contribuições, muito menos poderá honrá-las se estiver privado de sua liberdade.
Por fim, concluímos que as normas penais incriminadoras apenam, em verdade, os sujeitos que estão em débito com a previdência social, tendo em vista que ambas tratam de deixar de recolher aos cofres públicos as contribuições descontadas ou recolhidas. Nesse sentido, há indício de afronta à Constituição Federal, pois, a base do nosso ordenamento jurídico veda expressamente em seu artigo 5º, inciso LXVII a prisão por dívida, e, fere ainda, o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos quanto ao assunto privação de liberdade.
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