O PENSAMENTO DO MINISTRO CARLOS MAXIMILIANO COM RELAÇÃO AO DIREITO INTERTEMPORAL

19/08/2019 às 10:17
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O ARTIGO APRESENTA DE FORMA RESUMIDA O PENSAMENTO DO MINISTRO CARLOS MAXIMILIANO COM RELAÇÃO AO DIREITO INTERTEMPORAL.

O PENSAMENTO DO MINISTRO CARLOS MAXIMILIANO COM RELAÇÃO AO DIREITO INTERTEMPORAL

Rogério Tadeu Romano

O ministro Carlos Maximiliano explanou sua doutrina sobre o tema no célebre Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis, 2ª edição, 1955, pág. 24 e seguintes).

Sua argumentação partiu das lições de Savigny, ao distinguir a aquisição e a existência dos direitos. Explicou que aquisição de direito é o vínculo que une um direito a um indivíduo, ou a transformação de uma instituição de direito(abstrata) em uma relação de direito(pessoal). Observou que a existência dos direitos não se confunde com a aquisição; esta abrange o direito no sentido subjetivo; aquela, no objetivo; uma versa a respeito do elemento permanente e imutável das relações de direito; a outra, sobre o elemento móvel.

Segundo Savigny, se a irretroatividade é a regra no que tange à aquisição do direito, tal princípio não tem aplicação quanto às regras que têm por objeto a existência dos direitos. Como tais considera-se as leis relativas ao contraste entre a existência ou a não-existência de uma instituição de direito(por exemplo, a lei que aboliu a servidão à gleba). Daí os princípios: as leis novas pertencentes a esta segunda classe têm efeito retroativo; as leis novas pertencentes a esta classe não devem manter os direitos adquiridos.

Savigny pretendeu dar aos conflitos de leis no tempo solução análoga à dos conflitos de leis no espaço, partindo, na observação de Pacchioni(Delle Leggi in Generale, pág. 251 e seguintes), do princípio segundo o qual, como não se deve admitir que o juiz deva sempre e em qualquer caso aplicar o seu próprio direito(lex fori – princípio da territorialidade), assim também não se pode admitir que ele deve, em qualquer caso, aplicar a lei mais recente às relações nascidas sob o império da lei mais antiga(princípio da irretroatividade ou do respeito aos chamados direitos adquiridos).

Ninguém pode negar, como disse Savigny, que nesse princípio se encontra verdade importantíssima; entretanto, não se pode seguir a doutrina dominante no considerar a irretroatividade(o chamado respeito aos direitos adquiridos) como um princípio único e absoluto, salvo admitindo-se que tal princípio tolera exceções necessárias para evitar algumas consequências absolutamente iníquas e inaceitáveis.

Segundo Savigny, na exposição de Pacchionni(obra citadas), deve-se afastar a ideia de que a irretroatividade das leis ou – o que para ele era idêntico – o respeito aos direitos adquiridos seja um princípio ou uma regra absoluta. Antes o problema da retroatividade da lei consiste apenas em determinar quais sejam verdadeiramente as leis que retroagem e quais sejam as leis que não retroagem.

Para Savigny(Traité de droit romain, Paris, tomo VIII, 1851, pág. 363 e seguintes), leis relativas à aquisição e à perda dos direitos eram consideradas as regras concernentes ao vinculo que liga um direito a um indivíduo, ou a transformação de uma instituição de direito abstrata em uma relação de direito concreto.

Por sua vez, as leis relativas à existência, ou modo de existência dos direitos eram definidas por Savigny como aquelas leis que têm por objeto o reconhecimento de uma instituição em geral ou seu reconhecimento sob tal ou tal forma.

Assim relativas à existência, inexistência, ao modo de existência dos direitos eram definidas por Savigny como aquelas leis, que têm por objeto o reconhecimento de uma instituição em geral, ou seu reconhecimento sob tal ou tal forma, antes que se coloque a questão de sua aplicação a determinado indivíduo, isto é, antes da criação de uma relação jurídica concreta; por exemplo: a servidão da gleba.

Para Savigny, repita-se, as leis do primeiro grupo, isto é, as relativas a aquisição e a perda de direitos, não poderiam ser retroativas. A não-retroatividade dessas leis impunha-se, quer no que dissesse respeito(por exemplo, os juros convencionais vencidos antes de nova lei que reduzisse a respectiva taxa), quer no que dissesse respeito às consequências produzidas por esse fato aquisitivo, depois da lei nova(por exemplo, os juros vencidos, após a lei nova, em virtude de um contrato em curso). Assim, se alguém contraísse mútuo por dez anos com juros de 10% não só até o início de vigência da nova lei que não estabelecia limite à taxa de juros convencionais, conservaria o direito aos 10%, não só até o início da vigência da nova lei que limitasse essa taxa a 6%, mas até o termino dos 10 anos. Não enquadrava Savigny, nesse grupo as leis: a) as qualificações abstratas de todos os homens, ou de uma classe da sociedade; b) as simples expectativas.

As leis do segundo grupo, isto é, as relativas à existência, ou inexistência, ou ao modo de existência dos direitos, teriam efeito retroativo, de acordo com a doutrina de Savigny. Para tais leis, asseverava ele, a regra da não-retroatividade, ou da manutenção dos direitos adquiridos, não tem sentido; as leis que aboliram a escravidão deveriam aplicar-se aos escravos existentes de acordo com as leis antigas que reconheciam esse instituto, o mesmo acontecendo com as disposições de Justiniano que aboliram as duas espécies de domínio – ex iure Quiritum e in bonis.

Pontes de Miranda(Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, 1971, volume V, pág. 51), na mesma linha de Reynaldo Porchat(Da retroatividade das leis civis, 1909, pág. 59 e seguintes), assim disse:

¨Partiu ele da afirmação da equivalência das duas fórmulas, a que corresponde ao critério objetivo(as leis novas não têm efeito retroativo) e a que corresponde ao critério subjetivo(as leis novas não devem atingir os direitos adquiridos) e assentar que somente a certas categorias de regras – as relativas a aquisição de direitos, à vida deles, escapam à duas expressões da mesma norma de direito intertemporal. E.g, a lei que decide se a tradição é necessária para a transferência da propriedade, ou se o não é, pertence àquela espécie; bem assim, a que exige às doações entre vivos certas formalidades, ou que as dispensa. De ordinário, na regra de aquisição está implícita a de perda. A não retroatividade é de mister em tais casos, quer as consequências sejam anteriores, quer posteriores ao novo estatuto”. Exemplo: os interesses produzidos antes ou depois da derrogação da lei, se concernentes a contrato regido pela lei derrogada. Ao direito adquirido exige ele a correspondência com uma relação jurídica concreta; por isso, se a ordem jurídica, na qual a mulher podia ser fiadora, adota o preceito do senatusconsulto Veleiano, nenhuma ofensa há a direito adquirido. Se se aumenta o número de anos para maioridade, o que se praticou quando a lei antiga permitia vale e a lei nova não dilata o tempo para os já atingiram o exigido pela lei antiga. Outrossim, constituem simples expectativas o que alguém espera herdar ab intestato de outrem, que só venha a falecer sob nova lei que exclui o herdeiro presuntivo segundo a lei antiga, e o que o legatário pode aguardar de testamento esperança que lei nova, interdizendo testar ou receber, pode apagar. Aos dois primeiros casos, F. von Savigny chamou “qualificações legais”, para distinguir, a seu ver, nitidamente, dos direitos adquiridos e das expectativas. As leis relativas à existência ou ao modo de existência dos direitos, teriam incidência exclusiva: portanto, seriam incidentes desde logo, pois concernem a instituições e não a relações jurídicas concretas em que se achem interessados os indivíduos. É a instituição, que a lei cria, altera ou extingue. Não se podem invocar direitos adquiridos, porque se trata de instituição e as instituições estão sujeitas a leis de desenvolvimento progressivo. A prudência no muda-las, ou no aboli-las, é regra de política e não de direito”. 
À semelhança do que ocorreu com o problema dos conflitos de leis no espaço, Savigny procurou assentar os princípios acima enunciados, na própria natureza das coisas, considerando imperativa a irretroatividade das leis, com as limitações assinaladas, não só para o juiz, como também para o legislador. Essa a linha acolhida pelo ministro Carlos Maximiliano(obra citada, pág. 24).

Ainda Teixeira de Freitas(Esboço do Código Civil) asseverou que a distinção entre a aquisição de direitos e a existência de direitos, que Savigny tão bem traçou, seria a chave de todas as dificuldades da matéria.

É sabido que Carlo Gabba(Teoria della retroattivitá della legge, 3ª edição, volume I, pág. 191) fundamenta o princípio da irretroatividade das leis no respeito aos direitos adquiridos. Define-o como sendo todo o direito que é consequência de um fato apto a produzi-lo em virtude da lei do tempo em que foi o fato realizado, embora a ocasião de o  fazer valer não se tenha apresentado antes da vigência de uma lei nova sobre o assunto e que, nos termos da lei sob a qual ocorreu o fato de que se originou, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.
Reynaldo Porchat(obra citada, pág. 11 e seguintes) lembra definições: direito adquirido é o que entrou em nosso domínio e não pode ser retirado por aquele de quem o adquirimos.

Para Bergman, citado por Reynaldo Porchat, é o direito adquirido de modo irrevogável, segundo a lei do tempo, em virtude de fatos concretos.

É certo que Paulo de Lacerda(Manual do Código Civil Brasileiro, vol. I, 1ª parte, pág. 115 a 214) obtemperou, ao aduzir que na definição de Gabba se encontra apenas defeito de redação uma vez que segundo ele, o patrimônio individual, mencionado na definição geral de direito adquirido, não há razão para ser entendido unicamente em sentido econômico, sendo a condição jurídica do indivíduo composta não só de direitos econômicos, mas de atributos e qualidades úteis pessoais de estado e de capacidade.

Na lição de Limongi França(A irretroatividade das leis e o direito adquirido, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, pág. 204), o direito adquirido é a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto.
Tem-se que a capacidade jurídica das pessoas, portanto dos menores, a idade própria para se aposentar, funda-se sobre a lei e é simples faculdade, não constituindo direito adquirido, pelo que está sujeita a lei nova. Assim, quando a lei restringe ou amplia tais situações, deve receber imediata e geral aplicação.

Na lição do ministro Carlos Maximiliano, na hipótese de aquisição consumada, não se aplica a lei nova, aplicando-se, entretanto, em se tratando de existência, do reconhecimento de um instituto em geral. Apresentou como exemplo da primeira hipótese: a norma antiga admitia que se efetuasse por meio de escrito particular um certo ato ou contrato; a nova exige instrumento público. Exemplos da segunda hipótese: a lei anterior admitia a indivisão perpétua, a recente faculta-a por cinco anos apenas; aquela disciplinava o fideicomisso, esta o proíbe. Se o último diploma não trata da existência, observa-se a mesma regra: não prevalece alegação de irretroatividade, não se depara o obstáculo de direito adquirido.

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Distinguindo os fatos geradores de direitos em voluntários realizados com o intuito de adquirir, voluntários efetuados sem o intuito de adquirir e involuntários de que a lei decorrem direitos, o ministro Carlos Maximiliano considera retroativa e, portanto, condenável a lei que atinge o indivíduo por intermédio dos seus atos voluntários; atua licitamente a norma positiva afetando o homem fora dos atos de sua vontade, isto é, nas qualidades que lhe são comuns com a humanidade, ou naqueles que ele tem em sociedade; bem como se o alcança unicamente na medida em que modifica as instituições orgânicas da coletividade. Apresenta, pois, em seu pensamento, influências que vieram das ideias de Lassale.

Ferdinand Lassalle, no seu livro sobre a Teoria dos Direitos Adquiridos e das Colisões das Leis, aparecido em 1861(Theorie der erworbenen Rechte um der Collision der Gesetze), sustentou que o conceito de retroatividade é o que de uma violação de liberdade e da responsabilidade do homem: em consequência, a retroatividade das leis é inadmissível quando importar violação à liberdade e à responsabilidade humana. Assim é que, segundo Lassalle, não pode retroagir qualquer lei que diga respeito ao indivíduo, relativamente aos atos de sua vontade; ao contrário, deve retroagir toda a lei que concerne ao indivíduo, feita a abstração dos atos de sua vontade, se diz respeito a pessoa em si e em suas qualidades. As qualidades podem fundar-se imediatamente sobre o Direito Natural ou sobre o Direito Positivo ou podem ser consideradas pela nova lei de maneira direta e indireta. Por exemplo, a lei que suprime a escravidão e a servidão aplica-se aos fatos anteriores, porque se refere à personalidade do homem, negada por essas instituições. Não há verdadeiro direito adquirido quando se trata de uma faculdade concedida pela lei positiva em aberta contradição com o direito natural.

Pontes de Miranda, a respeito dessas ideias(Comentários à Constituição, v. V, n. 58) dizia: “Em 1861, F. Lassalle(obra citada, 86 e 120) procurou partir de liberdade e da responsabilidade do homem, para considerar a retroatividade como violadora de tais elementos da dignidade humana. Se a lei fosse diferente, o ato teria sido diferente, ou não teria acontecido. Se a lei nova me faz passar por efeitos que não previ, a minha liberdade não pode existir. Retroagir é coagir. Se tal concepção solidifica a doutrina, de muito a restringe; porque só não pode retroagir a lei que se refira ao indivíduo, relativamente aos atos que venham da sua vontade. Tal simplismo poderia seduzir, mas logo o vemos ruir diante de fatos indubitáveis: a sucessão ab intestato é regida por lei que concerne ao indivíduo, mas abstraindo de qualquer ato de vontade dele; devia, portanto, ser a da lei nova, ainda posterior à morte do decujo, e, no entanto todos são acordes em que a reja a lei do tempo em que se abre a sucessão.

Mas para Paul Roubier(Le droit transitoire -Coflicts des lois dans le temps) o princípio formulado por Lassalle era falso. E, a título de exemplo, salientou que a sucessão ab intestato se opera por obras da lei e, entretanto, a nova lei não se aplica às sucessões antes dela abertas. É certo que Lassalle procurou explicar essa situação, dizendo: a sucessão parece à primeira vista a consequência de um simples acontecimento, a morte do testador; mas, em realidade, a aquisição é baseada, ou sobre a última vontade presumida pela lei, sucessão ab intestato. Assim, de acordo com Lassalle, a aquisição de uma herança é o resultado de um ato voluntário do testador, que, em virtude dessa identidade que domina todo o direito familiar, aparece como o ato próprio do herdeiro.
Não obstante, como registrou Campos Batalha(Direito intertemporal, 1980, pág. 101), a justificativa de Lassalle carece de fundamento, uma vez que a ordem de vocação hereditária, estabelecida por lei para a sucessão ab intestato, não representa a vontade real do de cujus, mas uma vontade suposta, imaginária, que não existiu ou que não se manifestou. Poder-se-ia supor a existência de uma vontade do de cujus no sentido de que a sucessão hereditária se fizesse nos temos da ordem de vocação prevista na lei, quando realmente manifestou a sua vontade em sentido contrário, embora não validamente?

Advertiu, outrossim, o ministro Carlos Maximiliano que não prevalecem disposições, nem sequer orgânicas ou contratuais, destinadas expressamente a vigorar apesar de qualquer mudança futura na legislação: o juiz aplica sem restrição alguma a norma positiva, quando se trata de conteúdo dos direitos tal como a lei determina de maneira obrigatória para todo o mundo.

Ensinou o ministro Carlos Maximiliano que preceitos há de valor secundário, que podem desaparecer sem prejudicar a essência de uma instituição ou relação jurídica, porque não são essentialia, mas accidentalia: é possível eliminá-los sem ofensa a direito adquirido.
Situações jurídicas permanentes, isto é, as quais se não pode atribuir duração definida, bem como o significado legal das expressões(por exemplo, classificação de certos bens entre os móveis, depois entre os imóveis: definições de águas navegáveis e não navegáveis) regulam-se nos termos do último diploma.

O ministro Carlos Maximiliano(obra citada, pág. 44), por outro lado, adotou os pontos fundamentais da doutrina de Gabba(Teoria dela retroattività dela legge, 3ª edição, volume I, pág. 191), que baseou sua teoria da irretroatividade sob o enfoque do direito adquirido, embora lhe modifique a definição de direito adquirido, que, para o ministro Carlos Maximiliano, deve ser esta: “chama-se adquirido ao direito que se constituiu regular e definitivamente e a cujo respeito se completaram os requisitos legais e de lato para se integrar no patrimônio do respectivo titular, quer tenha sido feito valer, quer não, antes, antes de advir norma posterior em contrário”.
 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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