Considerações sobre a intervenção do Estado na economia – o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 319-4/DF

19/08/2019 às 10:21
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A intervenção estatal a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal. No julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade 319-4/DF o STF se posicionou em relação aos conceitos constitucionais de ordem econômica e intervenção no domínio econômico.

 

RESUMO

A intervenção estatal analisada sob a ótica do Supremo Tribunal Federal. No julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade 319-4/DF o STF deixou clara a sua posição em relação aos conceitos constitucionais de ordem econômica e aos princípios da livre iniciativa e do valor social do trabalho. Afirma que a intervenção na economia somente se justifica excepcionalmente, observada a necessidade de se regular situação excepcional e transitória.

Palavras-chave: Economia. Direito. Intervenção.

 

ABSTRACT

The state intervention analyzed from the perspective of the Federal Supreme Court. In the judgment of Direct Action of Unconstitutionality 319-4/DF, the STF made clear its position regarding the constitutional concepts of economic order and the principles of free enterprise and the social value of labor. It states that intervention in the economy is only exceptionally justified, given the need to regulate an exceptional and transitory situation.

Key words: Economy. Law. Intervention.

 

1 – INTRODUÇÃO

No dia 27 de maio de 2018 foi editada a Medida Provisória 832 que instituiu a Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas após o Brasil enfrentar uma greve de caminhoneiros, iniciada no dia 21 do mesmo mês, capaz de abalar o funcionamento de vários serviços essenciais à população, públicos ou privados, diante do grave desabastecimento que se sucedeu[1].

Veio em seguida a Resolução nº 5.820, de 30 de maio de 2018 da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT que estabeleceu o cumprimento obrigatório de preços tabelados. Não demorou e a medida provisória foi convertida na Lei nº 13.703, de 8 de agosto de 2018.

Foi uma tentativa do Estado brasileiro de regular o mercado, o que deixou transparecer o caráter intervencionista das suas ações. Logo, contudo, transpareceram efeitos econômicos nocivos da medida[2].

Não era a primeira vez desde a promulgação da Constituição de 1988 em que o Estado Brasileiro interviu no domínio econômico por ação legislativa, administrativa ou judicial. No ano de 1993 houve o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de uma ação direta de inconstitucionalidade em que se analisou a juridicidade do controle de preços de mensalidades escolares. O julgado evidenciou, sob a perspectiva dos intérpretes da Constituição, a dificuldade de conciliar valores aparentemente antagônicos presentes no ordenamento jurídico brasileiro tais como a livre iniciativa, a livre concorrência, a defesa do consumidor e a redução das desigualdades sociais.

O objetivo do presente trabalho é analisar, a partir desse caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal – a Ação Direta de Inconstitucionalidade 319-4 – em que medida o Estado brasileiro estaria autorizado a intervir no mercado, no intuito de identificar possíveis causas e consequências. Por meio de análise interdisciplinar entre direito e economia se indaga, ademais, sobre o papel do Estado na economia, sob a ótica do STF.

Destaca-se que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2 – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A ORDEM ECONÔMICA

Segundo o constituinte brasileiro o valor do trabalho e a livre iniciativa são princípios fundamentais do Estado. A propriedade privada, a livre concorrência e a função social da propriedade, dentre outros, concorrem como elementos integradores e interpretativos do sistema delimitam a atuação Estado e da própria interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, como se observa dos artigos 1º e 170:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (BRASIL. Constituição, 1988).

Subsiste, na Constituição, especificamente no Título da Econômica e Financeira, decisões políticas fundamentais que buscam conjugar a valorização e proteção do trabalho e da propriedade, além livre concorrência, fazendo concorrer duas premissas antagônicas entre si. Admite, assim, o estabelecimento livre de preços e condições de negócio entre os agentes do mercado ao mesmo momento em que legitima a intervenção direta e indireta do Poder Público no domínio econômico. Os instrumentos previstos e limites para tanto estão concentrados na própria Constituição.

A Ordem Econômica, também entendida por Dirley Cunha (2016, p. 1214) como “Constituição econômica”, é entendida como o conjunto de normas constitucionais que têm por objeto a disciplina jurídica do fato econômico e das relações principais dele decorrentes. Condensa, assim, os comandos constitucionais que estabelecem os limites e circunstâncias da atuação estatal frente à economia bem como as possibilidades de intervenção. Tudo isso ao buscar assegurar, ao mesmo tempo o direito de propriedade privada e um mercado livre associado ao bem-estar social.

Miguel Reale (1998, p. 83) aponta que Ordem Econômica abarca um liberalismo-social de modo a conformar a economia de mercado por valores sociais, dado o fenômeno da convergência de ideologias, apropriado pelo constituinte. Para Cláudio Brandão (2013, p. 267) o reconhecimento do trabalho, da livre-iniciativa e sua função social foram elevados ao patamar dos princípios políticos constitucionalmente conformadores ou princípios constitucionais fundamentais, caracterizados por evidenciar os valores políticos nucleares erigidos pelo constituinte e reverberar a ideologia inerente ao texto.

Evidente o posicionamento do constituinte. Dirley Cunha (2016, p. 1216) esclarece que historicamente pelo menos desde a Constituição de 1934 em diante o ordenamento constitucional brasileiro optou por uma ordem econômica intervencionista delineada para a proteção do interesse coletivo e realização de justiça social.

A Constituição exige firme observância à função social da propriedade e defesa do consumidor e prevê mecanismos de contenção de falhas e abuso do poder econômico (art. 173, §4º)[3]. Bastante assertivo o texto constitucional, portanto, no sentido da possibilidade de intervenção estatal na economia.

3 – LIMITES À INTERVENÇÃO

Não se consagra no texto constitucional nenhum direito absoluto e intangível. A propriedade, portanto, tem sua proteção condicionada ao cumprimento da sua função social (art. 5°, XXIII, CF/88), determinando a conjugação dos interesses do Estado e da coletividade com os do proprietário. É a ótica liberal constitucionalmente mitigada.

Não é esperado, atualmente, um Estado que não regula a atividade econômica. Bastos (2004, p. 258) chama a atenção para que a regulação do mercado, por si só, tornou-se algo difícil já que não se imagina Estado se submeteria ao mercado puro, em que nenhuma atividade e nenhuma delimitação da atividade econômica fosse explorada por si mesmo, tornando ele mesmo despiciendo.

E para a obtenção desse equilíbrio desejado que foram previstas formas de intervenção.

Quando direta o Estado deve se pautar pela observância aos direitos fundamentais, à dignidade da pessoa humana, cidadania e aos valores sociais da livre iniciativa e do trabalho. Dadas das prerrogativas decorrentes da exploração de atividade econômica em competição com a iniciativa privada ou em regime de exclusividade essa opção deve ser sempre a última alternativa para se buscar preservar, no maior nível, a economia de mercado.

Segundo Diógenes Gasparini (2001, p. 614), a intervenção do Estado no domínio econômico pode ser conceituada como “todo ato ou medida legal que restringe, condiciona ou suprime a iniciativa privada em dada área econômica, em benefício do desenvolvimento nacional e da justiça social, assegurados os direitos e garantias individuais”.

Os modos de intervenção estão concentrados na Constituição. A intervenção direta está prevista, especialmente, no artigo 173:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; 

II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;

IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;

V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

 § 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

§ 3º A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

§ 4º - lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. (BRASIL. Constituição, 1988).

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Na modalidade indireta a intervenção está prevista, basicamente, o artigo 174:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§ 1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

§ 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

§ 3º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

§ 4º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei. (BRASIL. Constituição, 1988).

Marçal Justen Filho (2006, p. 534) indica que o artigo 174 do da Constituição Federal prevê a intervenção indireta do Estado no domínio econômico. Neste caso se mostra mais evidente o efetivo poder de polícia estatal que desempenha restrições a direitos dos particulares, especialmente em ações de fiscalização, incentivo e planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Possível se concluir, a partir do texto constitucional, que a atuação do Estado na área econômica somente se legitima para proteger os próprios valores previstos constitucionalmente. É que a previsão do processo econômico liberal não pode subsistir com o intervencionismo desmedido, só se admitindo diante da estrita necessidade de se rechaçar abusos e prevenir graves falhas de mercado, preservando-se a de quaisquer interferências injustificadas. Assim que Diogo de Figueredo (2002, p.115) indica a intervenção somente para coibir violações à livre-iniciativa, quer do próprio Estado, quer da formação de monopólios ou abuso de poder econômico, já que a liberdade referida é fundamento da República e princípio norteador da ordem econômica brasileira, tendo, como subprincípios, os princípios da abstenção e da subsidiariedade.

Quando estrategicamente necessário incumbe ao estado intervir em áreas estratégicas ou deficitárias, bem como nas hipóteses de segurança nacional tais como estado de sítio ou guerra. A intervenção se justifica, ainda, nos casos em que as regras do livre mercado e da livre iniciativa estiverem ameaçadas, devendo o estado fiscalizar, promover e repreender de modo a obter a correção de distúrbios que possam afetar concretamente a ordem econômica, a exemplo dos carteis e monopólios. O caráter suplementar e excepcional da atuação pública é que é mais importante, especialmente diante dos princípios estabelecidos na Constituição Federal.

Sempre haverá um descompasso entre o que o Estado pode fazer e a auto-regulamentação do mercado. As forças dinâmicas do processo econômico nunca sucumbirão à burocracia estatal. Mas pode sofrer sérios prejuízos. Propomo-nos analisar um caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal pouco depois da promulgação da Constituição Federal na tentativa de evidenciar a visão do institucional naquele momento, destacando o caráter ideológico que uma decisão pode deixar transparecer em detrimento do ideal de justiça que se deve sempre buscar.

4 – O CASO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 319

A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN ajuizou, em 21/06/1990, Ação Direta de Inconstitucionalidade em virtude de vícios contidos na Lei nº 8.039, de 30 de maio de 1990 que dispôs a propósito de critérios de reajuste das mensalidades escolares.

No que interessa relatar para fins desse trabalho e em resumo a lei, ao estabelecer que o reajustes das mensalidades das escolas particulares, referentes aos serviços prestados a partir de 1º de maio de 1990, seriam calculados de acordo com o percentual de reajuste mínimo mensal dos salários em geral (previsto, à época, na Lei nº 8.030, de 13 de abril de 1990), redundava em ‘congelar’ o os preços praticados pelos agentes privados. Destacava que o artigo 174 da Constituição não respaldava tal interferência do Poder Público e que incumbiria ao Estado fiscalizar o aumento arbitrário – e não o simples reajuste – das mensalidades.

Também no corpo da petição inicial se destaca a indicação de que a Constituição admite a exploração da educação pela iniciativa privada sem delimitação dos preços ou reajustes da atividade conforme o disposto no artigo 209:

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;

II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. (BRASIL. Constituição, 1988).

Devidamente processada a ação, ouvidos a Procuradoria-Geral da República, a Consultoria-Geral da República, o Presidente do Congresso Nacional e o Ministério Público Federal na função de Advogado-Geral da União, qualquer deles não aderiu às teses da inicial. O caso, então, seguiu para debate em Plenário.

O Tribunal, por maioria de votos, vencido o Ministro Marco Aurélio, julgou procedente, em parte, a ação tão somente para declarar a inconstitucionalidade da expressão "março" contida em dispositivos da lei ressaltar hipóteses em que ocorresse direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Na essência, portanto, foi mantido conteúdo da legislação e, consequentemente, o regime de intervenção nos preços.

O relator, Ministro Moreira Alves, proferiu voto que enfrentou a questão da educação como atividade econômica, plenamente autorizada pela Constituição, reforçando que a educação não constitui monopólio do Estado e que sua exploração é livre pela iniciativa privada. Fixadas essas premissas, contudo, volta sua fundamentação para dispositivos constitucionais relativos à ordem econômica, destacando a livre iniciativa e a justiça social também é apresentada. Com base em interpretações dogmáticas a propósito do alcance do texto da Constituição o Ministro entende pela constitucionalidade do regime de fixação de preços fixado na norma, até porque não se nota que ele avança, especificamente, sobre o conflito existente entre a livre iniciativa e o Estado no caso, porém só de forma genérica.

É possível se deduzir, assim, que o voto apresentou um espelho de uma posição ideológica, mas que perdeu a oportunidade de expor exatamente por quais razões de fato e de direito a lei impugnada não deveria ser rechaçada. Ou seja, não se identifica por que o texto da lei, especificadamente, foi entendido como instrumento para impedir o aumento arbitrário e abusivo de lucro e não para limitar o mero reajuste de preços.

Por relevante se destaca pequeno trecho do raciocínio jurídico evidenciado no voto, quando o Ministro faz uso de texto de José Afonso da Silva na obra Curso de Direito Constitucional Positivo:

a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo. [...] Ela constitui uma liberdade legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. (BRASIL, STF, ADI 319/DF).

Votou em seguida, depois de ter pedido vista do feito, o Ministro Marco Aurélio. Sem deixar de realizar uma leitura própria do texto constitucional sob a ótica que entendeu pertinente, o Ministro destacou a educação como elemento relevante na obtenção de justiça social e demonstrou constituir dever do Estado, inclusive, fomentar a iniciativa privada na sua exploração.

Evidenciou, na sua manifestação, contudo, que a Lei 8.039/90 não preservava a livre iniciativa na forma em que se deveria esperar do legislador ordinário. Isso pois a lei impedia a preservação da livre iniciativa e da livre concorrência.

no campo econômico prevalece como regra a liberdade de mercado, fator indispensável à preservação da livre iniciativa, repetida em vários dispositivos da Constituição, inclusive nos referentes ao ensino. A exceção corre à conta das hipóteses em que configurado abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros - artigo 173, § 4º, quando, então, a repressão se impõe. Contudo, a Lei nº 8.039/90 não versa sobre tais defeitos. Com abrangência ímpar e inafastável, introduz critérios de reajuste das mensalidades, jungindo-os inteiramente, seja qual for a prática adotada por esta ou aquela escola, ao percentual mínimo mensal dos salários em geral, fixado no inciso II do artigo 2º da Lei º 8.030 de 13 de abril de 1990. Com isto, deixa de estimular a educação, conflitando com o artigo 205 aludido. Inibe a iniciativa privada no que introduz desequilíbrio nas relações jurídicas mantidas entre alunos ou pais de alunos e as escolas, forçando a fuga destas últimas do campo no qual vêm atuando, discrepando, assim, da previsão do artigo 209 antes referido. Interfere na livre concorrência dos estabelecimentos de ensino, distanciando-se, assim, do mandamento constitucional pertinente - inciso IV do artigo 170. Introduz mecanismo de preços que coloca em plano secundário a liberdade de mercado, acabando por forçar os prestadores dos serviços a aceitá-lo, ainda que em prejuízo até mesmo da qualidade do ensino e do empreendimento econômico, ante o evidente achatamento das mensalidades, com quebra, inclusive, da natureza sinalagmática dos contratos firmados, compreendida nesta a comutatividade. A não ser isto, a única alternativa é o abandono das atividades. Pergunta-se: estará o ensino público em condições de fornecer atendimento educacional na hipótese? (BRASIL, STF, ADI 319/DF).

  Desse modo, ainda que a defesa política de um ponto de vista ideológico seja inafastável, a partir da análise de mesmos dispositivos constitucionais o Ministro Marco Aurélio concluiu pela inconstitucionalidade da Lei 8.039/90. O seu ponto de vista, racional e concreto, demonstrou que a intervenção estatal promovera violação a princípios constitucionais e que traziam malefícios à sociedade, especialmente por interferir negativamente na livre iniciativa e por mitigar a livre concorrência.

Seguiu-se o voto do Ministro Celso de Mello. Após realizar escorço histórico sobre as sociedades e o desenvolvimento do Estado social, interventor e protagonista na vida de seus cidadãos, apontou de forma abstrata a constitucionalidade da lei impugnada. Apesar de afirmar, de modo que parece correto, que inexiste apoio jurídico para a retirada definitiva da ação regulatória do Estado em relação às atividades empresariais de exploração econômica de ensino, não apontou concretamente em que medida o texto legal atacado se compatibilizava com o princípio de somente se admitir intervenção quando diante de evidente caso de tentativa de dominação de mercado, eliminação da concorrência ou abusividade na obtenção de lucro.

O Ministro Sepúlveda Pertence chamou a atenção para o voto do Ministro Marco Aurélio, quem teria fixado a sua manifestação no “valor exclusivo da livre iniciativa, como se tivéssemos uma típica Constituição do ‘laissez-faire’, laissez-passer”. Acompanhou o relator, destacando-se o trecho abaixo:

a competência do Estado para intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica, expressamente legitimado pelo artigo 174 da Constituição, que não se reduz, data venia, a autorizar o papel repressivo do abuso do poder econômico, previsto num dos incisos do artigo 173: a meu ver, essa atividade normativa e regulatória compreende, necessariamente, o controle de preços, que, mostra Comparato, tanto se pode manifestar na fixação de preços mínimos, para estimular determinado setor da economia, particularmente em períodos recessivos, como na fixação de preços máximos ou como se cuida, no caso, no estabelecimento de parâmetros de reajuste. Não excluo dessa atividade regulatória e, conseqüentemente, desta possibilidade de controle de preços, nenhum setor econômico, Senhor Presidente. Mas, também na linha do voto do eminente relator, penso que mais patente se torna a legitimidade dessa intervenção, quando se trata de atividades abertas à livre iniciativa, porém, de evidente interesse social, porque situadas em área fundamental da construção da ordem social projetada na Constituição de 1988. Delas ura dos setores fundamentais é, precisamente, o da educação, definido na Constituição como direito de todos e dever do Estado, que não se cumpre apenas peia educação pública, mas há de cumprir-se, também, pelo controle, pela regulação da atividade educacional privada. (BRASIL, STF, ADI 319/DF).

 O Ministro Paulo Brossard, apesar de não concordar com a aplicação do dispositivo constitucional que admite a intervenção indireta no domínio econômico, sustenta a constitucionalidade da lei, não entendendo que o seu conteúdo fosse arbitrário. O Ministro Octavio Gallotti acompanhou o voto do relator.

O que se denota do julgamento é que, à propósito de defenderem uma concepção de Estado e de Constituição intervencionista, reforçando a autoridade estatal, os Ministros deixaram de enfrentar a o conteúdo do ato levado à julgamento. Não foi aventado, assim, a transitoriedade ou definitividade da norma, o que se mostra relevantíssimo já que o mercado é dinâmico, absorvendo as dificuldades e se reorganizando a todo o tempo.

Possível concluir que não foi detida a análise no campo legislativo em relação à Constituição. Tanto assim que passou desapercebido que a medida tinha caráter definitivo, não se apontando sérias razões de fato pelas quais uma medida tão drástica deveria ser tomada. Nenhuma abusividade ou falha de mercado foi identificada, o que não impediu que vários votos, de forma genérica, entendessem que seria possível uma lei delimitar o reajuste de uma atividade econômica com base em índice fora do controle dos agentes da atividade econômica atingida.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O embate entre livre iniciativa, livre concorrência, valores sociais do trabalho e justiça social é infindável, posto que ideológico. A busca pela dominação e pelo poder é incessante e é de se presumir que os defensores ferrenhos do liberalismo ou do intervencionismo não encontrem um denominador comum.

A falta de conciliação se torna preocupante na medida em que se verifica, em caso concreto, que uma postura ideológica pode suplantar a outra ainda que os efeitos nefastos daí decorrentes sejam certos. O liberalismo tem valor imaterial e relevante, inclusive como política de Estado, mesmo porque assim alguns de seus principais elementos foram incorporados pelo texto constitucional.

A regulação do mercado é a exceção. Contudo o julgamento do STF, a par de se manifestar sobre a base do regime capitalista de livre mercado, princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, não adotou a excepcionalidade como regra. Em verdade a decisão descrita apresenta, a partir do pensamento da maioria, um ponto de vista contundentemente estatista e que rechaça o livre mercado.

O mercado tende ao equilíbrio entre os agentes e às atividades econômicas, equilíbrio que deve ser reforçado por ações estatais na estrita medida em que se façam imprescindíveis, o que não parece ter sido considerado pelos juízes.

Não se nota força normativa nos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Pelo contrário, o que é possível concluir é a forte relativização destes diante de qualquer pretensa obtenção ou realização de justiça social. Essa prevalência é plenamente possível – e recomendável – no nosso sistema constitucional. Contudo quando há efetivo choque entre estes e outros princípios fundamentais o ônus argumentativo no seu afastamento deve ser bem maior.

Uma visão monocular diante de um mercado forte e dinâmico não tarda a elevar custos e fomentar falhas de mercado, abrindo portas para abusividades e outros transtornos conhecidos na área econômica. É assim, que a parcimônia nas decisões que envolvam a mitigação da livre regulação do mercado é condição de justiça do provimento jurisdicional. O impacto que pode advir da intervenção direta ou indireta no domínio econômico pelo Estado tende a ser grande e na dúvida se deve privilegiar o liberalismo, somente atuando repressiva ou coercitivamente em caso de lesão ou risco concreto de lesão a direito fundamental.

As políticas intervencionistas podem prejudicar a eficiência do setor privado. Podem, inclusive, inviabilizar a atividade econômica, seja pública ou privada, não sendo arriscado se presumir que o tabelamento de preços nas escolas públicas, na forma do caso tratado, forçou uma pressão de demanda no ensino público já que certamente inviabilizou a continuidade de vários empreendimentos que não deram conta dos custos da atividade, os quais não podiam ser repassados para os consumidores.

Vários são os custos envolvidos na medida de tabelamento ou fixação de preços mínimos e máximos tais como pressão de preços para cima: se a tabela fixa preço menor do que o mercado ela é inócua e se propõe preço maior do que o mercado ela pressiona toda a atividade, gerando aumento de preços, inflação, queda de produção e empregos. Além disso há um custo não vislumbrado facilmente que guarda relação com a regulação e fiscalização da medida, além de burocracia e insegurança jurídica de investidores, consumidores e fornecedores.

Impedir a livre negociação entre as partes e obrigar grupos a seguir preços predeterminados cria mercado artificial ferindo a livre iniciativa e a livre concorrência. O caso específico do Brasil inclui a memória social de tabelamento de preços e a intervenção direta dos mais variados tipos, bem como tentativas fracassadas da implantação de mecanismos planificados e estáticos para dar conta de equilíbrios que são por definição fenômenos dinâmicos, cujo descompasso com a realidade pode causar sérios problemas de desabastecimento, em razão de sinalizações equivocadas.

Demais disso a instituição de tabelas de frete influencia negativamente no mercado tornando mais difícil a livre concorrência, diminui a oferta e prejudinca a demanda, por conceito. Além disso geralmente decorre de uma análise míope do mercado, de curto prazo, possibilitando a ocorrência de impactos indesejados tais como o aumento do preço do frete e o efeito em cadeia na rede de consumo. Dessa forma a sua utilização somente se justifica em última instância dado tratar-se de instrumento com potencial negativo na regulação do mercado e no consumo em geral.

REFERÊNCIAS

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[1] UOL. Greve dos caminhoneiros: a cronologia dos 10 dias que pararam o Brasil. Brasília, 2018. Disponível em  https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2018/05/30/greve-dos-caminhoneiros-a-cronologia-dos-10-dias-que-pararam-o-brasil.htm. Acesso em 15/03/2019.

[2] CNI. Tabelamento do frete elevou inflação em 0,34 ponto e reduziu PIB de 2018 em R$ 7 bilhões. Brasília, 2019. Disponível em: https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/tabelamento-do-frete-elevou-inflacao-em-034-ponto-e-reduziu-pib-de-2018-em-r-7-bilhoes/. Acesso em 15/03/2019.

[3] § 4º - lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Sobre o autor
Rafael Silva de Almeida

Advogado orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB com ênfase na área penal. Mestrando no UniCEUB com área de concentração Políticas Públicas, Estado e Desenvolvimento na linha de pesquisa de Políticas Públicas, Processo Civil, Processo Penal e Controle Penal. Membro da Comissão de Advogados Integrantes do Núcleo de Prática Jurídica da OAB/DF.

Informações sobre o texto

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Mais informações

Trata-se de texto utilizado para aprovação na disciplina do curso regular Filosofia do Direito integrante curricular do mestrado do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, ofertada pelo professor Dr. Luis Carlos Martins Alves Junior. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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