UMA RESPOSTA DA SOCIEDADE?

15/08/2019 às 21:06
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O ARTIGO DISCUTE RECENTE PROJETO APROVADO PELO CONGRESSO NACIONAL ENVOLVENDO DELITO DE ABUSO DE AUTORIDADE.

UMA RESPOSTA DA SOCIEDADE?
Rogério Tadeu Romano

I – O CASO

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira, dia 14 de agosto do corrente ano, o projeto que endurece as punições por abuso de autoridade de agentes públicos, incluindo juízes, promotores e policiais. O texto já passou pelo Senado e vai à sanção presidencial.

De acordo com o projeto, são considerados passíveis de sanção por abuso de autoridade membros dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, membros do Ministério Público, membros de tribunais ou conselhos de contas, servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas.

São condutas que deverão ser objeto de apenação:

Prova por meio ilícito
Obter prova em procedimento de investigação por meio ilícito (até quatro anos de detenção).
Condução ‘descabida’
Decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado de forma descabida sem prévia intimação (até quatro anos de detenção).
Prisão e apreensão
Captura, prisão ou busca e apreensão sem situação de flagrante delito ou sem ordem judicial (até quatro anos de detenção).
Expor intimidade
Divulgar gravação sem relação com as provas, expondo a intimidade (até quatro anos de detenção).
Atribuição de culpa
Antecipar a atribuição de culpa, inclusive em rede social e antes de concluídas as apurações (pena de seis meses a 2 anos de detenção).
Algemas sem necessidade
Submeter preso ao uso de algemas, quando estiver claro que não há resistência à prisão (até dois anos de detenção).

Observe-se que alguns desses crimes, com pena máxima de 2 anos, poderão ser colhidos pelo princípio da bagatela, devendo ser objeto de aplicação das sanções albergadas no juízo de pequenas causas. São, portanto, esses delitos, crimes de bagatela.

II – A AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA DA AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA

Preocupa a inserção no texto da chamada ação penal privada.

Prevê, aliás, no modelo normativo exposto, uma ação penal na hipótese de omissão do Parquet, dentro da obrigatoriedade que lhe é inerente, deixar de ajuizar, a seu tempo, a denúncia.
 
A ação penal privada é aquela que pode ser promovida pelo próprio ofendido mediante queixa, nos casos taxativos prescritos em lei.
 
Há a ação penal privada exclusiva, propriamente dita, quando diretamente prevista na lei, e a ação penal privada personalíssima, como se vê do artigo 31 do Código Penal combinado com o artigo 100, § 4º, CP.
 
Discute-se a ação penal privada subsidiária da pública
 
São  aqueles casos em que, diversamente das ações penais privadas exclusivas, a lei não prevê a ação como privada, mas sim como pública (condicionada ou incondicionada). Ocorre que o Ministério Público, Titular da Ação Penal, fica inerte, ou seja, não adota uma das três medidas que pode tomar mediante um Inquérito Policial relatado ou quaisquer peças de informação:  propor o arquivamento, denunciar ou requerer diligências. Para isso o Ministério Público tem um prazo que varia em regra de 5 dias para réu preso a 15 dias para réu solto. Não se manifestando (ficando inerte) nesse prazo, abre-se a possibilidade para que o ofendido, seu representante legal ou seus sucessores (art. 31, CPP c/c art. 100, § 4º., CP), ingressem com a ação penal privada subsidiária da pública. Isso tem previsão constitucional (artigo 5º., LIX, CF) e ordinária (artigos 100, § 3º., CP e 29, CPP).
 
Diversa é a situação do Parquet nas ações penais privadas subsidiárias da pública, pois, no caso, é  interveniente adesivo obrigatório. Pode intervir, diante da queixa-crime ajuizada pela vítima em face de sua inércia, obrigatoriamente, até para repudiar a ação, formulando nova peça processual(denúncia substitutiva) e até, diante do abandono do autor, prosseguir no polo ativo, ação penal indireta. Tal não se dá na ação penal privada propriamente dita e ainda naquela personalíssima. Afinal, se o Parquet for alijado da lide, na ação penal privada subsidiária da pública, haverá nulidade absoluta, que não se presume.
 
O Ministério Público deverá fundamentar o repúdio, fornecendo elementos de prova.
 
Poderá o Parquet, caso entenda que ação penal proposta pelo particular não atende os mínimos requisitos legais, deverá se manifestar pela rejeição da inicial pelo magistrado. Caso assim não entenda o juiz, poderá, outrossim, o Parquet ajuizar habeas corpus para trancar essa ação penal que foi iniciada.
 
Poderá o Parquet interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal. Ora, a ação penal privada subsidiária da pública é indisponível. Caso se o querelante vier a apresentar perdão ou, se for desidioso, tentando ocasionar a perempção, deve ser afastado do polo ativo da relação processual, assumindo o Ministério Público, dali por diante, como parte principal(ação penal indireta). Ao querelante afastado lhe será dada a faculdade de ingressar como assistente.
 
Aliás, nessas ações penais privadas subsidiárias da pública, não tenho dúvida de que o Parquet tem legitimidade e interesse de recorrer.
 
Há um ponto específico a discutir no projeto da nova lei de abuso de autoridade:  a possibilidade de ações privadas subsidiárias num prazo de 15 dias, ou seja, a permissão para que ações sejam apresentadas por pessoas que alegarem ser vítimas de abuso de autoridade.
 
Repita-se: a legitimidade para ajuizar ação penal pública por crimes previstos na lei de abuso de autoridade é do Parquet, mas permite-se ações penais privadas subsidiárias se nada se faça em 15(quinze).
 
Veja-se que, no projeto,  a ação penal nos casos dos crimes ora tipificados é pública condicionada à representação do ofendido, sendo que, em caso do não ajuizamento da ação no prazo devido pela autoridade competente, conceder-se-á prazo para que o ofendido possa ajuizar a ação penal privada
 
A especificação sobre ações privadas está nos parágrafos quinto e sexto do artigo 3º. “Será admitida ação privada subsidiária, a ser exercida se a ação pública não for intentada pelo Ministério Público no prazo de 15 dias”, diz o texto. “A ação privada subsidiária será exercida no prazo de seis meses.”
III – OS ANTECEDENTES E O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
 
Na Itália, no day after da operação “mãos limpas” tentou-se criminalizar os investigadores.

No Brasil, a operação Lava-Jato, que é tida como a mais bem sucedida operação do Estado na persecução a crimes de colarinho branco, de corrupção, peculato, por exemplo, envolvendo agentes políticos e empresários a eles ligados, teve suas distorções.

É certo que no bojo das preocupações há:

1. Mensagens reveladas pelo site The Intercept Brasil indicam troca de colaboração entre Moro, então juiz, e Deltan, procurador e coordenador da força-tarefa da Lava Jato.

2. Segundo a lei, o juiz não pode auxiliar ou aconselhar nenhuma das partes do processo.

3. Vazamento pode levar à anulação de condenações proferidas por Moro, caso haja entendimento que ele era suspeito (comprometido com uma das partes). Isso inclui o julgamento do ex-presidente Lula.

Diga-se que diversas situações levaram ao andamento do projeto discutido:

1 - Justiça autoriza condução coercitiva de Lula Embora com residência fixa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi levado coercitivamente (quando a pessoa precisa ir prestar esclarecimentos, mesmo contra a sua vontade) para depor na Polícia Federal no dia 4 de março de 2016, na 24ª fase da Operação Lava Jato. A decisão foi do então juiz e atual ministro da Justiça, Sergio Moro.

O  caso, na época considerado abuso por especialistas, não teria acontecido se a lei aprovada ontem já estivesse sancionada;

2. Ainda em 2016, Moro também grampeou e divulgou a gravação do telefonema trocado pela então presidente Dilma Rousseff (PT) com Lula. O diálogo foi gravado às 13h32, mas a suspensão da captação do áudio do telefone de Lula havia sido determinada às 11h12 daquele mesmo 16 de março. Para Moro, a conversa revelaria manobra do governo para empossar Lula na Casa Civil, que ganharia foro privilegiado e poderia escapar da prisão. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) questionou Moro, que pediu "respeitosas escusas" ao STF (Supremo Tribunal Federal);

3 . Em janeiro do ano passado, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB) chegou ao IML (Instituto Médico Legal) de Curitiba para fazer o exame de corpo de delito com algemas nas mãos e uma corrente nos pés. Na época, o advogado Rodrigo Roca, que defende o ex-governador, afirmou que "esqueceram apenas de colocar o capuz e a corda."...

Dir-se-ia que para tais condutas haveria a possibilidade de ajuizamento de recursos dentro do rol estabelecido pela legislação processual penal brasileira. Mas o tipos penais exigem o elemento dolo, que se dá seja de forma direta ou eventual.

Mas parece que, à luz do princípio da intervenção penal mínima, o caso seria de, dentro do princípio da legalidade, criar condutas penais que seriam objeto de apenação, sempre que houver extrapolação dessa conduta e ainda desproporcionalidade entre os seus meios empregados e os fins a que se propõe.

Neste contexto a preocupação da sociedade é de se evitar que atitudes, de triste memória, como à época de regimes de exceção, se proliferem fazendo lembrar o aparelho de repressão criminal do país a uma Gestapo.

O princípio da intervenção mínima, também conhecida como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficiente medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

Roxin também assevera sobre o assunto:

De lo dicho hasta ahora de desprende ya que la protección de bienes jurídicos no se realiza sólo mediante el Derecho penal, sino que a ello ha de cooperar el instrumental de todo el ordenamiento jurídico. El Derecho penal sólo es incluso la última de entre todas las medidas protectoras que hay que considerar, es decir que sólo se le puede hacer intervenir cuando fallen otros medios de solución social del problema como la acción civil, las regulaciones de policía o jurídico-técnicas, las sanciones no penales, etc. Por ello se denomina a la pena como la "ultima ratio de la política social" y se define su misión como protección subsidiaria de bienes jurídicos.

Segundo André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves:

O Direito Penal deve ser a última fronteira no controle social, uma vez que seus métodos são os que atingem de maneira mais intensa a liberdade individual. O Estado, portanto, sempre que dispuser de meios menos lesivos para assegurar o convívio e a paz social, deve deles se utilizar, evitando o emprego da pena criminal.

Observe-se que aquele modelo penal exposto à época do início da ditadura militar, que ficou conhecido como Lei de Abuso de Autoridade, editada em 1965, já não apresenta a reação social a certas condutas emanadas das autoridades.

Não se está falando em “crime de hermenêutica”, mas em uma conduta dolosa que, sob a roupagem de legalidade, agride direitos e liberdades individuais.

IV – TEORIAS PUNITIVAS

Por certo, os exemplos citados expõem a necessidade de uma reação da sociedade, através do que se chama de reserva de parlamento, para a criação desses tipos penais aventados.

Ab initio, cabe lembrar a teoria da retribuição, própria do Estado Liberal, como uma concepção liberal do direito penal, inerente à própria construção do Estado-de-direito embora seja ela sempre associado a uma certa concepção autoritarista e supra-individualista do Estado, como fim a concepção nacional-liberal de Bismarck, na Alemanha. De fato, como disse Radbruch, foi com esta cor particular que a teoria da retribuição, de fundo liberal, veio a fazer parte das ideias penais de Binding, inteiramente orientadas, como se sabe, no sentido de uma concepção autoritarista.

Aborda-se a aqui, ab initio, na chamada teoria da intimidação, exposta por Feuerbach.

A teoria da intimidação, em verdade, serviu ao liberalismo e ao fascismo.

A teoria da intimação veio, um pouco paradoxalmente, a constituir precisamente um meio de unir o direito penal e a lei o direito penal e as situações de fato, e de se chegar a estabelecer uma proporcionalidade entre os delitos e as penas, revelando-se afinal o seu íntimo parentesco com as teorias da retribuição. Essas últimas teorias vinham de uma concepção liberal do direito penal, inerente a própria construção do Estado de direito.

A teoria da intimidação experimentou recentemente um renascimento, dentro de um caráter terrorista do fascismo. O direito penal deste Estado não tem o caráter dum direito para a defesa da sociedade, no sentido do que lhe fora atribuído por Ferri, mas para a defesa do próprio Estado, e é na intimidação e inutilização de seus inimigos, manifestadas em inúmeros casos de pena de morte, que este Estado encontra o melhor meio de se garantir.

O direito penal deste Estado não tem o caráter de um direito para a defesa da sociedade, no sentido que lhes foi atribuído por Ferri, mas para a defesa do próprio Estado,  e é na intimidação e inutilização dos seus inimigos, manifestadas em inúmeros casos de pena de morte, que este Estado encontra o melhor meio de se garantir. Essa a conclusão que já tivera Eberhard Schimidt(Staat und Recht, caderno 79, página 18).

Devem ser objeto de estudos as teorias da prevenção e da reforma, quando logicamente desenvolvidas, conduziriam às conclusões que indicamos, à luz das ideias de Gustav Radbruch(Filosofia do direito, tradução e prefácios do professor Cabral de Moncada, sexta dição, Armênio Amado, Coimbra, pág. 323).

Como expôs Radbruch, “significa indiscutivelmente uma grave complicação para a teoria da prevenção especial o fato de ela não ser capaz de determinar só por si a estruturação do direito penal e ainda o de esta última só se poder obter por meio de uma colaboração entre o pensamento finalista e a prevenção especial e às ideias de e segurança do direito. Como ainda disse Radbruch: “Se, por um lado, a ideia de segurança jurídica preserva o pensamento da prevenção especial de chegar até às suas últimas consequências – como seria querer estender a pena aos atos preparatórios, às intenções e ao foro íntimo de cada um – por outro lado, não deixa também a ideia de justiça(que aliás de certa maneira exige que sejam tratadas de modo igual ainda as pessoas e as relações desiguais) de se opor a uma individualização da pena levada até aos seus últimos limites, muito embora isso estivesse na lógica do pensamento finalista da teoria da prevenção especial.

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Nesse enfoque preventivo, pretende-se ver a legislação de abuso de autoridade como uma resposta da sociedade aos abusos tomados pelas autoridades, em algumas condutas narradas acima. Uma defesa da sociedade, não uma resposta de um Estado autoritário, pois o que se busca é prevenir futuras condutas contra ela, que atinjam os limites de seus direitos individuais, num garantismo próprio do Estado de Direito. 

Como tal ficaria justificada a pena, à luz de uma lógica prevenção, visando a correta resposta da sociedade aos excessos da autoridade dentro de sua atuação persecutória.
Estariam os que assim cometem tais delitos acima firmados no excesso de exercício do chamado direito penal do inimigo?

Ora, essa teoria do doutrinador alemão “Günter Jakobs”, denominada como “Direito Penal do Inimigo” vem, há mais de 20 anos, tomando forma e sendo disseminada pelo mundo, conseguindo fazer adeptos e chamando a atenção de muitos.

Como disse Bruno Fiorentino de Matos(Direito Penal do Inimigo), de uma forma sintética, essa Teoria tem como objetivo a prática de um Direito Penal que separaria os delinqüentes e criminosos em duas categorias: os primeiros continuariam a ter o status de cidadão e, uma vez que infringissem a lei, teriam ainda o direito ao julgamento dentro do ordenamento jurídico estabelecido e a voltar a ajustar-se à sociedade; os outros, no entanto, seriam chamados de inimigos do Estado e seriam adversários, inimigos do estado cabendo a estes um tratamento rígido e diferenciado.

Os inimigos perdem o direito às garantias legais. Não sendo capazes de adaptar-se às regras da sociedade, devem ser afastados, ficando sob a tutela do Estado, perdendo o status de cidadão.
Jakobs vale-se dos pensamentos de grandes filósofos como Rosseau, Hobbes, Kant e Fichte para sustentar suas teorias, buscando agregar valor e força aos seus argumentos.

Assim, aos cidadãos delinquentes, terão proteção e julgamento legal; aos inimigos, coação para neutralizar suas atitudes e seu potencial ofensivo e prejudicial.

Os três pilares que fundamentam a Teoria de Jakobs, que são: antecipação da punição do inimigo; a desproporcionalidade das penas e relativização ou supressão de certas garantias processuais e a criação de leis severas direcionadas à indivíduos dessa específica engenharia de controle social (terroristas, supostos líderes de facções criminosas, traficantes, homens-bomba, etc.), poderiam funcionar perfeitamente em uma sociedade que tivesse condições e capacidades especiais para distinguir entre os que mereceriam ser chamados de cidadãos e os que deveria ser considerados os inimigos.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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