A RELAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E O ART. 182 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

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O artigo relaciona a função social da propriedade a partir dos artigos 5 e 182 da Constituição Federal de 1988 com a lei 10.257 de 2001, Estatuto da Cidade. A abordagem envereda pela questão da constitucionalização do direito civil.

O presente trabalho ao abordar a função social da propriedade urbana divide-se em dois momentos: o primeiro corresponde à abordagem da relação entre o instituto civilista da propriedade privada e a questão constitucional da função social desta; o segundo aborda como o texto magno e a legislação infraconstitucional desenvolveram o mencionado assunto no âmbito urbano. Para tanto o trabalho envereda pelos artigos 5o e 182 da Constituição de 1988 analisados a partir dos comentários e interpretações propiciados pela doutrina pátria bem como da regulamentação trazida pelo Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001.

Na Constituição de 1988 em seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, há o Capítulo I cuja denominação “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” revela o conteúdo esculpido pelo legislador no artigo 5o. Dentre os diversos temas arrolados no mencionado artigo, há a questão da propriedade a qual é caracterizada no inciso XXII como direito a ser garantido, sendo-lhe, porém, imediatamente atribuído pelo inciso seguinte o aparente dever de atender à função social.

Sobre essa relação entre direito e dever, cabe salientar a divergência da doutrina quanto ao caráter da função social vista como: ou um elemento condicionante da proteção constitucional da garantia da propriedade, ou uma restrição a esse direito. Na primeira perspectiva José Afonso da Silva afirma que:

O regime jurídico da propriedade tem seu fundamento na Constituição. Esta garante o direito de propriedade, desde que este atenda sua função social. Se diz: é garantido o direito de propriedade (art. 5o, XXII), e a propriedade atenderá a sua função social (art. 5o, XXIII), não há como escapar ao sentido de que só se garante o direito à propriedade  que atenda sua função social.[1]

Em outros termos, o constitucionalista autor da obra “Curso de Direito Constitucional Positivo” supera a concepção civilista de propriedade a partir da leitura sistêmica dos incisos XXII e XXIII do artigo 5o da CF/1988. Nessa leitura a proteção constitucional de um direito se subordina ao atendimento de um dever. Em semelhante situação a função social aparece como um requisito cujo atendimento garante ao direito de propriedade a proteção da lei máxima.

Seguindo perspectiva diversa da exposta anteriormente, há doutrinadores como Marcelo Novelino[2] o qual interpreta a função social como princípio que restringe a garantia do direito de propriedade. Enveredando por caminho interpretativo semelhante, pode-se mencionar Gilmar Ferreira Mendes[3] o qual, a partir das lições de Hans-Jürgen Papier, salienta não só o caráter restritivo ou conformativo da função social em relação ao direito de propriedade, mas também a necessidade de aplicação da proporcionalidade na ponderação da relação entre o dever de atender a função social e o direito à propriedade, para que este último não seja descaracterizado por aquele.

Conforme visto, a relação entre os incisos XXII e XXIII, ambos do artigo 5o da CF/1988, não é pacifica na doutrina brasileira, fato este que, segundo José Afonso da Silva, reflete na definição do princípio da função social da propriedade, obscurecendo-a.

Ao explicar o obscurecimento da sobredita definição, o autor de “Direito Urbanístico Brasileiro” comentou que não se deve confundir função social com “sistema de limitações da propriedade”, uma vez que este concerne “(...) ao exercício do direito, ao proprietário; enquanto a função social interfere com a estrutura do direito mesmo.”[4]

A percepção de interferência da função social na estrutura do direito de propriedade coaduna-se com a explicação proposta por Anderson Schreiber ao discorrer sobre a relação entre Direito Civil e Constituição. O doutrinador expôs que:

A funcionalização dos institutos de direito civil à realização de valores sociais está longe de ser coisa nova. León Duguit, Maurice Hariou e tantos outros autores célebres já defendiam, na segunda metade do século XIX, o reconhecimento de uma “função social” como modo de substituir ou temperar os contornos individualistas do direito subjetivo. A partir daí, a doutrina civilista passaria a distinguir a estrutura (como funciona) e a função (para quê serve) dos institutos jurídicos, reconhecendo nesse último aspecto a verdadeira justificativa da sua proteção pelo ordenamento. Na conhecida lição de Salvatore Pugliatti, a função é a “razão genética do instituto” e, por isso mesmo, seu real elemento caracterizador. A função corresponde ao interesse que o ordenamento visa proteger por meio de um determinado instituto jurídico e, por isso mesmo, predetermina, nas palavras do Professor de Messina, a sua estrutura.[5]

  Mais precisamente, o instituto jurídico propriedade é composto pela junção de dois elementos: função e estrutura. O primeiro liga-se à razão da gênese do instituto dentro de um determinado ordenamento jurídico, ou seja, corresponde ao interesse a ser tutelado pelo arcabouço legal, no caso a propriedade. Já a estrutura consiste na maneira, determinada previamente pelo ordenamento, segundo a qual esse interesse – propriedade – deve funcionar para fazer jus à proteção da ordem legal, no caso atender a função social. Desse modo, a função social é um elemento estruturante do direito à propriedade – interesse transformado em instituto jurídico – capaz de dizer como este deve funcionar para ser protegido pelo ordenamento jurídico pátrio.

Aliás, a relação entre propriedade e função social presente no capitulo “Dos Direitos e deveres Individuais e Coletivos” repetiu-se no Título VII, “Da Ordem Econômica e Financeira”, mais precisamente no capítulo I, “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”. Nessa parte há o artigo 170 o qual traz, entre os diversos princípios a serem observados, a propriedade privada e a função social da propriedade. Vale frisar que o constituinte original organizou os dois sobreditos princípios de maneira idêntica à disposição empregada para ordenar os incisos XXII e XXIII do artigo 5o.

A opção do constituinte original em repetir no artigo 170 a organização do artigo 5o, consoante leciona José Afonso da Silva, evidencia que:

(...) a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, mas adotando um princípio de transformação da propriedade capitalista, sem socializá-la; um princípio que condiciona a propriedade como um todo, não apenas seu exercício, possibilitando ao legislador entender com os modos de aquisição em geral ou com certos tipos de propriedade, com seu uso, gozo e disposição. A função social – assinala Pedro Escribano Collado – “introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário e que, em todo caso, é estranho ao mesmo”, constitui um princípio ordenador da propriedade privada e fundamento da atribuição desse direito, de seu reconhecimento e da sua garantia mesma, incidindo sobre seu próprio conteúdo.[6]

A função social modifica o conteúdo do direito de propriedade na medida em que faz incidir sobre este um dos princípios fundamentais da constituição: a dignidade da pessoa humana. Tal incidência foi explicada por Deborah Pereira Pinto dos Santos e por Eduardo Heitor Mendes, a partir dos ensinamentos de Gustavo Tepedino, ao enfatizar que, em virtude do principio da dignidade da pessoa humana ser fundamento basilar da Constituição Cidadã, surgiu a necessidade de reler os tradicionais institutos do direito civil de modo que estes possam se adequar aos ditames constitucionais.[7]   

 Após abordar a função social da propriedade, resta discorrer acerca desse tema no âmbito urbano. Cabe lembrar que semelhante temática é objeto orginalmente do capitulo II, “Da Política Urbana”, o qual está situado no Título VII cujo conteúdo discorre sobre a ordem econômica e financeira. O capítulo em questão é formado pelos artigos 182 e 183, porém, apenas o primeiro é objeto deste estudo. Vale destacar que a abordagem do supracitado artigo foi intercalada com alguns dispositivos do Estatuto das Cidades.

O artigo 182 é composto por caput e quatro parágrafos os quais versam sobre a política urbana, plano diretor, função social da propriedade e limitações ao direito de propriedade.  No caput, o tema trabalhado diz respeito à questão referente a desenvolver a área urbana a partir de uma politica a ser executada pelo poder público das cidades, segundo as diretrizes gerais estabelecidas pela lei. Cabe lembrar que tal política "tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento social da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Nesse ponto, é possível vislumbrar o principio da dignidade humana norteando a política urbanística.

A politica de desenvolvimento urbano prevista no caput do artigo 182 foi regulamentada pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, consoante patenteado no preâmbulo da lei bem como no artigo 1o, cujo parágrafo único ao utilizar expressões como “bem coletivo”, “segurança e bem-estar dos cidadãos” e “equilíbrio ambiental” para caracterizar “o uso da propriedade urbana” tornou evidente o princípio basilar da dignidade humana atribuído à propriedade urbana pela função social.

O artigo 2o, da legislação infraconstitucional em tela, não só repete os objetivos do caput do artigo 182 da CF/1988, mas também os amplia em dezoito incisos, os quais constituem diretrizes gerais para a política urbana. A título de ilustração, pode-se citar o inciso I, cujo texto desenvolve o objetivo de “garantir o bem-estar dos habitantes” através da construção “direito a cidades sustentáveis”. Tal direito é entendido como a garantia para as “presentes e futuras gerações” de um amplo conjunto de direitos, envolvendo moradia, transporte, serviços públicos, trabalho, lazer, dentre outros.

Os quatro parágrafos do artigo 182 da Constituição Federal delineiam obrigações, faculdades, competências e poderes para os municípios promoverem a execução da política urbanística. Por exemplo, o parágrafo 1o apresenta, ao mesmo tempo, uma obrigação, uma faculdade e uma competência para os municípios, ao discorrer sobre o plano diretor.

A obrigação aparece literalmente no texto, quando este atribui à câmara de vereadores das cidades com mais de vinte mil habitantes a obrigatoriedade de aprovação do plano diretor. Já a faculdade vem implícita no texto, visto que aos municípios com população inferior à indicada foi facultada a aprovação do plano diretor pelo respectivo poder legislativo. Por último, para todos os municípios nasceu a competência de legislar sobre o plano diretor.

No tocante ao plano diretor, frise-se que a Lei 10.257 ampliou o rol de cidades obrigadas a ter o sobredito instrumento básico de politica urbanística. Além do aspecto populacional trazido no texto magno, o artigo 41 da lei adotou outros critérios, como: integrar região metropolitana ou aglomeração urbana; fazer parte de área de especial interesse turístico; estar inserido em área sob a influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental; ser incluído no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, inundações ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos; pretender utilizar os instrumentos previstos no parágrafo 4o do artigo 182 da CF/1988. Independentemente do número de habitantes, o município que se enquadrar em qualquer dos supracitados requisitos deve encaminhar o plano diretor para aprovação pelo legislativo .

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Ainda sobre o plano diretor, cabe salientar a identidade de redação existente entre o parágrafo 2o, do artigo 182 da CF/1988, e o artigo 39, do Estatuto das Cidades, os quais relacionam o cumprimento da função social da propriedade urbana ao atendimento das “exigências fundamentais” do plano diretor para ordenar a cidade. Nessa redação patenteou-se que a função social enquanto estrutura diz como a propriedade urbana deve funcionar, conformando-a aos valores predeterminados pelo ordenamento jurídico por meio do plano diretor o qual deve respeitar tanto os ditames constitucionais, quanto as diretrizes gerais da Lei 10.257.

Por último, ressalte-se, no artigo 39 do Estatuto das Cidades, a segunda parte a qual relaciona o cumprimento da função social a assegurar “o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”. Novamente vislumbra-se a adequação no texto infraconstitucional do instituto jurídico da propriedade privada urbana ao princípio basilar da dignidade da pessoa humana por meio da conjunção de ideia atender as necessidades dos cidadãos atinentes à qualidade de vida.

Diante do exposto até o presente momento, percebe-se que há uma nítida relação entre função social da propriedade e plano diretor, já que para propriedade urbana se torne merecedora da tutela do arcabouço legal deve se adequar aos ditames do ordenamento jurídico, observando as especificidades locais bem como as regras gerais. Nesse processo da propriedade urbana atender a função social surge o plano diretor como o instrumental responsável por fazer a conciliação entre as especificidades locais e as diretrizes gerais contidas tanto na legislação infraconstitucional, como é o caso do Estatuto das Cidades, quanto na Constituição.

 


[1] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 270.

[2] NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p 529 (versão digital).

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Direito de Propriedade na Constituição de 1988. In.: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. cap. 3, p. 290 -1.

[4] SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 73.

[5] SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. In.: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson; (et. al) Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. cap. 1, p.19 (versão digital).

[6] SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p.74

[7] SANTOS, Deborah Pereira Pinto; MENDES, Eduardo Heitor. Função, Funcionalização e Função Social. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson; (et. al) Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. cap. 5, p. 91 (versão digital).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

                                                                                       

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil; Texto consolidado até a Emenda Constitucional no 64 de 04 de fevereiro de 2010. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2013. Versão digital.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direito de Propriedade na Constituição de 1988. In.: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. cap. 3, p. 275-312.

NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

SANTOS, Deborah Pereira Pinto; MENDES, Eduardo Heitor. Função, Funcionalização e Função Social. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson; (et. al) Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. cap. 5, p. 88- 112.

SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. In.: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson; (et. al) Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. cap. 1, p. 9-28.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

______. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.

Sobre o autor
João Bosco de Almeida Rezende

Atua no campo da responsabilidade civil, no direito consumerista e no direito penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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