DISPARIDADES NA APLICAÇÃO DA LEI PENAL PARA CIVIS E MILITARES

INCONSTITUCIONALIDADE DE ALGUNS DISPOSITIVOS DO CPM E DA LEI 4.898/65

25/08/2019 às 21:16
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O presente trabalho faz uma abordagem sobre a aplicação da lei penal a civis e militares, apontando suas disparidades, com ênfase na Lei 13.491/17 e Lei 4898/65 sob a ótica da jurisprudência e da doutrina.

Resumo: O presente trabalho faz uma abordagem sobre a aplicação da lei penal a civis e militares, apontando suas disparidades, com ênfase na Lei 13.491/17 e  Lei 4898/65, além de analisar alguns dispositivos do Código Penal Militar, quanto a sua constitucionalidade, em face do atual Estado Democrático de Direito, sob a ótica da jurisprudência e da doutrina, fazendo análises; de artigos de internet; julgados do Supremo tribunal Federal, do Superior Tribunal Militar e de outros Tribunais Estaduais  e de alguns poucos livros de Direito Militar disponíveis no mercado. Tem como objetivo apresentar o mundo jurídico Militar, a fim de desmitificar alguns conceitos incrustados no senso comum da sociedade, de que haveria benefícios aos Militares, ou ainda que existiria foro especial para esses agentes, quando do cometimento de crimes, o que acarreta uma série de problemas socias que em nada contribuem para o bem estar social, como por exemplo, a divergência entre instituições policiais, que só beneficiam o crime organizado. O que se conclui é que, realmente há uma disparidade na aplicação da lei para Civis e Militares, mas essa disparidade é em favor dos civis, que possuem todos os direitos constitucionais consagrados defendidos e aplicados, o que não ocorre com os cidadãos fardados. 

Palavras-chave: Direito Militar; Estado Democrático de Direito; Lei 13.491/17; Crimes Contra a Vida praticados por Militar; disparidades entre militares e civis.

Abstract: This paper deals with the application of the criminal law to civilians and military, pointing out their disparities, with emphasis on Law 13.491 / 17 and Law 4898/65, besides analyzing some provisions of the Military Penal Code, regarding their constitutionality, in particular. face of the current Democratic Rule of Law, from the perspective of jurisprudence and doctrine, making analyzes; of internet articles; Federal Supreme Court, Superior Military Court and other State Courts and a few military law books available on the market. It aims to present the military legal world, in order to demystify some concepts embedded in the common sense of society, that there would be benefits to the military, or that there would be a special forum for these agents when committing crimes, which entails a series social problems that do nothing to contribute to social welfare, such as the divergence between police institutions, which only benefit organized crime. The bottom line is that there is indeed a disparity in law enforcement for Civilians and Military, but this disparity is in favor of civilians, who have all the established constitutional rights upheld and enforced, which is not the case with uniformed citizens.

Keywords: Military law; Democratic state; Law 13.491/17;Crimes Against Life committed by the Military; disparities between military and civilians.

Pode-se dizer que vivemos atualmente na era “Militares versus Civis”, instaurada com a posse de um Capitão do Exército Brasileiro no cargo público mais alto do Brasil, o de Presidente da República, o que  reacendeu um antigo debate sobre os direitos e privilégios dos militares, acreditando boa parte da sociedade, da doutrina e de grandes juristas brasileiros, que os fardados seriam uma categoria privilegiada em relação as pessoas “comuns do povo”.

Além da posse do Presidente Jair Bolsonaro, com a crescente e descontrolada violência que assola toda a sociedade brasileira, foi necessária a atuação das Forças Armadas nos principais centros urbanos do Brasil, como na cidade do Rio de Janeiro. A fim de amparar a atuação dos militares, foi editada em 16 de outubro de 2017 a Lei Nº. 13.491, a qual alterou sensivelmente a competência da justiça militar, ampliando o rol de crimes militares e impondo a competência da Justiça Militar da União (JMU) para julgar os crimes dolosos contra a vida de civil.

Essa alteração não foi bem recebida pela doutrina brasileira, já que a tradição sempre foi restringir a competência da Justiça Militar. Essa alteração, conforme parte da doutrina, seria uma “carta branca” ou “licença para matar”. Nesse contexto ressurgiram com muito mais força as discussões sobre as disparidades de aplicação da lei penal para Militares e Civis, já que se um civil for acusado de homicídio será submetido a um tribunal do Júri, enquanto que um Militar Federal será submetido a um julgamento perante seus pares.

2 DESENVOLVIMENTO

A Constituição Federal de 1988 rompeu com a ordem jurídica anterior, trazendo diversos princípios que orientam a interpretação, aplicação e elaboração do direito, sobretudo do Direito Penal, que é responsável por limitar a liberdade do cidadão. No âmbito civil os princípios constitucionais são devidamente defendidos, já no âmbito militar o mesmo não ocorre.

O Código Penal Militar (CPM) foi editado em 1969, juntamente com o Código Penal Comum (CP), que foi revogado em plena vacatio legis por, em tese, ser muito severo para a época, após intensos debates. O código penal comum passou por diversas reformas garantistas desde a sua edição em 1940, como a reforma de 1984, além das diversas leis extravagantes, como a Lei nº 9099/95 (JECRIM). Contudo o CPM não sofreu qualquer alteração significativa em todo esse tempo, em benefício dos jurisdicionados, pelo contrário, as leis e alterações no CPM, como a Lei 13.491/17 tornaram ainda mais rígida a submissão dos militares a lei castrense, isso porque a partir de agora todo e qualquer crime praticado por militar no exercício da função ou em razão dela, será crime militar, ainda que previsto em outros códigos ou leis esparsas.

No entanto as diferenças entres os códigos penais não terminam aqui, o CPM se diferencia em diversos outros aspectos do código penal comum, começando pelo modelo de delito adotado, já que em sua essência é causalista, isto é, a conduta- considerando o conceito analítico tripartite do crime- é uma mera enervação muscular. “Há provas muito fortes de que o Código Penal Castrense – o Decreto Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969 – adotou uma estrutura causalista neoclássica, embora possa não ser a visão unânime” (Neves, 2012).

Além disso o CP comum passou por uma intensa reforma, que não alcançou o código castrense, o qual traz diversos artigos que hoje, em face da Constituição Federal de 1988, poderiam ser considerados “absurdos jurídicos”, mas que nunca foram declarados inconstitucionais, havendo apenas uma ou outra citação sobre sua inconstitucionalidade, no entanto, sem um debate aprofundado, havendo dessa forma diversos artigos do CPM que são considerados constitucionais, mas que ofendem diversos princípios constitucionais consagrados na doutrina comum.

Alguns doutrinadores entendem que nossa Carta Magna recepcionou o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, concedendo-lhe, em tese, aspecto de legalidade, contendo parte do rigor quando da edição do CPM, dando ao militar direitos que lhe foram tolhidos em 1969. Assim entende o grande mestre José Afonso da Silva (SILVA, 2004, p.233) que: “Quanto mais o processo de democratização avança, mais o homem se vai libertando dos obstáculos que o constrangem, mais liberdade conquista”.

No entanto, ainda assim, o CPM contém uma infinidade de artigos de duvidosa constitucionalidade, como o artigo 3º do Código Penal Militar, o qual dispõe que: As medidas de segurança regem-se pela lei vigente ao tempo da sentença, prevalecendo, entretanto, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução (BRASIL,1969). Para alguns doutrinadores esse artigo e flagrantemente inconstitucional, já que fere frontalmente o princípio da legalidade, basilar da CF/88, uma vez que determina que deve ser aplicada a lei vigente ao tempo da execução em detrimento da lei vigente ao tempo da sentença, nada dispondo sobre a aplicação da lei mais benéfica ou retroatividade in bonan parten

Em desrespeito ao princípio da lesividade ou da ultima ratio, no âmbito militar é a não aplicação do princípio da insignificância, ou princípio da bagatela ou ainda princípio bagatelar, o qual surgiu como meio de limitar a atuação punitiva do Estado e advém de estudos de Claus Roxin. Inicialmente era aplicado apenas para crimes patrimoniais, no entanto atualmente tem sido aplicado e invocado pelos advogados de defesa para todo e qualquer crime, até mesmo aqueles cometidos como violência ou grave ameaça, obrigando o Supremo Tribunal Federal (STF) a impor requisitos para aplicação do princípio da bagatela, os quais são: Mínima ofensividade da Conduta, Ausência de periculosidade da Ação, reduzido grau de reprovabilidade da Conduta e inexpressiva lesão jurídica.

Tal princípio, como majoritariamente defendido pela doutrina, exclui a tipicidade material da conduta, considerando o conceito analítico tripartite do crime, o qual divide o delito em fato típico, ilícito e culpável; sendo a conduta elemento do fato típico. É corolário do princípio da lesividade ou ofensividade, isto é, não se pode considerar criminosa uma conduta que não chegue sequer a lesionar o bem jurídico tutelado. É pacífico o entendimento, tanto na doutrina quanto na jurisprudência de que o princípio bagatelar é um princípio jurídico, conforme leciona Hassemer:

Puede ser aconsejable para la descongestión de los tribunales penales y para la agilidad del proceso el conceder a las autoridades de instrucción la posibilidad de suprimir el proceso hasta em los hechos punibles (sospechosos) de mediana gravidad. Dado que no se trata de bagatelas (cfr. 1, b, 4), la suspesión del proceso no puede quedar sin consecuencias; las autoridades de instrucción tienen que ener um poder de sanción limitado. (HASSEMER, 1988, p. 8-11).

Para o Hassamer, as autoridades devem ter um poder de sanção limitado, com possibilidade de suprimir processos de gravidade média, a fim de descongestionar o judiciário e dar celeridade a justiça, essa seria a função do princípio da insignificância. Contudo, no âmbito militar a doutrina majoritária entende que não se aplica o princípio da insignificância, ainda que preenchidos os requisitos impostos pelo STF, entendendo que, o que se tutela é a moralidade, a hierarquia e a disciplina militar, e nesse ínterim, não caberia a insignificância ainda que ausente a lesividade, requisito de preenchimento da tipicidade material do crime no âmbito penal comum. Cícero Coimbra entende que, deve-se diferenciar bem jurídico tutelado e objeto jurídico tutelado, para o autor então seria possível aplicar o princípio da insignificância no furto de algumas folhas de ofício em branco para uso particular pelo militar:  

Outro exemplo interessante seria o reconhecimento da insignificância da lesão ao bem jurídico em casos de crimes patrimoniais, ou mesmo contra a Administração Militar, como o caso do peculato em que o irrisório valor da coisa subtraída importa, sem embargo, em uma não lesão ao patrimônio (no crime de furto, p. ex.) bem como em uma não lesão merecedora de tutela penal militar, como no caso do peculato, por exemplo, diante de um militar do Estado que, valendo-se da função que desempenha, subtrai algumas poucas folhas de papel sulfite da repartição onde trabalha.  (NEVES, 2012, p.69). 

Já no caso de crimes que não se possa valorar a insignificância, devido aos bens jurídicos difusos e coletivos e que se tutela, como ad exemplum, o crime de posse de quantidade ínfima de drogas para consumo pessoal, previsto no artigo 290 do CPM,  que em um análise simplista poderia levar a crer pela possibilidade da insignificância , Neves, entende que não se aplica tal princípio: 

Obviamente que, focando-se na quantidade de entorpecente portado pelo indivíduo, poder-se-ía dizer que a quantidade em foco é inexpressiva, insignificante. Contudo, a capitulação do delito o coloca entre os crimes contra a incolumidade pública, afetando em especial a saúde pública, o que, por si só, já afastaria a construção pela insignificância (NEVES, 2012, p. 69). 

O uso de drogas por um militar pode gerar danos irreparáveis, já que em regra esses agentes lidam todos os dias com armas de grande potencial lesivo, são responsáveis pela guarda e proteção de locais estratégicos, como arsenais de guerra, além de conduzirem viaturas pesadas por áreas urbanas e o uso de substâncias psicoativas por esses militares coloca em risco toda uma coletividade, além da própria segurança nacional, afinal não é difícil imaginar o risco de um militar drogado com cocaína pilotando um tanque de guerra. Por tudo isso, a aplicação do princípio da insignificância no âmbito militar é deve ser analisado caso a caso, não se podendo falar que é vedado ou que é permitido. Cada caso deve ser analisado especificamente, mesmo com a previsão no artigo 209 do CPM de o juiz, no caso de lesão levíssima, considerar como disciplinar a infração, conforme parágrafo 6º: 

Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

§ 6º No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração como disciplinar.

Entende a doutrina, Cícero Coimbra, que tal previsão não é uma expressão do princípio da insignificância, como sustenta parte da doutrina, isso porque, na época o legislador sequer tinha noção do conceito de insignificância, que é expressão do Estado Democrático de direito, instaurado com a Constituição Federal de 1988 (CF/88) e corolário do princípio da lesividade, que só recentemente tomou a pauta das discussões jurídicas. De acordo com o autor:

Não se pode conceber como correta a abordagem que o Código Penal Militar faz do princípio da insignificância, que é totalmente incoerente com o sistema penal preconizado pelo Estado Democrático de Direito, instituído a partir de 1988. Em primeiro lugar, observa-se a tentativa de restringir e tornar estática, pela lei, a aplicação de um princípio de direito penal que, por força do próprio fundamento constitucional do qual decorre e, em razão dos princípios filosóficos que determinaram a sua criação, foi criado justamente para flexibilizar o Sistema Penal (NEVES, 2012, p. 73). 

Assim, que pese possa parecer que o dispositivo traz o princípio da insignificância, na verdade seria apenas uma tentativa de estagnar um princípio que foi criado justamente para flexibilizar a aplicação da lei, isto é, não existiria assim princípio da insignificância expresso no Código Penal Militar, até porque, seria muito difícil naquela época que o legislador tivesse se preocupado com um princípio tão moderno quanto o princípio da insignificância.

Outro artigo de dubitável constitucionalidade e muito debatido na jurisprudência, é o artigo 235 do Código penal Militar, o qual prevê que: “Praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena - detenção, de seis meses a um ano”.  Sem dúvida alguma esse é um dos artigos mais discutidos do Direito Militar, pois, tipifica como crime algo que atenta diretamente contra o princípio da dignidade da pessoa Humana, além de ser homofóbico e preconceituoso. Contudo não criminaliza a homofobia, mas sim o ato libidinoso em quartel, sendo ele entre homem e mulher ou entre militares do mesmo sexo. A confusão quanto ao bem jurídico tutelado se deve ao fato de o artigo 235 estar no capítulo dos crimes sexuais, ao invês de estar nos crimes contra o dever e o serviço militar. Tutela-se com isso a disciplina e a moralidade militar e não o ato sexual em si como contesta boa parte da doutrina pátria. 

Com base nessa divergência foi proposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 291, que questionava a constitucionalidade do referido artigo, pela Procuradoria Geral da República, a qual alegava violação “aos princípios da isonomia, liberdade, dignidade da pessoa humana, pluralidade e do direito à privacidade”, e pedia que fosse declarada a não recepção do dispositivo em face da CF/88 e subsidiariamente, a declaração de inconstitucionalidade do termo “pederastia” e da expressão “homossexual ou não” no tipo penal. Conforme o grande Penalista Militar, Cícero Coimbra, é um equívoco achar que o CPM criminaliza o homossexualismo: 

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Primeiro, cumpre notar que não só o ato homossexual é criminalizado, mas também o heterossexual. Isso leva à conclusão de que o que se busca tutelar, de fato, é a disciplina intramuros, porquanto é elemento normativo do tipo “lugar sujeito a administração militar”. Desse modo, a objetividade jurídica não é a liberdade sexual do indivíduo – sobretudo se se levar em consideração que os sujeitos assentiram na prática do ato –, mas a disciplina militar, que será turbada com a promiscuidade no interior da caserna, desestabilizando o regular funcionamento cotidiano da unidade em que o fato ocorreu (NEVES, 2012, p. 67).

Isso porque o dispositivo em nenhum momento criminaliza o fato de o agente ser homossexual, mas sim o ato de praticar sexo em sujeito a administração militar, assim não é só o ato sexual homossexual que é crime, mas também o heterossexual. O bem jurídico tutelado por esse dispositivo não é a liberdade sexual do indivíduo, mas sim a disciplina militar, visando a manter a regularidade do cotidiano castrense. O STF, no julgamento da ADPF, entendeu pela procedência parcial do pedido, declarando inconstitucional o termo “pederastia” e da expressão “homossexual ou não”, mantendo, portanto, o crime do artigo 235 do CPM, conforme ADPF 291: 

Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ART. 235 DO CÓDIGO PENAL MILITAR, QUE PREVÊ O CRIME DE “PEDERASTIA OU OUTRO ATO DE LIBIDINAGEM”. NÃO RECEPÇÃO PARCIAL PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 1. No entendimento majoritário do Plenário do Supremo Tribunal Federal, a criminalização de atos libidinosos praticados por militares em ambientes sujeitos à administração militar justifica-se, em tese, para a proteção da hierarquia e da disciplina castrenses (art. 142 da Constituição). No entanto, não foram recepcionadas pela Constituição de 1988 as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, contidas, respectivamente, no nomen iuris e no caput do art. 235 do Código Penal Militar, mantido o restante do dispositivo. 2. Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados. 3. Pedido julgado parcialmente procedente.

(ADPF 291, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-094 DIVULG 10-05-2016 PUBLIC 11-05-2016)

Em sentido contrário, em que pese o Ministro Luiz Roberto Barroso tenha entendido que o artigo 235 tutela a Hierarquia e disciplina militares e não a liberdade sexual, o ministro entende que usar um dispositivo do CPM para punir a conduta é violar o princípio da última ratio, conforme seu voto na referida ADPF: 

Deste modo, considerando que a severidade do regime disciplinar das Forças Armadas é plenamente capaz de tratar adequadamente comportamentos impróprios, como a prática de atos libidinosos por militares em locais sujeitos à administração militar, entendo que a utilização de um tipo penal para punir tal conduta não se justifica, à luz do princípio da intervenção mínima do direito penal. 

Posteriormente o professor Luiz Roberto Barroso, acompanhou a maioria, entendendo pela não recepção dos termos “pederastia” e “homossexual ou não”. Isto é, entendendo pela recepção do artigo 235 diante na atual Constituição, assim em que pese a forte discussão doutrinaria e jurisprudencial, ato libidinoso em ambiente militar continua sendo crime, sendo inconstitucionais apenas as expressões “pederastia” e “homossexual ou não”. 

O artigo 166 do CPM, pune a crítica contra o governo ou autoridade militar, outro artigo na contramão da CF/88, uma vez que o artigo 5º inciso IX da CF/88 garante a liberdade de expressão a todos os cidadãos brasileiros, garantia esta decorrente do próprio conceito de Estado de Democrático de Direito. Afinal, não há como se falar em liberdade, 1º geração dos direitos fundamentais, sem liberdade de expressão. Conforme disposto no “Habeas Corpus” 83.125 de relatoria do Ministro Marco Aurélio, no qual afirmou que não há Estado Democrático de Direito sem observância da liberdade de expressão. Em sentido contrário o Código Penal Militar veda a liberdade de expressão, estabelecendo no artigo 166 o seguinte: 

Publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo: Pena - detenção, de dois meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave (BRASIL, 1969). 

Contra esse dispositivo foi proposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 475 proposta pelo partido social liberal (PSL), o qual alega, entre outros fundamentos, que o artigo foi editado em um regime de exceção, onde não havia democracia e que tal dispositivo pune, principalmente Policiais e Bombeiros por simples postagens nas redes sociais, com penas de repreensão até prisão, argumentando ainda que o Estado não pode impedir a plena liberdade de pensamento dos Militares, com base na hierarquia e disciplina, uma vez que a liberdade de crença ou de pensamento é direito fundamental do ser humano.

Até a data do fechamento deste trabalho não havia uma decisão do Supremo Tribunal Federal quanto a recepção ou não do dispositivo, havendo, no entanto um parecer da então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge, que se manifestou pela improcedência do Pedido, ao argumento de que nenhum direito constitucional é absoluto, sempre cabendo relativizações, e que o artigo questionado não se trata de uma vedação a liberdade de expressão, mas sim de uma relativização desse direito. Os Tribunais Militares Estaduais têm aplicado o artigo de forma indubitável, como por exemplo o Tribunal de justiça Militar do Rio Grande do Sul, que condenou um militar por criticar um ato de seu superior, conforme ementa abaixo:

Ementa: PUBLICAÇÃO OU CRÍTICA INDEVIDA (ART. 166 DO CPM). CRÍTICA DE ATO PRATICADO POR SUPERIOR ATINENTE À DISCIPLINA MILITAR. TIPICIDADE DA CONDUTA DEVIDAMENTE COMPROVADA. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. A análise do contexto probatório demonstra a reprovabilidade da conduta perpetrada pelo réu. Observa-se que, além de criticar publicamente ato praticado por superior hierárquico, o acusado auxiliou na abertura de faixas em frente à Unidade, bem como também colaborou na distribuição dos panfletos à população em geral. Ademais, gize-se que o réu concedeu uma entrevista à rádio Pelotense tecendo críticas negativas dos atos praticados pelo Comando do 4º BPM, referente a casos atinentes à disciplina e ao serviço militar, fato que comprova a real intenção de desmoralizar o comando daquela OPM. À unanimidade, negaram provimento ao apelo.

Apelação(criminal)-1001363/2012 

Relator: Juiz Civil Geraldo Anastácio Brandeburski 

No caso julgado, um Soldado da Brigada Militar, Polícia Militar do Rio Grande do Sul, criticou uma prisão em flagrante de um colega, pelo crime de embriaguez em serviço, realizada pelo comando do 4º batalhão de polícia militar da cidade de pelotas. Na ocasião o militar distribuiu panfletos nas ruas criticando a ação do comando, além de dar entrevista na rádio da cidade, onde fez diversas críticas a instituição e ao comando do quartel.  Em um outro julgado, também do Estado do Rio Grande do Sul, um militar foi condenado por criticar o ato do comandante da companhia que o transferiu para outra cidade, conforme ementa abaixo:

Ementa: Penal militar. Crítica indevida. Condenação. 1. Pratica crítica indevida (art. 166 do CPM) o sgt. que comparece à sede do jornal local e concede entrevista criticando ato do Cap. Comandante da Companhia PM de Jaguarão acerca do enquadramento dado à sua transferência para uma das OPM da Capital. 2. Apelo da defesa não provido. Decisão unânime. Apelação (criminal) - 104084/2006 
Relator: Juiz Militar Antonio Carlos Maciel Rodrigues 

Na ocasião, um 1º sargento da Brigada Militar, deu uma entrevista no jornal da cidade, intitulado “A Folha”, alegando que havia sido transferido de unidade em que servia, devido a represarias do capitão comandante da companhia, o qual foi o título da reportagem no jornal. O Tribunal Castrense Estadual entendeu que se tratava de um ato que feria a hierarquia e disciplina militar e por isso negou provimento a apelação. Fica evidente que o artigo 166 do CPM, é uma forma de calar a tropa diante de abusos e arbitrariedades realizadas não só pelo comando, mas como também pelo governo, que muitas vezes se utiliza do mesmo artigo para calar toda uma instituição. Dessa forma o artigo em análise não só atenta contra a liberdade de expressão como também legitima arbitrariedades, abusos e até mesmo a prática de diversos crimes, já que o militar sequer pode dizer que algo está errado, sob pena do crime de crítica indevida.

         O Coronel Richard Swain, oficial de artilharia aposentado do Exército Americano (U.S ARMY), em sua obra as Obrigações da Forças Armadas, entende que:

Quando homens e mulheres se juntam às forças armadas, concordam voluntariamente em subordinar suas ações para o bem maior de proteger interesses nacionais vitais. Eles podem ser "cidadãos em primeiro lugar, mas eles também são soldados, marinheiros, aviadores, fuzileiros navais e guardas costeiros por juramento”. Como tal, eles desistem voluntariamente de certas liberdades que seus pares civis desfrutam. Entre estes é a liberdade total de discurso. Isto não quer dizer que os líderes militares não dão conselhos cândidos em assuntos autoridade quando apropriado. Pelo contrário, significa que eles limitam seu discurso público por respeito a disciplina do serviço e a obrigação de subordinação voluntária à autoridade legal. este não é uma liberdade tomada, mas uma renunciada em parte, voluntariamente, pelo bem da nação. (SWAIN, 2010, p. 10).

Para o Militar Americano, a liberdade de expressão seria limitada para os militares, em seu entendimento, abririam mão desse direito em prol de um bem maior, no caso a pátria amada e que ainda que todos os militares sejam acima de tudo cidadãos, são também soldados, fuzileiros, marinheiros e aviadores e isto deve falar mais alto. Contudo, em um entendimento mais racional; fundado na jurisprudência; não se pode punir toda e qualquer manifestação de opinião do Militar somente com base em uma suposta proteção da hierarquia e disciplina, já que assim abriria-se um campo gigantesco de discricionariedade para as autoridades políticas punirem os Militares conforme seus próprios interesses, o que não se coaduna com uma República Democrática, já que a tipicidade in casu não pode ser vista meramente no seu aspecto formal, mas sim de forma conglobada com todo o ordenamento jurídico, conforme o conceito de tipicidade conglobante proposto por Zaffaroni, o qual entende que:

O juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que á a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. (ZAFFARONI, 1997, p.461).

Os militares são, acima de tudo, cidadãos brasileiros, com plenos direitos e deveres regidos por normas próprias que não podem violar a Constituição Federal de 1988. Assim entendendo, o artigo 166 do CPM, de 1969, não deveria ter sido recepcionado pela Carta Maior da República. Esse dispositivo do CPM, serve apenas para dar guarida a abusos de superiores e impedem a transparência nas ações militares, ainda que Liberdade de Expressão não seja absoluta, não há qualquer necessidade do controverso dispositivo no Código Penal Militar, por ser demasiado excessivo. Pois uma mera publicação em um “blog” ou página da internet por um militar, acarreta muitas vezes sua prisão, o que é algo surreal, já que o direito penal é a ultima ratio só devendo intervir em último caso quando estritamente necessário, contudo é aplicado indiscriminadamente e em ofensa direta a Constituição da República. Nesse sentido dispõe Cesari Beccaria: 

Somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; (...) A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento de punir. Todo exercício do poder que esse fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo (BECCARIA, 2003. p. 19).

Portanto como se observa, no direito militar, todos aqueles princípios, constitucionais, norteadores da pena ou do processo penal comum, exaustivamente debatidos por grandes autores como Raul Eugênio Zaffaroni, basicamente não tem aplicação ou tem uma aplicação muito restrita na seara militar, afetando diretamente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Os militares, diferente dos civis, podem ser presos sem qualquer ordem judicial, em clara ofensa ao princípio da Legalidade, e por consequência da utima ratio do Direito Penal, trata-se da possibilidade da prisão provisória, que pode ser realizada pelo encarregado do Inquérito Policial Militar (IPM), independente de flagrante delito ou de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, únicas hipóteses em que é possível tolher o status libertatis de um cidadão civil comum. Tal previsão consta expressamente na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXI, o qual dispõe: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Ainda de acordo com Código de Processo Penal Militar, no artigo 18, o qual está previsto que: 

Independentemente de flagrante delito, o indiciado poderá ficar detido, durante as investigações policiais, até trinta dias, comunicando-se a detenção à autoridade judiciária competente. Esse prazo ainda pode ser prorrogado, por mais vinte dias, pelo comandante da Região, Distrito Naval ou Zona Aérea, mediante solicitação fundamentada do encarregado do inquérito e por via hierárquica (BRASIL, 1969).

Isto é, a própria Constituição Federal excepciona um direito fundamental para os militares, qual seja, a liberdade. Parte da doutrina Penalista Militar entende que no atual Estado de Direito tal prorrogação deve ser solicitada ao juiz militar competente. Pela leitura literal do dispositivo, é possível essa prisão para qualquer crime militar, mas entende a doutrina, acompanhada da jurisprudência, que o dispositivo foi recepcionado apenas em parte, só sendo cabível para crimes propriamente militares, isto é, aqueles crimes que só podem ser praticados por militar e que estão previstos no CPM. 

Para ampliar o abismo no exercício do jus puniendi Estatal entre Militares e Civis , foi editada a Lei 13.491/17, que alterou o parágrafo 2º, do Art. 9º do CPM, prevendo que os crimes dolosos contra a vida de civil, praticados por militar, passam a ser competência da Justiça Militar da União, conforme dispositivo abaixo:

§ 2º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais...

Na teoria, o artigo estabelece que a competência da JMU para julgar crimes dolosos contra a vida de civil é uma exceção, sendo a regra o julgamento na justiça comum, ocorre que são tantas as exceções que basicamente sempre que o crime for praticado em serviço ou em razão deste a competência será da justiça militar. Recentemente no Rio de Janeiro, doze militares do exército foram presos em flagrante por efetuarem diversos disparos contra um veículo civil de uma família, matando uma pessoa, em uma operação de garantia da lei e ordem (GLO). Trata-se da primeira aplicação da Lei 13.491/17 que teve a denúncia recebida pela Juíza Federal Militar Mariana Queiroz Aquino Campos, após manifestação do Ministério Público Militar, com base no Auto de Prisão em Flagrante Nº 7000461-63.2019.7.01.0001.

Quando da publicação da lei 13.491/17 houve praticamente uma “guerra” entre os doutrinadores, com alegações de que os Militares estariam sendo beneficiados com o alargamento da competência da Justiça Militar, uma vez que seriam julgados pelos seus próprios colegas, aumentando a sensação de corporativismo e impunidade, principalmente em crimes como Abuso de Autoridade, no qual há uma valoração diferenciada para civis e militares. Aury Lopes Júnior entende que:

Foi com bastante perplexidade que a comunidade jurídica recebeu a Lei 13.491/2017, recentemente sancionada e que amplia a competência da Justiça Militar Federal e, como veremos, também da Justiça Militar estadual. Indo de encontro a toda uma tendência de esvaziamento da jurisdição militar (inclusive, em muitos estados, é recorrente a polêmica sobre a extinção da Justiça Militar estadual) para que ela se ocupe apenas daqueles crimes em que existe uma real afetação do interesse militar. Há décadas a jurisprudência consagrou que não basta ser crime militar, praticado por militar e em alguma das situações do artigo  do CPM, é preciso que exista a "efetiva violação de dever militar ou afetação direta de bens jurídicos das forças armadas.(disponível em: www.conjur.com.br/2017-out-20/limite-penal-lei-134912017-fez-retirar-militares-tribunal-juri. (Acesso em 11/08/2019).

Entende o autor que, a novel lei representa um retrocesso, já que a tradição do Brasil sempre foi de esvaziar a competência da justiça militar, acompanhando a tendência mundial de deixar justiça militar julgar somente militares por crimes propriamente militares, e no entanto, agora, houve um alargamento desproporcional da competência da Justiça Castrense, o que será muito conturbado, pois, a lei processual penal tem aplicação imediata, isto é, todos os processos que tramitavam na justiça comum tiveram que ser remetidos para a Justiça Militar, tanto no âmbito federal quanto no âmbito estadual, além dos inquéritos policiais em andamento que tiveram que ser remetidos para a autoridade policial militar, já que agora não cabe as polícias civis e federal investigar os crimes militares por extensão.

Contudo é difícil dizer que a lei 13.491/17 beneficiou os militares, isso porque o CPM é insanamente mais rígido que o código penal comum, além disso na Justiça Militar o julgamento é realizado por um escabinato, isto é, um Juiz civil de carreira da magistratura e por quatro oficiais de carreira militar sem qualquer conhecimento jurídico, sendo que a presidência do órgão cabia ao oficial militar mais antigo na seara federal, previsão que foi alterada com a edição da Lei 13.774/18.

O órgão jurisdicional da JMU é chamado de conselho especial, quando o réu é oficial e conselho permanente quando o réu é praça, tendo todos os componentes dos conselhos o mesmo peso do voto, julgando apenas com base em suas convicções militarizadas, sem conhecer os princípios gerais do direito, como o princípio da dignidade da pessoa humana, intervenção mínima e das implicações do nemo tenetur se detegere, dentre outros.

A carga de trabalho da Justiça Militar é muito inferior a demanda da justiça comum, que leva anos para julgar um crime de furto simples, por exemplo, e quando finalmente consegue julgar, muitas vezes o crime já prescreveu. Na Justiça Militar isso não ocorre, os processos são céleres e eficazes e, em regra, é impossível o acusado se beneficiar da prescrição, o que ocorria nos crimes de Abuso de Autoridade praticados por policiais e que agora passam a ser competência da Justiça castrense, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina: 

APELAÇÃO CRIMINAL - IMPUTAÇÃO DE PRÁTICA DE ABUSO DE AUTORIDADE POR POLICIAIS MILITARES EM CONCURSO COM LESÃO CORPORAL - DECISÃO QUE RECONHECE A ABSORÇÃO DO ABUSO DE AUTORIDADE PELA LESÃO CORPORAL PREVISTA NO CÓDIGO PENAL MILITAR (ART. 209), DECLINANDO A COMPETÊNCIA À JUSTIÇA MILITAR - RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO VISANDO O PROCESSAMENTO DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE NA JUSTIÇA COMUM - SUPERVENIENTE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA QUANTO À COMPETÊNCIA FIXADA NO CÓDIGO PENAL MILITAR (Lei n.º 13.491/2017, de 13/10/2017)- EVENTUAL CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE É ENQUADRADO COMO CRIME MILITAR QUANDO PRATICADO POR POLICIAL MILITAR EM SERVIÇO E CONTRA CIVIL - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. (TJ-SC - APL: 00162332020148240008 Blumenau 0016233- 20.2014.8.24.0008, Relator: Jeferson Isidoro Mafra, Data de Julgamento: 27/08/2018, Segunda Turma de Recursos - Blumenau) 

A Lei de Abuso de Autoridade foi editada em 9 de dezembro de 1965, em pleno regime militar, época considerada por alguns doutrinadores como um período sombrio pelo qual o Brasil passou, sendo comuns os assassinatos e sequestros por motivações políticas, sobretudo por agentes do Estado, o que gerava diversos conflitos socias e até tentativas de revoluções nas ruas das grandes cidades brasileiras.

A fim de dar um respaldo, uma resposta para a sociedade, os militares editaram a famosíssima Lei nº 4.898/65 com o único objetivo de punir agentes públicos que abusassem de seu poder, de sua autoridade. A Lei tem como fim proteger direitos coletivos e individuais. O professor Antônio Cezar Lima da Fonseca (FONSECA,1997, p.87) entende que:

Há uma objetividade jurídica mediata, que é ligada ao regular funcionamento da administração. Como referiu Damásio de Jesus, é o interesse concernente a normal funcionamento da administração pública em sentido amplo, no que se refere à conveniência de garantia do exercício da função pública sem abuso de autoridade.

Haveria dessa forma dois bens jurídicos tutelados por essa lei: os bens jurídicos coletivos e individuais e a regular prestação dos serviços públicos, evitando que agentes públicos excedam seus poderes ou abusem deles. A Lei de Abuso de autoridade, foi editada em pleno Regime Militar e, em que pese, possa ser aplicada a qualquer agente público, conforme artigo 5º da referida lei, o que se observa na prática, entretanto, é sua aplicação voltada prioritariamente para os Militares, principalmente os Policiais, que são punidos com base no artigo 3º: 

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio;c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença;e) ao livre exercício do culto religioso;f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião;i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. (Incluído pela Lei nº 6.657,de 05/06/79) 

Como se observa, o diploma traz crimes dolosos, isto é, não existe crime de abuso de autoridade na modalidade culposa, deve haver vontade do agente em praticar o crime. O dolo pode ser entendido, pela teoria finalista de Hans Welsen, como a intenção de cometer um crime, contudo no caso dos crimes de abuso de autoridade praticados por militares, é difícil visualizar essa intenção dirigida a uma finalidade de cometer um crime abuso de autoridade, uma vez que, geralmente, os militares estão no cumprimento do dever, se excedendo muitas vezes por estrita necessidade ou por forte emoção. Além disso, boa parte da Doutrina considera esse artigo inconstitucional, por ferir o princípio da legalidade, mais precisamente da taxatividade, conforme dispõe o professor Fernando Capez:

Sendo que se considerarmos o princípio da legalidade, previsto na Constituição Federal, seria duvidosa a constitucionalidade desse artigo, pois o princípio da reserva legal impõe que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica.(CAPEZ, 2011, p. 25).

O princípio da Taxatividade dispõe que a lei deve especificar exatamente qual conduta configura o tipo penal, o que não ocorre no artigo sob análise. Como se nota, a lei diz qualquer atentado, o que gera uma imprecisão infinita, já que, simplesmente, qualquer conduta do Militar, como uma simples abordagem de trânsito pode configurar o crime de atentado à liberdade de locomoção, por exemplo, e terá penas severíssimas, desproporcionais as condutas praticadas, o que vai de encontro a diversos princípios do Direito penal, como o princípio da ultima ratio, subsidiariedade, dentre outros. 

O fato de a lei não descrever minuciosamente qual  conduta deve ser considerada crime, aumenta perigosamente o campo de discricionariedade tanto do Juiz quanto do Promotor de Justiça, que poderão decidir de forma arbitrária, quando e quem praticou crime, muitas vezes com base em subjetivismos, ou simplesmente por não gostar da polícia. No mesmo sentido dispõe Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2006, p. 34), ao dizer que: “artigo 3º ofende ao princípio da taxatividade, pois não descreve, convenientemente, as condutas típicas. Há dificuldades em definir: “o qualquer atentado” e quando esse “atentado” se “iniciaria”. Se a lei não for taxativa, não há como o cidadão fardado saber o que é ou não crime. Contudo nunca foi declarada a inconstitucionalidade desta lei, prevalecendo o entendimento na doutrina e na jurisprudência de que o artigo 3º da Lei 4898/65 é constitucional, porque, em tese, não haveria como o legislador prever todas as condutas possíveis, ou todas as formas possíveis de que o agente poderia praticar o crime.

A Lei 4.898/65 tem sanções rigorosíssimas, punindo o militar nas esferas penal, civil e administrativa, com penas como: Detenção, perda da função, demissão, inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de um até três anos, suspensão para trabalhar no município da culpa pelo prazo de 1 a 5 anos, além das penas de multa. Ainda conforme o artigo 6º parágrafo 4º da lei de Abuso de Autoridade, as sanções penais, civis e administrativas podem ser aplicadas cumulativamente, aumentando exponencialmente a gravidade da punição, ainda que a pena restritiva de liberdade seja pequena- detenção de dez dias a seis meses. 

A lei de Abuso de Autoridade, que já era extremamente rigorosa, se tornou com a lei 13.491/17, ainda mais rígida, já que aos militares não se aplica a Lei 9.099/95, conforme entendimento do STF, que traz diversos institutos descarcerizadores, como suspenção condicional do processo, transação penal, dentre outros. Se um civil comum agredir uma pessoa, ad exemplum, causando-lhe lesões leves, certamente nem responderá ao processo, conforme a lei 9099/95 do JECRIM, contudo se o mesmo crime for praticado por um Militar, no exercício da função, ele poderá, além de ser preso, pagar multa e até mesmo ser excluído da instituição, o que é uma grande disparidade de punição para o mesmo crime praticado, sem falar que em regra o direito penal pune o crime doloso, enquanto que o culposo, somente se estiver expresso na lei, o que não ocorre na Lei 4.898/95.

Por tudo isso, pode-se afirmar que a Lei de Abuso de Autoridade é Inconstitucional, por evidente ofensa aos princípios: da taxatividade, já que a lei não descreve qual conduta é crime; da proporcionalidade, já que o militar poderá perder para sempre o seu cargo; da isonomia, uma vez que a lei pune de forma totalmente distinta pelo mesmo crime os militares em relação aos civis. Ademais, a lei de abuso de autoridade é uma expressão do direito penal do inimigo, já que pune o agente sem sequer haver dolo, isto é, intenção de praticar o crime.

3 CONCLUSÃO

Com base no exposto, pode-se afirmar com segurança que sempre houve uma grande disparidade no tratamento que lei penal faz entre civis e militares, o que se acentuou severamente com a edição da 13.491/17, trazendo a competência para a justiça militar de praticamente todos os crimes praticados por militares e afastando diversos institutos democráticos e alinhados aos preceitos de direito internacional, uma vez que o julgamento de crimes pela Justiça Militar, tanto estadual quanto federal, é muito mais severo, ainda que o militar seja julgado por seus pares, já que o militar não terá qualquer benefício despenalizador, como transação penal, suspensão condicional do processo, não conseguirá o benefício da prescrição e em regra não será aplicável o princípio da insignificância.

Soma-se a tudo isso, o tradicional rigor militar, já que os Militares possuem, em regra, um código de ética muito forte, pautado na hierarquia, disciplina e no dever acima de tudo. Se houvesse corporativismo nas instituições militares, os regulamentos disciplinares não seriam tão rígidos e eficazes, seriam, ao contrário, uma forma de impedir a ação punitiva, assim como ocorre com os parlamentares federais e estaduais, que possuem uma infinita gama de leis, chamadas de garantias funcionais, que na prática vedam o exercício do jus puniendi estatal, como por exemplo a necessária manifestação da casa legislativa quando da prisão de parlamentar federal. Nas Forças Armadas, ao contrário, muitas vezes o militar e absolvido na Justiça Militar e punido na esfera administrativa, o que demonstra o compromisso dos militares com a correção de seus atos.

Por isso pode-se afirmar que os militares não possuem qualquer benefício, prerrogativa ou ainda foro especial em relação aos civis, ao contrário, estão um degrau abaixo, quando o assunto é direitos humanos, havendo um abismo entre os direitos usufruídos pelos civis e os direitos dos militares,isto é, há evidentemente uma disparidade na aplicação da lei penal para civis e militares, no entanto não há uma superioridade dos militares em relação aos civis, mas sim inferioridade e relegados a segundo plano, sem direitos e esquecidos pelo legislador, pelos aplicadores da lei e até mesmo pela sociedade, o que é insustentável em uma Estado de Direito, pois acima de tudo todos os militares são cidadãos brasileiros e por baixo das fardas há pais, mães, filhos, irmãos, seres humanos como eu e como você.

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4 REFERÊNCIAS 

LEGISLAÇÃO:

BRASIL. DECRETO-LEI Nº 1.001, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11/08/2019.

BRASIL. Constituição da República de Federativa do Brasil (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11/08/2019.

 BRASIL. DECRETO-LEI Nº 10002, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br >. Acesso em: 11/04/2019.

BRASIL. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br >. Acesso em: 11/04/2019.

BRASIL. Lei nº 4.898, de 9 de Dezembro de 1965.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br >. Acesso em: 12/008/2019.

ARTIGOS EM REVISTAS:

BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002.)

OBRAS COM TÍTULO E SUBTÍTULO:

CAPEZ, Fernando. Legislação Penal Especial, 6ª Ed, São Paulo: Ed. Saraiva, 2011.

CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal- Parte Geral. Tomo 12. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. Ed. Brasília Jurídica. Brasília, 1999.

LOPES JUNIOR. Aury Lopes Jr. Limite penal: lei 13.491/17. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2017-out-20/limite-penal-lei-134912017-fez-retirar-militares-tribunal-juri?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook. Aceso em: 25 out. 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18 ed., São Paulo: Atlas, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais comentadas, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006.

CAPEZ, Fernando. Legislação Penal Especial, 6ª Ed, São Paulo: Ed. Saraiva, 2011.

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LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. Ed. Brasília Jurídica. Brasília, 1999.

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18 ed., São Paulo: Atlas, 2005.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 3. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

SWAIN,Richard.The Obligations of MilitaryProfessionalism “Service Unsuellid by Partisanship. Col USA. December, 2010.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito penal Brasileiro. Parte Geral. Editora: Revista dos Tribunais, 1997.

Sobre o autor
Dhionatan Henrique da Cunha

Militar Estadual e acadêmico da faculdade IMED.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente artigo tem como objetivo desmitificar conceitos equivocados quanto ao Direito Militar, como por exemplo, alegações de que o direito castrense é benéfico aos militares, ou que é uma forma de impunidade. Como demonstrado no artigo, a aplicação da lei penal para militares é infinitamente mais severa. Além disso, tem como objetivo apresentar a matéria direito militar, já que para muitos é um campo totalmente desconhecido.

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