
Luiz Edgar, le Brésil n'est pas um pays sérieux, teria dito, no inicio da década de 60, o embaixa dor brasileiro na França, Carlos Alves de Souza Filho, em conversa com o jornalista Luiz Edgar de Andrade, na época correspondente do Jornal do Brasil em Paris, ao comentar o episódio que ficou conhecido como A Guerra da Lagosta.
Já de inicio, forçoso reconhecer que há tempo existe estreito relacionamento entre o mercado internacional e o agronegócio brasileiro, hoje responsável por 25% do PIB nacional e pelo saldo positivo da balança comercial (quase a metade de todas as exportações brasileiras). Isso exige do Brasil mudar a percepção externada pelo antigo diplomata, demonstrando estabilidade institucional e política e, sobretudo, segurança jurídica.
No que toca a recuperação judicial do produtor rural e o registro empresarial, o debate é exaltado e quase extremo. De um lado os defensores férreos, normalmente atuando pró-devedor, de outro os críticos inflexíveis e resistentes à idéia, não raro na guarda do credor.
Há, de fato, na minha estreita visão jurídico-interiorana, bons argumentos e logicidade nas duas vertentes, afinal, há casos e há outros casos. Estão todos certos, em parte; mas, também em parte, ninguém tem razão.
Devo confessar - e o faço sem me sentir obrigado a corar por causa disso - que entre um e outro, os argumentos pró-devedores me seriam mais simpáticos não fosse a fundamental consideração que tenho à segurança jurídica.
Explico.
A mim, é essa a impressão que tenho, é que até agora, a aplicabilidade da Lei nº 11.101, de 09/02/2005, ao empresário rural ou ao produtor rural pessoa física (ou individual) sequer passou pela imaginação do legislador.
Não seria quase perfeito se a redação do artigo 1º da Lei nº 11.101/2005 fosse: “Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, inclusive do empresário rural, independentemente da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, nos termos e para os fins do artigo 970 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, todos esses doravante referidos simplesmente como devedor.”
Voilá!
Com efeito, o texto não é esse (evidentemente), como todos o sabemos…
Em verdade, o termo “rural” só aparece duas vezes na referida lei de recuperação de empresas, e, diga-se, originalmente, era uma única presença; hoje, lê-se “Tratando-se de exercício de atividade rural por pessoa jurídica”, referência do §2º, do artigo 48 (incluído pela Lei nº 12.873, de 2013), e “aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural”, no inciso XII, do artigo 50.
Observo que a Lei nº 11.101/2005 já sofreu alteração em cinco oportunidades (duas vezes ainda em 2005, uma em 2013 - para referir o exercício de atividade rural por pessoa jurídica -, outra em 2014 e a mais recente em 2019), e o empresário rural continua não fazendo parte do pensamento do legislador.
Insatisfeito, fui à Câmara dos Deputados buscar a exposição de motivos da Lei nº 11.101/2005, e a palavra rural - ou qualquer dos seus sinônimos possíveis - não foi utilizada uma única vez nos 23 parágrafos justificadores do então Ministro da Justiça, o senhor Mauricio Correa.
Retornei então até a proposição originária, apresentada pelo Executivo na Mensagem nº 1014, de 21/12/1993, sob o Projeto de Lei nº 4376, de 22/12/1993, (por favor, não riam) para tramitação sob regime de urgência, e que tampouco cogitou do meio “rural”.
Não bastara, para mim, diferentemente da Lei nº 11.101/2005, o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/2002) não omitiu o tema, referindo os requisitos para a caracterização do empresário rural (artigos 970, 971 c/c 968, e 984 c/c 968), já incluídos no Livro II - Do Direito de Empresa; contudo, antes disso, indica que ao produtor rural não inscrito no registro de empresas se aplicam as regras da insolvência civil, a propósito do privilégio especial estabelecido no artigo 964, V, VI, VIII e IX, do Estatuto Material.
E foi então, nesse cenário, que se desenvolveram as relações jurídicas contratuais, as políticas de crédito e as análises das garantias para o agronegócio, quando todos os sinais exteriores - da jurisprudência, inclusive - indicavam um padrão de consenso: a recuperação judicial não estava ao alcance do empresário rural individual não inscrito no registro comercial, afinal, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.
A situação específica que pode se transformar em 'leading case' no Superior Tribunal de Justiça preocupa, ainda que sem dar nome aos bois (sem trocadilho com a questão agro), sobretudo, porque o “empresário” envolvido, além da própria (e notória) expertise para os negócios, sempre contou com as melhores e mais capacitadas assessorias técnicas, sabia exatamente o que estava fazendo, e porque estava fazendo. Não por acaso possui sociedades empresariais formalmente constituídas para os mesmos fins e atividades rurais que também exerce como pessoa natural, ou seja, aproveitando o melhor dos dois mundos, empresário com registro comercial ou mero produtor rural pessoa física, de acordo com a sua conveniência de crédito, de tributos e etc. Não foi pego de surpresa por uma contingência imprevisível. A conveniência particular não deveria prevalecer ao interesse geral, e a tão-só expectativa de eventual admissão da recuperação judicial desse produtor rural pessoa física não inscrita (em tempo, modo e forma) no registro de empresas, em especial, já trouxe seríssimos e sentidos impactos das relações comerciais, políticas de crédito e de garantias, afinal é um indicativo maior do risco que influencia diretamente na taxa de recuperação de crédito.
Um parêntese final, o termo “empresário rural” não é habitual no próprio segmento do agronegócio, que declaradamente prefere o epíteto “produtor rural”.
Jeancarlo Ribeiro é advogado em Mato Grosso sócio do escritório Jeancarlo Ribeiro SIA.
* fotografia do ator Grande Otelo, no filme Macunaíma, de 1969, do diretor por Joaquim Pedro de Andrade, baseado na obra homônima de Mário de Andrade., e que figura na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)