A recuperação judicial do produtor rural não inscrito no registro público de empresas.

ou porque onde a lei não distingue...

22/08/2019 às 22:25
Leia nesta página:

A mim, é essa a impressão que tenho, é que até agora, a aplicabilidade da Lei nº 11.101, de 09/02/2005, ao empresário rural ou ao produtor rural pessoa física (ou individual) sequer passou pela imaginação do legislador.

Luiz Edgar, le Brésil n'est pas um pays sérieux, teria dito, no inicio da década de 60, o embaixa dor brasileiro na França, Carlos Alves de Souza Filho, em conversa com o jornalista Luiz Edgar de Andrade, na época correspondente do Jornal do Brasil em Paris, ao comentar o episódio que ficou conhecido como A Guerra da Lagosta.

Já de inicio, forçoso reconhecer que há tempo existe estreito relacionamento entre o mercado internacional e o agronegócio brasileiro, hoje responsável por 25% do PIB nacional e pelo saldo positivo da balança comercial (quase a metade de todas as exportações brasileiras). Isso exige do Brasil mudar a percepção externada pelo antigo diplomata, demonstrando estabilidade institucional e política e, sobretudo, segurança jurídica.

No que toca a recuperação judicial do produtor rural e o registro empresarial, o debate é exaltado e quase extremo. De um lado os defensores férreos, normalmente atuando pró-devedor, de outro os críticos inflexíveis e resistentes à idéia, não raro na guarda do credor.

Há, de fato, na minha estreita visão jurídico-interiorana, bons argumentos e logicidade nas duas vertentes, afinal, há casos e há outros casos. Estão todos certos, em parte; mas, também em parte, ninguém tem razão.

Devo confessar - e o faço sem me sentir obrigado a corar por causa disso - que entre um e outro, os argumentos pró-devedores me seriam mais simpáticos não fosse a fundamental consideração que tenho à segurança jurídica. 

Explico.

A mim, é essa a impressão que tenho, é que até agora, a aplicabilidade da Lei nº 11.101, de 09/02/2005, ao empresário rural ou ao produtor rural pessoa física (ou individual) sequer passou pela imaginação do legislador.

Não seria quase perfeito se a redação do artigo 1º da Lei nº 11.101/2005 fosse: “Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, inclusive do empresário rural, independentemente da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, nos termos e para os fins do artigo 970 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, todos esses doravante referidos simplesmente como devedor.”  

Voilá!

Com efeito, o texto não é esse (evidentemente), como todos o sabemos…

Em verdade, o termo “rural” só aparece duas vezes na referida lei de recuperação de empresas, e, diga-se, originalmente, era uma única presença; hoje, lê-se “Tratando-se de exercício de atividade rural por pessoa jurídica”, referência do §2º, do artigo 48 (incluído pela Lei nº 12.873, de 2013), e “aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural”, no inciso XII, do artigo 50.

Observo que a Lei nº 11.101/2005 já sofreu alteração em cinco oportunidades (duas vezes ainda em 2005, uma em 2013 - para referir o exercício de atividade rural por pessoa jurídica -, outra em 2014 e a mais recente em 2019), e o empresário rural continua não fazendo parte do pensamento do legislador.

Insatisfeito, fui à Câmara dos Deputados buscar a exposição de motivos da Lei nº 11.101/2005, e a palavra rural - ou qualquer dos seus sinônimos possíveis - não foi utilizada uma única vez nos 23 parágrafos justificadores do então Ministro da Justiça, o senhor Mauricio Correa.

Retornei então até a proposição originária, apresentada pelo Executivo na Mensagem nº 1014, de 21/12/1993, sob o Projeto de Lei nº 4376, de 22/12/1993, (por favor, não riam) para tramitação sob regime de urgência, e que tampouco cogitou do meio “rural”.

Não bastara, para mim, diferentemente da Lei nº 11.101/2005, o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/2002) não omitiu o tema, referindo os requisitos para a caracterização do empresário rural (artigos 970, 971 c/c 968, e 984 c/c 968), já incluídos no Livro II - Do Direito de Empresa; contudo, antes disso, indica que ao produtor rural não inscrito no registro de empresas se aplicam as regras da insolvência civil, a propósito do privilégio especial estabelecido no artigo 964, V, VI, VIII e IX, do Estatuto Material.

E foi então, nesse cenário, que se desenvolveram as relações jurídicas contratuais, as políticas de crédito e as análises das garantias para o agronegócio, quando todos os sinais exteriores - da jurisprudência, inclusive - indicavam um padrão de consenso: a recuperação judicial não estava ao alcance do empresário rural individual não inscrito no registro comercial, afinal, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.

A situação específica que pode se transformar em 'leading case' no Superior Tribunal de Justiça preocupa, ainda que sem dar nome aos bois (sem trocadilho com a questão agro), sobretudo, porque o “empresário” envolvido, além da própria (e notória) expertise para os negócios, sempre contou com as melhores e mais capacitadas assessorias técnicas, sabia exatamente o que estava fazendo, e porque estava fazendo. Não por acaso possui sociedades empresariais formalmente constituídas para os mesmos fins e atividades rurais que também exerce como pessoa natural, ou seja, aproveitando o melhor dos dois mundos, empresário com registro comercial ou mero produtor rural pessoa física, de acordo com a sua conveniência de crédito, de tributos e etc. Não foi pego de surpresa por uma contingência imprevisível. A conveniência particular não deveria prevalecer ao interesse geral, e a tão-só expectativa de eventual admissão da recuperação judicial desse produtor rural pessoa física não inscrita (em tempo, modo e forma) no registro de empresas, em especial, já trouxe seríssimos e sentidos impactos das relações comerciais, políticas de crédito e de garantias, afinal é um indicativo maior do risco que influencia diretamente na taxa de recuperação de crédito.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Um parêntese final, o termo “empresário rural” não é habitual no próprio segmento do agronegócio, que declaradamente prefere o epíteto “produtor rural”.

Jeancarlo Ribeiro é advogado em Mato Grosso sócio do escritório Jeancarlo Ribeiro SIA.

* fotografia do ator  Grande Otelo, no filme Macunaíma, de 1969, do diretor por Joaquim Pedro de Andrade, baseado na obra homônima de Mário de Andrade., e que figura na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)  

Sobre o autor
Jeancarlo Ribeiro

Advogado em Rondonópolis-MT. Assessoria, consultoria, contencioso administrativo e contencioso judicial para os setores empresarial e do agronegócio nas áreas cível e trabalhista patronal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos