O MANIQUEÍSMO BRASILEIRO

24/08/2019 às 09:33
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE O MODO DE PENSAR DOS GOVERNOS MILITARES E DO ATUAL GOVERNO SOBRE A AMAZÔNIA

O MANIQUEÍSMO BRASILEIRO

Rogério Tadeu Romano

Os militares sempre tiveram em mente uma política de segurança nacional na Amazônia.

De muito comentava-se sobre o tratamento dado durante a chamada ditadura militar aos índios.

O resultado apresentado pelo Ministério Público Federal  é estarrecedor: matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades foram cometidas contra indígenas no país, principalmente pelos grandes proprietários de terras e por agentes do Estado. O trabalho  incluiu relatos de dezenas de testemunhas, apresentou documentos e identificou cada uma das violações que encontrou – assassinatos de índios, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena. Ele também apurou as denúncias sobre a existência de caçadas humanas de indígenas feitas com metralhadoras e dinamite atiradas de aviões, as inoculações propositais de varíola em populações indígenas isoladas e as doações de açúcar misturado a estricnina.

Os militares tinham um projeto de desenvolvimento em grande escala que articulava o programa econômico concebido no IPES e as diretrizes de segurança interna desenvolvida pela ESG e que pretendia realizar a integração completa do território nacional. Isso incluía um ambicioso programa de colonização que implicava no deslocamento de quase um milhão de pessoas com o objetivo de ocupar estrategicamente a região amazônica, não deixar despovoado nenhum espaço do território nacional e tamponar a área de fronteiras. Para seu azar, as populações indígenas estavam posicionadas entre os militares e a realização do maior projeto estratégico de ocupação do território brasileiro. Pagaram um preço altíssimo em dor e quase foram exterminados por isso.

No período de governo militar foi conhecido o chamado “projeto Jari”.

Sobre a matéria assim dispôs o CPDOC da Fundação Getúlio Vargas:

“Denominação dada ao empreendimento econômico desenvolvido em caráter privado, a partir de 1967, pelo empresário norte-americano Daniel Keith Ludwig na região amazônica. Localizado na confluência dos rios Jari e Amazonas, abrangendo terras do estado do Pará e do então território do Amapá, o Jari foi planejado para funcionar como um complexo econômico de grandes dimensões, envolvendo atividades industriais, agrícolas e de extração mineral e vegetal.
Ao iniciar suas atividades no Brasil, Daniel Ludwig era detentor de uma das maiores fortunas do mundo e comandava um império empresarial espalhado por mais de vinte países. Suas iniciativas empresariais, iniciadas no ramo da construção naval e posteriormente diversificadas, notabilizavam-se pelos altos volumes de capital investido e pela ousadia em projetos de engenharia, como as obras de dragagem e abertura do rio Orenoco, na Venezuela, ao tráfego oceânico. O Projeto Jari foi considerado, contudo, o maior de seus empreendimentos, devido aos altos riscos de um investimento de grandes proporções numa região isolada da floresta amazônica.

Os negócios de Ludwig no Brasil tiveram início a partir da aquisição em 1967 da Empresa de Comércio e Navegação Jari Ltda., possuidora de extensas propriedades na Amazônia. Sob seu controle a empresa foi reestruturada, originando a holding Jari Florestal e Agropecuária Ltda., que reunia as inúmeras empresas de Ludwig na região. Esse complexo era gerenciado pela norte-americana Universe Tankship Inc., por sua vez subordinada desde 1979 ao Ludwig Institute for Cancer Research, entidade de direito privado com sede na Suíça.

O exato dimensionamento do território ocupado pelo Jari foi sempre dificultado pela complexidade que envolve a legalização de terras naquela região. Legalmente, Ludwig conseguiu comprovar sua propriedade sobre cerca de um milhão e seiscentos mil hectares de terra, entre títulos de propriedade plena, títulos de aforamento e títulos de posse legitimáveis. O empresário reivindicava, no entanto, o direito de propriedade sobre uma área ainda mais extensa, por ele estimada em torno de três milhões de hectares.

A principal atividade prevista no início do Projeto Jari foi a extração e produção de madeira destinada à fabricação de celulose. Para isso, cem mil hectares de floresta nativa foram reflorestados com duas espécies vegetais importadas: a gmelina arborea e o pinus caribea. No setor agropecuário, desenvolveu-se a maior área contínua de cultivo de arroz do mundo, além da criação de milhares de cabeças de gado. No setor de mineração, destacou-se a extração de caulim, além do domínio sobre importantes reservas de bauxita, minério de ferro, quartzo, calcáreo e ouro. Para dar sustentação a todas essas atividades, Ludwig construiu uma extensa rede de infra-estrutura que incluía dezenas de quilômetros de ferrovias, centenas de quilômetros de rodovias, um porto e três vilas residenciais.

Para sede do projeto foi fundado, por iniciativa de Ludwig, o núcleo urbano de Monte Dourado, localizado em área pertencente ao município paraense de Almeirim. Até o final da década de 1970, a presença do poder público em Monte Dourado era bastante precária. Em junho de 1978, o prefeito de Almeirim dizia pretender estabelecer uma subprefeitura em Monte Dourado e promover a ligação rodoviária com a sede do município. Ainda em julho de 1979, o ministro do Interior, Mário Andreazza, em visita ao Jari, defendeu a adoção de medidas que efetivassem a presença do poder público na região. Foi somente a partir dessa época, quando o projeto começava a apresentar problemas financeiros, que Daniel Ludwig passou a reivindicar o estabelecimento de órgãos estatais no interior de suas propriedades.

Maior companhia florestal do planeta e mais extensa propriedade agrícola do mundo pertencente a uma só pessoa, o Jari envolveu um total de investimentos próximo de um bilhão de dólares. Por suas dimensões e por ser controlado por um empresário estrangeiro, foi objeto de inúmeras críticas e denúncias no decorrer de sua existência. Por um lado, foi criticado como um projeto mal concebido e mal dirigido do ponto de vista gerencial; de outro, foi visto por muitos como uma presença estrangeira indesejável no país e identificado como uma ameaça à soberania nacional. Otávio Ianni se referiu ao Jari como “um enclave estrangeiro criado com a proteção econômica e política da ditadura”, caracterizando-o ainda como um produto típico do regime instalado em 1964, que facilitou a abertura da Amazônia aos grandes negociantes de terra e promoveu uma política de concentração fundiária na região.

De fato, durante quase toda a década de 1970 as atividades do Jari foram facilitadas pelo bom trânsito de Ludwig junto ao governo federal. Em 1974, a Jari Florestal obteve o aval do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) para um empréstimo de cerca de duzentos milhões de dólares realizado no exterior, destinado à importação de uma fábrica de celulose e de uma usina termelétrica, adquiridas no Japão. Além disso, Ludwig conseguiu que a construção dessas unidades industriais fosse beneficiada com a isenção de impostos, mediante sua inclusão no programa de Benefícios Fiscais às Exportações (Befiex). Essa operação gerou protestos de empresários ligados à Associação Brasileira para o Desenvolvimento da Indústria de Base e ao Sindicato da Indústria da Construção Naval, que argumentaram que muitos dos equipamentos adquiridos no Japão possuíam similares nacionais.

Ainda na década de 1970, denúncias contra as condições de trabalho na área do projeto resultaram na intervenção de fiscais do governo federal, obrigando Ludwig a promover melhorias nas condições de habitação dos trabalhadores e a cumprir a legislação salarial vigente no país. Por outro lado, os efeitos negativos provocados sobre o meio ambiente pela derrubada de grandes extensões da floresta amazônica motivaram protestos de grupos ambientalistas de várias partes do mundo.”

A preocupação dos militares “era integrar o Brasil e não entregar o Brasil”.
Com isso a atuação de instituições civis nacionais e internacionais sempre foi vista com preocupação pelos militares.

Afirmava-se que  que ONGs e indígenas pretendem, em conluio com países estrangeiros, dividir a região por meio da independência de algumas de suas áreas. Os ataques externos “ao Brasil”, ou seja, ao governo brasileiro, esconderiam um plano secreto internacional para tomar essas porções de terra exuberantes e ricas.

Uma cimeira apoiada pela Igreja Católica, a ser ou que fosse realizada na Amazônia, seria tida pelos militares, dentro da doutrina de segurança nacional, fruto da dicotomia amigo-inimigo, seria vista com “extrema preocupação”.

Nos anos 1960, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), um dos artífices do golpe de 1964 e influenciador de toda uma geração de militares, escreveu em sua “Geopolítica do Brasil” que a Amazônia era um “deserto verde” e que a função do governo era “incorporá-la realmente à nação”. Ele resumiu sua “ideia de manobra geopolítica para integração” em três linhas de ação, incluindo “inundar de civilização a hileia amazônica [termo usado no século 19 para designar a região], a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base avançada constituída no Centro-Oeste”.

A linha de ação foi confirmada em 1969, quando o CSN (Conselho de Segurança Nacional), formado pelo presidente da República e pelos ministros militares e civis da ditadura militar (1964-1985), editou o ultrassecreto “Conceito Estratégico Nacional”.

Isso é facilmente notado na leitura do “A Farsa Ianomâmi” (ed. Biblioteca do Exército, 1995), do oficial paraquedista Carlos Alberto Menna Barreto (1929-1995). Na capa da primeira edição do livro, um homem branco de olhos azuis se esconde atrás de uma máscara que imita o rosto de um indígena.

Assim doações para proteção da Amazônia que partam de países outros para proteção do meio ambiente e dos direitos indígenas, pugnando contra o desmatamento, a extração mineral indiscriminada, tudo isso é tido como subversivo.

É a doutrina de segurança nacional que parte do binômio, repita-se, amigoxinimigo.

É o maniqueísmo a ferro e fogo.

Essa tese de triste memória tem origem na visão de Karl  Schmitt:

Para Schmitt, a contraposição amigo-inimigo só pode ser corretamente assimilada a partir da política concebida como conceito autônomo, topograficamente localizado nointerregnum entre as categorias moral, jurídica, econômica, etc. e a ficção da neutralidade, o que não significa que ela não se encontra imbricada com questões éticas, eclesiásticas ou sócio-ideológicas. A tese central do autor é que o político, enquanto ubiquidade, não deriva de fatores remotamente estabelecidos a partir de um encadeamento causal-naturalístico, como querem os jusnaturalistas, tampouco pode ser deduzido de critérios de estrita legalidade balizadores do pensamento juspositivista. A política sequer é uma esfera específica do Estado, a teor do que proclamam equivocadamente os administrativistas. O político se erige em condição legítima de possibilidade da caracterização de um inimigo público, na medida em que “o inimigo não é, portanto, o concorrente ou o opositor em geral. O inimigo também não é o opositor privado que se odeia com sentimentos de antipatia. O inimigo é, apenas, uma totalidade de homens pelo menos eventualmente combatente, isto é, combatente segundo uma possibilidade real, a qual se contrapõe a uma totalidade semelhante. O inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo aquilo que tem relação com uma tal totalidade de homens, em particular, com todo um povo, se torna por isso público. O inimigo é hostis, nãoinimicus em sentido mais amplo”, (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 55 e 56)  

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Essa foi a linha traçada na defesa de um forte movimento de extrema-direita que foi voga na Alemanha: o nazismo.

O ex-comandante do Exército e hoje assessor no influente GSI (Gabinete de Segurança Institucional), o general reformado Eduardo Villas Bôas, escreveu em uma rede social que o Brasil é alvo de “ferramentas do moderno capitalismo” exercidas pelas críticas à política ambiental, mas que estava deixando de se submeter “a pressões” estrangeiras.

Falam que o indigenato quer criar pátria pobre. Ora, as terras ocupadas pelos índios são da União Federal, por expresso dispositivo constitucional.

Some-se a isso, como lembrou Rubens Valente(Teoria conspiratória da ditadura guia Bolsonaro, publicada no jornal Folha de São Paulo), que o principal líder ianomâmi, Davi Kopenawa, em reiteradas vezes, em todos os inúmeros fóruns nacionais e internacionais dos quais participou, nunca falou sobre separação do Brasil.

Repete o governo atual o mesmo modo de pensar dos governos militares.

Bem disse Merval Pereira(edição do O Globo, no dia 24 de agosto de 2019): "Não é possível no mundo atual ser contra a atuação das ONGs, organizações civis que representam o interesse da sociedade em escala internacional. O governo Bolsonaro, que é contrário ao que chama de mundialização, pretende limitar a ação das ONGs, considerando-as braços intervencionistas de potências estrangeiras".

Com o devido respeito, como ainda acentuou Merval Pereira: “Devastar a Amazônia para explorar madeira ou para pastagens é mau negócio no longo prazo.”

O governo resolveu desmoralizar o INPE, um dos centros de excelência da ciência brasileira, reconhecido mundialmente. Brigou contra os fatos, como está se vendo agora.

Antes, já tinha brigado com os governos da Noruega e da Alemanha por divergências sobre a utilização do Fundo Amazônia, exemplo de cooperação internacional sadia para ajudar a luta pelo meio-ambiente. Os doadores do Fundo estavam satisfeitos com sua atuação e, por questões políticas, o governo Bolsonaro resolveu intervir.

As verdades científicas, com sua metodologia própria, como no caso do INPE, estão a mostrar que no embate amigoxinimigo, perdem valores que pela Constituição-cidadã, modelo democrático escolhido pelo Brasil, desde 1988, devem ser protegidos. Esses dados científicos, fato e não fake, demonstram a veracidade do grave desmatamento no bioma Amazonas, destruição da fauna e flora locais. Tudo em nome de interesses que são “integrar para não entregar”.

O certo é que, no “frigir dos ovos”, o desmatamento, a queimada,  a extração mineral em áreas de preservação ambiental, o tratamento dado ao indigenato, tudo pelo atual governo em sua visão de mundo, estão transformando o país “num verdadeiro pária ambiental”.

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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