É cediço, que o Ordenamento jurídico brasileiro possui uma gama de direitos relacionados à proteçao da vida, passando pela gestação, proteção da criança e do adolescente até a fase adulta. Os seres humanos têm seus direitos protegidos desde a concepção, ainda que a personalidade civil só se inicie com o nascimento com vida. Mesmo o embrião congelado tem certa proteçao através da Lei 11.105/2005, que proíbe manobras de engenharia genética e clonagem.
Na esfera penal, o legislador incluiu o aborto e o infanticídio como espécies de crimes contra a vida, juntamente com o homicídio.
A prática abortiva existe desde a antiguidade, presente em todas as civilizações, dos índios amazônicos aos portugueses que nos colonizaram. Na Roma antiga o feto era considerado vísceras da mulher, não gozando de nenhuma proteção. Somente com a égide do Cristinianismo nas sociedades ocidentais a prática passou a proibida chegando a ser equiparada ao próprio homicídio em determinadas épocas. Com o movimento filosófico iluminista do século XVIII esta equiparação deixou de existir.
No sentido técnico da obstetrícia, aborto é o produto eliminado pelo trabalho de abortamento até a 20a semana de gestação. A partir daí trabalha-se com o conceito de parto imaturo e prematuro. No sentido utilizado no direito penal e na medicina legal, aborto (do latim ab ortus, privaçao de nascimento) é a interrupção dolosa da gestação com a consequente morte do feto, intrauterina ou extrauterina, por inaptidão/inviabilidade para a vida.
Os métodos abortivos são dos mais variados, desde a utilização de chá de ervas abortivas a utilização de remédios, como Citotec, Misoprostol, entre outros.
Uma das características do aborto é que é crime de mão própria. Isso quer dizer que apenas a gestante pode ser autora desse crime. Entretanto, outra pessoa pode induzir, instigar e até mesmo auxiliar a gestante no cometimento do crime.
Nesse sentido, o Código Penal pune a interrupção dolosa da gestação sendo um crime de forma livre, podendo ser praticado por qualquer meio, seja pela ingestão de remédios ou vegetais, procedimentos cirúrgicos ou até pela autolesão da gestante. Vejamos:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Vamos exemplificar:
1º Caso: A mulher grávida chega até o companheiro e diz que quer abortar. Ele a instiga a praticar o aborto. Qual crime ela pratica? A mulher pratica o crime do art. 124, ou seja, autoaborto. E o companheiro, por qual crime responderá? Ele responderá também pelo art. 124. Mas, atentem-se ao detalhe: o companheiro responderá na modalidade de PARTÍCIPE, nao podendo em nenhuma hipótese ser cóautor, pelo fato de ser um crime próprio, podendo também responder pelo art. 126.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Frise-se que o Art. 125, possui como sujeito ativo qualquer pessoa, tratando-se de crime comum, possuíndo dupla subjetividade passiva, no caso, o feto e a gestante, protegendo a incolumidade física desta e a vida daquele.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior (art. 125), se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Aborto necessário
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Cumpre ressaltar, que no caso art. 127, temos a forma qualificada do aborto, com aumento de pena, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Na mesma esteira, não é, punível o aborto terapêutico ou necessário, aquele realizado para salvar a vida da gestante, quando constitui o único meio de salvá-la, em razão de alguma condição patológica em que a continuação da gestação possa comprometer a vida dela.
* PONTO QUE MERECE DESTAQUE:
Aborto Eugênico: aborto de feto com anencefalia (ADPF 54)
ATENÇAO:
No aborto necessário/terapêutico, o fato é típico mas nao é antijurídico porque há causas de exclusão de ilicitude (estado de necessidade);
No aborto humanitário/sentimental, o fato é típico mas nao é antijurídico porque há causas de exclusão de ilicitude ( exercício regular do direito);
No aborto eugênico, o fato nem chega a ser típico, é fato atípico porque, segundo o STF, é caso de crime impossível (ADPF 54).
Cumpre ressaltar, que não se exige autorizaçao judicial para nehuma das formas de aborto permitidas. E o consentimento da gestante apenas nos casos de aborto sentimental e eugênico.
INFANTICÍDIO E O ESTADO PUERPERAL
Dispõe o art. 123 do CP que é punível com pena de detenção de 2 a 6 anos matar, sob a influência do estado puerperal , o próprio filho, durante o parto ou logo após.
Puerpério é o período vulgarmente chamado de resguardo, que dura da saída da placenta até o retorno do corpo da mulher às condições anteriores ao parto. Toda mulher passa pelo puerpério. Este é um período físico.
No entanto, o tipo penal considera a influência do estado puerperal mesmo antes do parto, que deve ser entendida como um conjunto de alterações fisiopsíquicas ocorridas durante ou logo após o parto. Atente-se que antes da expulsão da placenta não se pode falar em puerpério, mas a lei considera a influência do estado puerperal durante o parto. Por isso, diferencia-se do puerpério, que é somente uma alteração física ocorrida após o parto, ou seja, menos abrangente que a influência do estado puerperal.
Não obstante, esta "influência do estado puerperal" como causadoras de abalos e perturbações fisiopsíquicas momentaneas é alvo de severas críticas, porque praticamente não se consegue diagnosticar a ação decorrente deste estado. É uma ficção jurídica que sequer consta no Código Internacional de Doenças (CID).
Ressalta-se que a lei não estipula um prazo para o "logo após” o parto.
Importante frisar:
* Com a condição de puerpério, tem-se o infanticídio
* Sem a condição de puerpério, tem-se o homicídio.
Um ponto que merece destaque é quando a condição pessoal, elementar de um crime penal é comunicável, ou seja, a condição se transfere a pessoa que agir em concurso de agentes com aquela que tem a qualidade exigida pelo crime. É o que nos mostra o art. 30 do CP.
Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.
Vamos exemplificar:
Caso 1: O homem, pai da criança, não sofre com o puerpério. Ou seja, está no seu juízo normal. Se aproveitando da situação, por não querer a criança, ajuda a matar o próprio filho. Os dois juntos pegam um travesseiro e sufocam a criança.
Crime cometido pela mãe: INFANTICÍDIO
Crime cometido pelo pai: INFANTICÍDIO, também.
Caso 2: Mãe, em estado puerperal, logo após o parto, se dirige ao berçário para matar o seu filho. Entretanto, por erro, acaba matando o filho de outra pessoa. Por qual crime essa mãe responderá?
A resposta está no art. 20, parágrafo 3º do CP. Nesse caso, a pessoa responde pelo crime que quis praticar e praticou. Porém, leva-se a responsabilização penal as características da pessoa a qual se queria atingir, e não as características da pessoa que efetivamente foi atingida. Percebe-se no caso em comento, o erro de tipo acidental sobre a pessoa. Vejamos:
Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
§ 3º - O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.
Por todo exposto, o estado puerperal possui diversos posicionamentos. Algumas correntes sustentam que a influência do estado puerparal é puramente psicológica, ligada ao motivo de honra, gerando um abalo emocional, uma forte angústia moral na parturiente.
Bibliografia:
HÉRCULES, Hygino de Carvalho. Op. cit.p.671 e FRANÇA, Genival Veloso
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v2. 4a ed. São Paulo: RT, 2005
FRANÇA, Genival Veloso de. Op.cit.p.806
MEDICINA LEGAL, Paulo Furtado e Pedro Henrique Neves; Editora Jus podvim, 2019
Professor Alexandre Zamboni; CERS - Complexo de Ensino Renato Saraiva