FLEXIBILIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE COMO MECANISMO DE PUNIÇÃO AO AGENTE DE ATO ILÍCITO DOLOSO

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29/08/2019 às 12:05
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O presente artigo científico, objetiva discutir a possibilidade de flexibilização da impenhorabilidade de bens, nos casos em que a dívida, seja consequência de ato ilícito praticado pelo devedor.

INTRODUÇÃO

O atual arcabouço legislativo do direito civil, material e processual, tem se mostrado insuficiente para reger de forma justa as relações obrigacionais entre credores e devedores.

Há uma cultura do mau pagador que se instalou no país e que caminha de mãos dadas com as condutas de má-fé advindas de diversos devedores, tanto na condição de contratates, quanto na condição de executados.

No cotidiano forense, é possível se observar a dificuldade enfrentada pelo credor na busca pelo pagamento, o que por vezes nos faz reflerir sobre as origens de tal injusto.

Questiona-se, se as proteções dadas pela lei aos devedores, especialmente a que torna impenhoráveis seus principais bens, não seriam um incentivo ao inadimplemento, à má fé, e à impunidade.

Ainda que haja diversos indícios fáticos que apontem para existência dessa relação injusta entre exequente e executado, não se pode ignorar, os direitos fundamentais dos devedores, sobretudo o direito ao mínimo existencial.

 Portanto, para que não prospere a mera opinião, investigaremos de forma científica, e refletiremos sobre qual a origem, e quais as possíveis soluções para a atual problemática do inadimplemento frente à impenhorabilidade.

Em razão de imbróglios políticos, se tem hoje, uma legislação estagnada e visando avançar, ainda que a passos curtos, traremos embasamento para uma possível alteração legal, nos casos em que, pela legislação atual, se perceba maior injustiça.

  1. DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

 

 

A problemática da impenhorabilidade está vinculada a diversos ramos do direito, especialmente o direito civil processual e material, e o direito constitucional, com seu rol de princípios e garantias.

Ao tratar deste tema de tamanha complexidade, importa esclarecer o caminho jurídico percorrido por credor e devedor, desde o surgimento da obrigação até o momento da penhora dos bens, e para tanto, insta pontuar os conceitos de obrigação, pagamento, inadimplemento, execução forçada, e penhora.

  1. Das obrigações e do pagamento

 

Inicialmente, apreciaremos as obrigações civis, haja vista que com elas, nascem os créditos judicialmente exigíveis.

Nas palavras do ilustre doutrinador Orlando Gomes, a relação obrigacional “[..] é um vínculo jurídico entre duas partes, em virtude do qual uma delas fica adstrita a satisfazer uma prestação patrimonial de interesse da outra, que pode exigi-la, se não for cumprida espontaneamente, mediante agressão ao patrimônio do devedor”.[1]

A brilhante definição doutrinária, sintetiza bem a essência das obrigações civis, que se baseiam na relação jurídica existente entre credor e devedor em torno de um objeto (crédito/prestação) a ser prestado pelo devedor em benefício do credor. Evidente que no contexto fático, as obrigações, em sua maioria, nascem sujeitas a uma contraprestação do credor. E sendo assim, no tocante a esta contraprestação, as figuras de credor e devedor se invertem.

As obrigações podem surgir da vontade da lei, ou da vontade das partes, e em ambos os casos, possuem a substancial característica da exigibilidade. Paulo Nader em sua obra Curso de Direito Civil - vol. 2, expõe de forma didática, no que consiste a exigibilidade das obrigações jurídicas, vez que elas se diferem das obrigações morais. Vejamos:

As obrigações jurídicas são exigíveis, diferentemente das situadas fora do território do Direito. Diante da inadimplência, o credor pode recorrer ao judiciário para lograr a efetividade de seu direito subjetivo. As obrigações morais e as de trato social não oferecem instância para reclamações, nem meios materiais para a imposição de seu cumprimento. Enquanto a sanção jurídica pode ser de natureza pecuniáriaprivativa de liberdadede suspensão de direitos, entre outras modalidades, as não jurídicas são difusas e têm o poder apenas de constranger moralmente seus infratores.[2] (Grifo nosso)

Ademais, importa ressaltar, que as obrigações pactuadas, ou seja, aquelas oriundas da vontade das partes, são especialmente orientadas por um arcabouço de preceitos morais e filosóficos, tais como a boa fé, a eticidade, a probidade e a lealdade, essenciais para harmônica convivência social.

O Código Civil se preocupou, inclusive em positivar alguns destes princípios, dando a eles um peso ainda maior, vejamos:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.[3]

 Deste modo, conforme bem ensina a doutrina, o indivíduo, ao contratar com outrem, deve abdicar-se de qualquer objetivo espúrio, e reger-se pela boa-fé para que efetivamente cumpra com o acordado, desde o surgimento até a quitação da obrigação. Paulo Nader preceitua:

Ao cumprir a obrigação, impõe-se ao reus debendi a observância dos postulados da lealdade. A exigência recai na conduta e não no animus do devedor. Embora sem este a probidade não prevaleça nas ações, o moderno Direito das Obrigações tem as suas atenções voltadas para a boa-fé objetiva.[4]

Sendo assim, ao contratar, deve-se agir de acordo com o comportamento esperado socialmente, de modo a evitar frustrações capazes de gerar lides.

No que se refere à classificação das obrigações, temos os critérios que a dividem em obrigação de dar coisa certa, de dar coisa incerta, de fazer, e ainda, de não fazer. Além disso, classificam-se em divisíveis, indivisíveis, alternativas, e solidárias, o que não será abordado aqui, com afinco, em razão da indiferença para o específico tema da impenhorabilidade.

Oportuno salientar, que as obrigações, sejam elas, advindas da literalidade da lei, de contrato, ou mesmo de sentença judicial condenatória, se extinguem pelo pagamento, que ocorre de maneira voluntária ou forçada, conforme narra o Código Civil. Flávio Tartuce, em sua obra “Direito das obrigações e Responsabilidade civil”, preceitua: 

A principal e corriqueira forma de extinção das obrigações ocorre pelo pagamento direto, expressão sinônima de solução, cumprimento, adimplemento, implemento ou satisfação obrigacional. Por meio desse instituto, tem-se a liberação total do devedor em relação ao vínculo obrigacional. Quando se estuda o contrato é comum apontar como sendo a principal forma de sua extinção o cumprimento (extinção normal), que se dá justamente pelo pagamento.[5]

Por essa razão, o Código Civil traz uma enorme gama de artigos que se referem ao pagamento e à quitação. Na tentativa de normatizar todas as possíveis situações jurídicas, o ordenamento trouxe de forma detalhada as regras aplicáveis a este instituto.

Logo, por ser longa a matéria e por não ser nosso objetivo esgotá-la, faremos aqui, apenas uma breve menção aos artigos, que em sua literalidade, já são capazes de demonstrar as regras básicas e fundamentais do pagamento.  

Primeiramente, no tocante “a quem se deve pagar”, destacamos que:

Art. 308. O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito.[6]

Art. 311. Considera-se autorizado a receber o pagamento o portador da quitação, salvo se as circunstâncias contrariarem a presunção daí resultante.[7]

Quanto ao momento do pagamento, destaca-se:

Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subseqüentes.[8]

Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente.

Por fim, quanto ao local do pagamento, lemos:

Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias.

Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher obrigacionais pa, e assim sendo, o Estado se limita a criar normas gerais, cabendo a cada contratante criar as normas específicas do negócio jurídico.

No que tange ao crédito da obrigação, ou seja, ao objeto a ser pago, insta mencionar que possui natureza jurídica patrimonial, podendo ser transferido de forma onerosa ou gratuita, em negócio inter vivos ou causa mortis. A doutrina destaca:

Se a obrigação é um valor que integra o patrimônio do credor, poderá ser objeto de transmissão, da mesma forma que os demais direitos patrimoniais e, portanto, pode-se aceitar com certa facilidade a possibilidade de uma substituição na pessoa do credor em face da cessão do crédito.

[...]

O direito moderno admite, sem qualquer dificuldade, a livre transferência das obrigações, quer quanto ao lado ativo, quer quanto ao lado passivo.

[...]

Ora, é próprio dos direitos patrimoniais a transmissibilidade. Se o crédito representa um valor patrimonial, assim reconhecido pelo ordenamento jurídico, é evidente que pode ser objeto do comércio jurídico, do mesmo modo que outros bens integrantes do patrimônio do sujeito, que lhe pertençam por direito real. [9]

Apesar da obrigação civil, ter como fito o pagamento, pelas mais variadas razões, as pessoas deixam de fazê-lo de forma voluntária, e nesse ponto, o Estado, exercendo o seu poder-dever jurisdicional, tutela os direitos do ofendido, nos moldes do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;[10]

Deste modo, analisaremos o instituto do inadimplemento e os seus efeitos no mundo jurídico.

  1. Do Inadimplemento e seus prejuízos

Em seu sentido amplo, o inadimplemento é definido como “ação ou efeito de inadimplir; descumprimento de um contrato ou de qualquer uma de suas condições; ”[11]. Juridicamente, tal instituto divide-se em inadimplemento parcial (mora) e inadimplemento absoluto (inadimplemento em sentido estrito).

Enquanto a mora é caracterizada por um atraso no cumprimento da obrigação, o inadimplemento stricto sensu (absoluto) se caracteriza pelo seu descumprimento total. Nas hipóteses em que a obrigação pode ser cumprida, mesmo após o vencimento, o credor tem a discricionariedade de pleitear seu cumprimento pela via judicial, no valor estipulado inicialmente, acrescido das perdas e danos. Lado outro, nas situações em que se torna impossível o cumprimento posterior, ocorre a conversão total do objeto em perdas e danos, de tal modo que, por exemplo, as prestações de serviços se tornem resolúveis pecuniariamente.

O inadimplemento é um fator que afeta diretamente a economia nacional, e apesar de possuirmos mecanismos legais que possibilitem o pagamento forçado, há uma ineficiência do Estado em mitigar este fenômeno.

Conforme os dados do Serasa Experia[12], existem hoje no Brasil, 61,8 milhões de inadimplentes, número muito superior ao dos anos anteriores. Apesar de alarmante, esse dado ainda é incapaz de revelar o número de obrigações efetivamente descumpridas, tendo em vista que analisa apenas as relações consumeristas, deixando de lado as relações obrigacionais meramente civis.

Destaca-se que, o inadimplemento afeta diretamente o credor, mas acima disso, afeta, de forma indireta, toda a circulação de renda do país. A cadeia de produção fica prejudicada, em virtude do atraso no retorno financeiro, e consequentemente, os custos desse atraso se repassam para a sociedade como um todo.[13]

Do mesmo modo, as instituições financeiras, que em razão do inadimplemento passam a ter maior risco de prejuízo econômico, para compensar, aumentam os juros do empréstimo de dinheiro.

Além disso, há uma requisição do próprio mercado, por bens garantia cada vez mais valiosos. Nas grandes cidades do país, por exemplo, se percebe, a dificuldade na locação de imóveis, em razão da enorme exigência de garantia feita pelas imobiliárias.

Frisa-se que as razões para o inadimplemento são diversas, o desemprego, a crise econômica, os infortúnios pessoais, e o consumo irresponsável são algumas delas. Todavia, existem indicadores de que pode trata-se de uma questão cultural do nosso país.

Por óbvio, não existem mecanismos de punição criminal para quem deixa de quitar suas dívidas, entretanto, seria razoável que a sociedade, sabendo do prejuízo coletivo causado pelo inadimplemento, repudiasse tal conduta, o que por vezes não ocorre.

Observamos que muitas pessoas se orgulham por saírem ilesas de uma execução civil, por terem logrado êxito ao esconder um bem indicado à penhora, ou mesmo por terem tido “sucesso” no cometimento de fraude contra credores. Tal postura contraria radicalmente os princípios da eticidade e da boa-fé.

Um exemplo alarmante de uma atitude de má-fé encontra-se em um caso, que chegou recentemente ao STJ e que retrata bem o tipo de comportamento de alguns executados. Trata-se de um devedor que ao contrair uma obrigação, deu seu imóvel residencial como garantia, e depois, quando executado, ao ver este mesmo bem indicado à penhora, alegou sua impenhorabilidade, argumentando ser bem de família.

A questão foi bastante controversa, mas o Ministro João Otávio de Noronha, de forma brilhante, pontuou:

“[...] Essa conduta antiética deve ser coibida, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário, que validou o acordo celebrado. Se, por um lado, é verdade que a Lei n. 8.009/1990 veio para proteger o núcleo familiar, resguardando-lhe a moradia, não é menos correto afirmar que aquele diploma legal não pretendeu estimular o comportamento dissimulado, a chicana, as manobras capciosas, enfim.

EMENTA DO JULGADO: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. LEI N. 8.009/1990. BEM DE FAMÍLIA. ACORDO HOMOLOGADO JUDICIALMENTE. DESCUMPRIMENTO. PENHORA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE BOA-FÉ. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inclinou-se no sentido de que o bem de família é impenhorável, mesmo quando indicado à constrição pelo devedor. 2. No entanto, verificado que as partes, mediante acordo homologado judicialmente, pactuaram o oferecimento do imóvel residencial dos executados em penhora, não se pode permitir, em razão da boa-fé que deve reger as relações jurídicas, a desconstituição da penhora, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário. 3. Recurso especial a que se nega provimento. ”[14] (Grifo nosso)

Independentemente do mérito do caso concreto citado, notável o absurdo de alguém, que ao realizar um negócio jurídico de forma livre e consciente, dê um bem em garantia, e depois, quando executado, alegue a impenhorabilidade do mesmo bem. Tal fato evidencia a má-fé encontrada nas relações obrigacionais no Brasil, e demonstra um vazio normativo capaz de penalizar devedores que agem má fé.

Dito isso, há de se mencionar que o judiciário também sofre consequências negativas dessa “cultura do inadimplemento” instaurada no país. A demanda dos processos de execução, aumenta periodicamente, e além disso, conforme narra o Conselho Nacional de Justiça, a “Execução judicial demora três vezes mais do que o julgamento”[15] e a “Fase de execução é a que mais aumenta tempo de tramitação de processos”[16].

É benéfico para toda a sociedade que os devedores paguem seus débitos, e sendo assim, há um interesse geral no cumprimento, ainda que forçado, da obrigação. Portanto, a questão da impenhorabilidade dos bens deve ser vista sob a ótica do interesse público e não do mero interesse do credor.

Além do mais, inadmissível que uma proteção dada pelo ordenamento se desvirtue, tornando-so mero mecanismo de impunidade para os devedores, especialmente aqueles que agem de má-fé, Priscila Ramos de M. R. Agnello, salienta:

“[...] não é justo que o credor que deu ensejo a uma ação de execução não receba da justiça uma efetiva prestação jurisdicional, em função das normas não corresponderem com a realidade das execuções no nosso país, protegendo devedores e favorecendo o crescimento das fraudes contra credores e à execução. ”[17]

Superado esse ponto, importa reiterar, que o pagamento é a finalidade precípua das obrigações, e sendo assim, pode ser pleiteado pelo credor pela via judicial, inclusive sujeitando o devedor à perda de patrimônio, através da execução civil.

Sobre esse tema, interessa frisar que, olhando por uma esfera macro, para além do direito, nos deparamos com a questão sociológica, quiçá filosófica, da responsabilidade.

Todo ordenamento jurídico está direcionado a responsabilizar pessoas por seus atos, a fim de que cada um possa ser capaz de sustentar de sua própria existência, sem prejudicar a existência alheia, isto é, que ninguém venha se beneficiar ao prejudicar outrem.

De modo simplista, o que temos nas obrigações é a convergência de interesses de dois (ou mais) indivíduos que pretendem beneficiar, cada um a si mesmo, e por isso, se dispõe a assumir um compromisso (obrigação). Todavia, por uma questão natural, egoística, os seres humanos tendem a ter maior prazer em receber créditos, do que pagá-los, motivo pelo qual, o Estado, pelo caminho legislativo, criou mecanismos para responsabilizar os devedores, qual seja, a detenção de seu patrimônio.

O Código de Processo Civil, em seu artigo 789, prevê a responsabilidade patrimonial do devedor, afirmando:

Art. 789.  O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.[18]

Diferentemente das épocas mais primitivas, em que a cobrança de dívidas recaia sobre a pessoa do devedor, que poderia responder com seu corpo ou mesmo com sua liberdade, atualmente as dívidas recaem unicamente sobre o patrimônio, salvo o caso de prisão por dívida alimentícia. Nas palavras de Olavo de Oliveira Neto:

Sendo a nossa execução eminentemente patrimonial, sem a possibilidade de execução pessoal, que foi abandonada a partir da segunda fase da execução romana, não é possível que a atividade executiva venha a atingir a pessoa do devedor. Entretanto, como acontece no caso das obrigações de fazer e não fazer (Art. 461) e das obrigações de dar coisa certa e incerta (Art. 461-A), seria possível conceber outras medidas de execução indireta com a finalidade de obter a satisfação da obrigação. Estabelecer algumas formas de restrição na esfera dos direitos do devedor, como a suspensão de licença para dirigir veículos automotores, em nosso entender, tornaria bem mais eficaz a atividade executiva.[19] (Grifo nosso)

O ilustre jurista, não é o único a sugerir a criação de novas formas de penalização do devedor. Felipe Santos Vieira narra:

Que a visão patrimonialista do procedimento executivo é a correta não existe dúvida, sobretudo porque utilização de sevícias ao devedor ou o retorno a fase da autotutela não é garantia de efetividade, muito pelo contrário. No entanto, métodos de coação ao próprio patrimônio do devedor, ou mesmo cessação temporária de alguns direitos, tais como promover transações bancárias, adquirir bens móveis ou imóveis, etc. seriam de grande valia a fim de obrigar os devedores a cumprir o determinado pelo Poder Judiciário, sob pena de se prejudicarem sobremaneira, especialmente no que tange a Empresas que precisam de capital para elaboração de transações comerciais.  [20]

Atualmente, já existem teses e julgados que defendem a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, como uma modalidade atípica de execução civil, como forma de penalizar devedores,. A exemplo, temos a decisão monocrática da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Maria Isabel Gallotti, que entendeu não haver qualquer ilegalidade na medida:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - HABEAS CORPUS - EXECUÇÃO - ESGOTAMENTO DAS MEDIDAS EXECUTIVAS TÍPICAS - ALTO PADRÃO DE VIDA DO EXECUTADO - ADOÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS - ART. 139, IV, CPC - SUSPENSÃO DA CNH - POSSIBILIDADE - APREENSÃO DO PASSAPORTE - VIOLAÇÃO AO DIREITO CONSTITUCIONAL DE LOCOMOÇÃO - ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1- O art. 139, IV, do CPC autoriza a adoção, pelo Magistrado, das denominadas medidas executivas atípicas, a fim de que este possa determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias ao cumprimento da ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. Contudo, a alternativa processual deve ser precedida do esgotamento de todas as demais medidas típicas tomadas em execução. 2 - Nos autos de origem, todas as medidas executivas típicas foram adotadas, ao tempo em que o juízo a quo constatou que o executado/paciente possui alto padrão de vida, incompatível com a alegada ausência de patrimônio para arcar com o pagamento da dívida, motivo pelo qual cabível a suspensão de sua Carteira Nacional de Habilitação como forma de incentivá-lo ao cumprimento da obrigação.[21] (Grifo nosso)

De todo modo, hoje, o que se busca na execução a priori, é a recuperação do crédito do exequente, e não a punição do devedor - apesar de uma coisa estar intrinsecamente relacionada à outra-. Entendemos que a responsabilização civil mais rígida do devedor, seria eficaz para desincentivar o consumo inconsequente, a contratação de má fé, o enriquecimento ilícito, e principalmente, a cultura do inadimplemento.

  1. Pontuações sobre o processo de execução e a penhora

O processo de execução visa quitar a obrigação, ainda que para isso seja necessário penhorar os bens do devedor e adjudicá-los ao credor. A este respeito, Marcelo Abelha afirma “Na responsabilidade patrimonial, o devedor assume que, caso ocorra o inadimplemento, seu patrimônio estará sujeito à atuação estatal, que poderá dali retirar o valor necessário para pagamento do que for devido. ”[22]

Conforme o artigo 831 do CPC “A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios.”. Sendo assim, a execução fica limitada ao montante da dívida atualizada, sob pena de caracterização de enriquecimento ilícito do credor.

A penhora se caracterizaria justamente por essa constrição de bens do devedor, vejamos alguns conceitos deste instituto:

A penhora é instituto que pertence ao direito processual, tendo por objetivo efetuar a apreensão de bens do patrimônio do devedor e/ou do responsável, com vista a permitir a posterior satisfação do credor, considerando que a execução por quantia certa contra devedor solvente é marcada pelo fato de ser expropriatória (art. 646 do CPC), atuando o Estado de forma substitutiva, mediante atos de sujeição impostos ao devedor, com a autorização para que o seu patrimônio seja invadido mesmo contra a sua vontade” (MONTENEGRO FILHO, 2007, p. 402)[23]

A penhora produz efeitos de duas ordens: processuais e materiais, que passamos a analisar. Diga-se, desde logo, porém, que são efeitos processuais da penhora: garantir o juízo; individualizar os bens que suportarão a atividade executiva; gerar para o exeqüente o direito de preferência. De outro lado, são efeitos materiais da penhora: retirar do executado a posse direta do bem penhorado; tornar ineficazes os atos de alienação ou oneração do bem apreendido judicialmente. (CÂMARA, 2008, p. 267) [24]

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Além da impossibilidade da penhora ultrapassar o montante do crédito, de acordo com o artigo 832 do CPC, “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis.” A doutrina adverte:

“A regra geral é que todos os bens presentes e futuros do executado se sujeitam à execução. Contudo, por razões humanitárias ou qualquer outro fundamento relevante, a lei pode estabelecer restrições à penhorabilidade (arts. 833 e 834; art. 1º da Lei 8.009/1990). Somente a lei – ou, eventualmente, o negócio jurídico processual que amplie hipóteses de impenhorabilidade, na forma do art. 190 – pode afastar determinados bens do alcance da penhora. Ausentes bens suscetíveis de penhora, a execução deve ser suspensa (art. 921, III). [25]

A possibilidade de expropriação dos bens existe, unicamente pela força coercitiva do Estado, que pode tanto fazer uso da polícia, para literalmente tomar o bem do devedor, quanto ordenar que as repartições públicas transfiram a titularidade dos bens do devedor, para o credor, o que perfaz a adjudicação. A doutrina destaca:

A responsabilidade patrimonial coloca, de um lado, o credor na posição jurídica de titular de um direito potestativo à expropriação de bens do responsável e, de outro lado, o devedor/responsável na posição jurídica de sujeição àquele direito correspondente. O Estado-juiz é quem detém o monopólio da coerção e coação que autoriza efetivar o referido direito potestativo. Assim, havendo um crédito reconhecido como tal (judicial ou extrajudicial) e mantida a situação de inadimplemento do devedor ou do responsável, restará ao credor a busca da tutela executiva, mediante a qual o Estado disponibilizará técnicas executivas contra o executado com a finalidade de satisfazer o crédito. Quando a finalidade é justamente a satisfação de um crédito, a solução estatal típica se dá por meio de expropriação. Só que para tanto terá de identificar, no universo patrimonial do executado (devedor ou responsável), qual o bem ou bens que serão expropriados com a finalidade de pagamento do valor devido. [26] (Grifo nosso)

Como salientado na citação acima, o responsável por indicar os bens à penhora no processo de execução, é o credor. Logicamente, o devedor também pode fazê-lo, porém, neste caso, trata-se de uma liberalidade, claramente desprovida de interesse.

O credor, que apesar de ser principal interessado na penhora, e querer encontrar bens para indicar, possui condições mínimas de conhecer quais são os bens do devedor, e isso naturalmente mitiga a possibilidade de êxito da execução. 

Atualmente, diversos sistemas eletrônicos, tais como BacenJUD e RenaJUD, auxiliam as execuções judiciais por possibilitarem a consulta de bens penhoráveis. Todavia, considerando as diversas irregularidades na formalização do domínio dos bens, especialmente dos veículos automotores e dos bens imóveis, tais consultas tornam-se cada vez menos eficazes, o que prejudica sobremaneira o credor.

Insta salientar que a indicação dos bens à penhora, não é feita de forma livre pelo credor, pois, em virtude do princípio da menor onerosidade ao executado, o Código de Processo Civil trouxe uma ordem de bens a serem preferencialmente penhorados, qual seja:

Art. 835.  A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;

II - títulos da dívida pública da União, dos Estados e do Distrito Federal com cotação em mercado;

III - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;

IV - veículos de via terrestre;

V - bens imóveis;

VI - bens móveis em geral;

VII - semoventes;

VIII - navios e aeronaves;

IX - ações e quotas de sociedades simples e empresárias;

X - percentual do faturamento de empresa devedora;

XI - pedras e metais preciosos;

XII - direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia;

XIII - outros direitos.

§ 1o É prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

§ 2o Para fins de substituição da penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento.

§ 3o Na execução de crédito com garantia real, a penhora recairá sobre a coisa dada em garantia, e, se a coisa pertencer a terceiro garantidor, este também será intimado da penhora.[27]

 

Portanto, ainda que a legislação instrumental preceitue que a penhora alcança todos os bens quanto bastem para a quitação da dívida, deve-se atentar para a ordem dos bens, no momento da penhora, de modo a garantir a menor onerosidade ao devedor, e a celeridade da execução.

  1. DA IMPENHORABILIDADE

 

Buscando a aplicação de tratamento isonômico e equilibrado, o Estado crioua figura da impenhorabilidade dos bens. Enquanto a penhora nos remete à ideia de proteção irrestrita do patrimônio do credor, a impenhorabilidade surge como uma barreira que garante o mínimo existencial do devedor, evitando o surgimento da miséria, grave problema social da atualidade.

Diante disso, nos interessa verificar quais são os bens considerados impenhoráveis pelo artigo 833 do CPC, e suas peculiaridades:

Art. 833.  São impenhoráveis:

I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;

II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;

III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;

IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o;

V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;

VI - o seguro de vida;

VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;

VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;

X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;

XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

§ 1o A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.

§ 2o O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3o.

§ 3o Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária. [28]

 

Salienta-se que, factualmente, as alegações de impenhorabilidade do salário, do bem de família, da aposentadoria, e dos valores depositados em caderneta de poupança, são as mais arguidas no cotidiano forense. E coincidentemente são temas das principais discussões, na defesa da flexibilização da impenhorabilidade, como veremos mais adiante.

2.1. Do critério objetivo de fixação dos bens impenhoráveis

Outro ponto de colossal relevância para o presente debate, é o fato dos critérios para definição da impenhorabilidade dos bens, serem objetivos e absolutos, o que por vezes, dificulta a tomada de decisões justas pelos magistrados, que ficam limitados à interpretação literal da lei.

A legislação define uma regra geral e ignora as peculiaridades de cada caso. Além disso, não leva em consideração o fato dos sujeitos serem ricos ou pobres, de serem pessoas físicas ou jurídicas, ou mesmo o fato da obrigação ter se originado baseada na boa fé ou na má fé.

Irrefutável que o mundo jurídico é recheado dos mais diversos casos concretos, e ainda que fosse nossa intenção, jamais conseguiríamos abordar todos esses casos. Portanto, não por subestimar o leitor, mas apenas para simplificar a reflexão trazida à baila, analisaremos algumas situações hipotéticas, que podem retratar bem, as inconsistências do sistema atual de impenhorabilidade.

Situação 1 - Imaginemos uma pessoa C1, integrante da classe baixa econômica, sem patrimônio e sem emprego formal, que resolve vender determinados produtos para pessoas conhecidas. Realiza uma venda a prazo para pessoa D1, no hipotético valor de R$ 500,00 (quinhentos reais). A pessoa D1, faz parte da classe média econômica, é assalariada e possui imóvel residencial próprio, entretanto, mesmo após acionada judicialmente, se recusa a pagar pelos produtos. Iniciado o processo de execução, o devedor D1 alega a impenhorabilidade do seu imóvel, bem de família, e ainda, do seu salário, pelo caráter alimentício. 

A execução, portanto, resta frustrada, e apesar de haver a possibilidade da pessoa D1 ser indicada ao cadastro de inadimplentes, nada mais o credor pode fazer para efetivamente alcançar seu crédito.

Situação 2 - No segundo caso, imaginemos uma pessoa D2 que realiza contrato de empréstimo com uma grande instituição financeira C2, em virtude da urgência em pagar por um procedimento de saúde. Neste caso, D2 também é assalariado, possui imóvel residencial como único bem, e se enquadra na classificação econômica de classe média. Alega impenhorabilidade dos seus bens e sai ileso da execução.

Situação 3 - A terceira situação hipotética, seria uma pessoa D3 que dolosamente arranha o carro do seu desafeto C3; e é condenado na esfera cível a reparar o dano causado. Suponhamos que D3 (assalariado, possuidor de imóvel residencial pertencente à classe média) também não pague voluntariamente, mesmo após cobrança judicial. Na execução, são feitas as legítimas alegações de impenhorabilidade dos bens do devedor, de modo que a execução também se vê frustrada.

Nos três casos, o Devedores D1, D2 e D3 têm uma situação econômica similar, todavia, os credores e as situações de cada caso, possuem peculiaridades.

Na situação 1, há a hipossuficiência do credor em relação ao devedor, e a execução frustrada, nos parece injusta. Na situação 2, há uma relação de consumo, sendo o devedor hipossuficiente, e sendo assim, a execução frustrada, nos parece mais razoável.

E por fim, na situação três, há um devedor inconsequente, que de forma dolosa, causou dano ao credor, e apesar de possuir recursos para repará-lo, não o fez, protegendo-se na impenhorabilidade, o que nos parece injusto e ilícito.

O atual critério definidor da impenhorabilidade dos bens se limita a avaliar a situação econômica do devedor, ignorando os outros fatores. Todavia, como vimos, eles são relevantes para a definição do que é ou não, justo.

Além do mais, o critério objetivo, inflexível, dado pela legislação instrumental, é prejudicial ao credor, sendo capaz, inclusive de mitigar sua dignidade.

Visando combater as situações mais alarmantes, como a apresentada no exemplo 3, analisaremos no presente trabalho, a possibilidade de flexibilização da impenhorabilidade, nos casos em que haja má fé do devedor.

Ademais, existem no contexto fático, inúmeros exemplos de execuções frustradas, em virtude de os bens, indicados à penhora durante a execução, serem considerados impenhoráveis. Essa situação por si só, não seria problemática, não fora as injustiças que é capaz de gerar em diversos casos, como os citados nos exemplos.

Interessante também citar, a frustrante situação daquele credor que conhece pessoalmente seu devedor, sabe que ele possui condições reais de quitar o débito, seja por receber um bom salário, por ostentar uma vida confortável, ou mesmo por agir como proprietário de algum bem, e não consegue executá-lo. O insucesso da execução ocorre, sobretudo, porque o salário e o imóvel residencial único (bem de família) são impenhoráveis, e ainda porque há um contexto de informalidade no registro da propriedade de alguns bens, tais como os veículos automotores, e as casas situadas em bairros irregulares, e sendo assim, a sensação de desamparo pelo judiciário, se intensifica.

No Distrito Federal, por exemplo, há a peculiaridade de existirem diversos bairros irregulares, inclusive, alguns nobres, com imóveis avaliados em R$ 500.000, 00 (quinhentos mil reais) a mais. Esses bens, em muitos casos, são irrastreáveis, pois não possuem registro formal em cartório, tendo seus donos, um mero documento de garantia de posse.

Existe ainda, a situação de bens financiados de difícil alcance pela penhora, e muitas outras situações que dificultam sobremaneira a jornada do credor em busca do seu crédito. 

Sabiamente trataram do tema, os juristas Carla Brizzi e Michel Pinheiro:

A falta de bens à penhora pode dar azo à má-fé do devedor, pois, este, ciente de que a lei impede a constrição dos bens que guarnecem a residência, pode ver nisso permissão para ludibriar o credor. Mas, se isto é possível, como pode o Judiciário dar abrigo à desonestidade, considerando que esta representa a antítese de um dos mais sólidos valores da nossa sociedade? Uma dificuldade encontrada pelo juiz reside na análise da situação econômica do credor e do devedor quando imprescindível para inferir pela aplicação da eqüidade. No entanto, quase sempre as partes se conhecem – pois o litígio versa sobre transação comercial mantida entre eles – e a aproximação em audiência, muitas das vezes, viabiliza acordos até sobre bens de primeira necessidade e disponíveis, possível quando há verdadeira intenção do devedor em quitar suas obrigações contratuais.[29]

Nessa toada, importante mencionar que, o jurista que atua nos processos de execução civil, mesmo com pouca experiência, toma conhecimento de que em incontáveis casos, ainda que o devedor tenha possibilidades reais de quitação do débito, não o faz e se mantém intocado pela execução. Há um embate entre o fático e o jurídico em casos como este, e a norma protetiva do artigo 833 do CPC se mostra claramente injusta no mundo fático, o que exige adaptações.

Questiona-se inclusive, se o direito do credor à tutela jurisdicional não estaria sendo suprimido, vez que, como vimos, apenas em tese, tem o direito a perseguir o patrimônio do devedor. Interessante o posicionamento de Daniel Amorim A. Neves, que afirma que “[...]de nada adiantará ampliar o acesso, permitir a ampla participação e proferir decisão com justiça, se tal decisão se mostrar, no caso concreto, ineficaz. O famoso ‘ganhou, mas não levou’ é inadmissível dentro do ideal de acesso à ordem jurídica justa. A eficácia da decisão, portanto, é essencial para se concretizar a promessa constitucional de inafastabilidade da jurisdição. [...].”[30]

Interessante também, a reflexão trazida por Karla Cristina, em seu trabalho de conclusão de curso, intitulado “A Mitigação da Impenhorabilidade Salarial Como Garantia ao Direito Fundamental à Tutela Jurisdicional Efetiva”, onde lemos:

Atualmente, o direito de acesso à justiça é reconhecido como aquele que deve garantir a tutela efetiva de todos os demais direitos, sob pena de que os direitos garantidos constitucionalmente sejam meras declarações políticas transcritas em um papel e não façam valer, de modo integral, o direito material. Este direito não se resume ao proferimento de uma sentença de mérito, tendo em vista que a sentença é uma técnica processual que nem sempre se confunde com a tutela do direito. Quando ela presta, por si só, a tutela jurisdicional, é denominada satisfativa, quando depende de atividade executiva, recebe a designação de não-satisfativa. [31]

Não bastassem as dificuldades naturais enfrentadas durante a execução, o exequente é ainda obrigado a lidar com referidos devedores de má-fé, isto é, aquele indivíduo que de forma dolosa, causa dano a outrem, seja com o fito de atacar o credor, ou pelo afã de enriquecer ilicitamente. A esta situação daremos tratamento especial mais adiante.

2.2. Das recentes teses sobre a relativização da impenhorabilidade do salário e do bem de família

 

Por todo o visto, e considerando a importância da tomada de decisões equilibradas, o contexto jurisprudencial vem se atualizando sobre a questão da impenhorabilidade, e, em muitos casos, baseando-se em argumentos similares aos trazidos no presente trabalho, tem se decidido pela penhora de alguns dos bens protegidos.

A comunidade acadêmica também tem se debruçado sobre o tema, buscando e testando as teses em prol do credor, que podem ser aplicadas sem atingir a dignidade do devedor.

No que concerne à impenhorabilidade dos vencimentos, “subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria e pensões”, prevista no inciso IV do artigo 833 do CPC, ressalta-se haver uma relativização já trazida pelo ordenamento, expressa no § 2º deste mesmo artigo. Conforme se lê “O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3o[32].

Para além desta exceção legal, temos atualmente, um compilado de argumentos que embasam a possibilidade de penhora do salário.

Primeiramente, importante salientar que o salário é a fonte natural de renda da esmagadora maioria da população e com vistas nisso, as obrigações civis, das mais essenciais, às mais supérfluas, são assumidas pelos indivíduos na expectativa de serem pagas com os valores percebidos do trabalho. Seguramente, a renda do devedor tem especial relevância para a concessão do crédito, pois indica ao credor, o padrão de vida aproximado que o devedor leva.

A exemplo disso temos as pessoas com altos salários, que apesar de não necessariamente serem boas pagadoras, possuem, presumivelmente, uma maior possibilidade de quitação voluntária, ou mesmo, quando na execução forçada, um maior patrimônio a ser penhorado.

Observando os aspectos culturais do nosso país, constatamos não existir ainda, uma postura previdente das pessoas, no que tange às finanças. Muitos não se preocupam em adquirir patrimônio ou mesmo guardar dinheiro, e alguns outros, se contentam em conquistar a casa própria.

O salário e a casa são, por vezes, o único patrimônio do devedor, e levando em conta que, hoje, são bens impenhoráveis, ilógico seria que as execuções fossem mais exitosas. Karla Cistina, já citada neste artigo, enfatiza sua inconformidade com a situação:

Nesse sentido, a impenhorabilidade de vencimentos imposta pelo nosso ordenamento jurídico, com exceção da sua permissão para o pagamento de prestação alimentícia, é uma regra de caráter absoluto que deveria ser mitigada, pois, conforme será tratado a seguir, há conflito de regras e princípios constitucionais quando se sobrepõe o princípio da dignidade da pessoa humana sob o princípio da efetiva tutela jurisdicional.[33]

Visando solucionar essa questão e minimizar o absurdo do salário intocável, a tempos, se pleiteia no legislativo, a relativização dessa impenhorabilidade. O projeto de lei 8046/10[34], inclusive, propôs que tal flexibilização, deveria ser aplicada aos casos em que o salário que ultrapassasse seis salários mínimos, limitado a penhora, ao percentual de 30% dos vencimentos.

Todavia, o imbróglio político, mais uma vez prosperou frente a questão de direitos. Sobre os acontecimentos, Karla Cristina pontua:

“O ex-relator, Sérgio Barradas Carneiro, argumentou que o valor a ser penhorado não colocaria em risco a manutenção do devedor. Já o deputado Arnaldo Faria de Sá, do PTB paulista, defendeu a não aprovação do dispositivo, uma vez que, segundo seu entendimento, “o salário é sagrado e a pessoa não pode ser surpreendida com um desconto”

De acordo com Josildo de Oliveira, “a retirada desse dispositivo, principalmente na forma como seu deu, baseada em critérios políticos e não jurídicos, afigurou-se verdadeiro desserviço ao atual panorama principiológico do nosso ordenamento jurídico”[35]

Essa não foi a primeira vez que o tema foi pautado pelo legislativo de forma tão controversa. Em 2006, o congresso chegou a aprovar um projeto que autorizava a penhora de até 40% do salário de quem auferia renda superior a 20 salários mínimos. Tal proposta foi vetada pelo presidente em exercício à época, sob o argumento de que “o item quebraria a tradição normativa brasileira da impenhorabilidade da remuneração e, assim, deveria ser debatida com mais         profundidade pela     comunidade    jurídica. [36]

Lamentável que até o presente momento, mesmo com todos os indicativos de que este tema precisa ser reformado, não se tenha avançado para um caminho legislativo mais sensato.

O judiciário, por sua vez, ao lidar com os casos concretos e identificar injustiças, acaba se posicionando, por vezes, de forma contrária à norma, como podemos observar nas seguintes decisões:

Recentemente, A Ilustre Ministra do STJ, Nancy Andrighi decidiu pela manutenção da penhora realizada sobre o salário do executado, em um caso de dívida não alimentícia. Vejamos:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE PERCENTUAL DE SALÁRIO. DÍVIDA DE CARÁTER NÃO ALIMENTAR. RELATIVIZAÇÃO DA REGRA DE IMPENHORABILIDADE. POSSIBILIDADE. 1. Ação de execução de título executivo extrajudicial – nota promissória. 2. Ação ajuizada em 13/10/1994. Recurso especial interposto em 29/10/2009. Embargos de divergência opostos em 23/10/2017. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir sobre a possibilidade de penhora de vencimentos do devedor para o pagamento de dívida de natureza não alimentar. 4. Em situações excepcionais, admite-se a relativização da regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no art. 649, IV, do CPC/73, a fim de alcançar parte da remuneração do devedor para a satisfação do crédito não alimentar, preservando-se o suficiente para garantir a sua subsistência digna e a de sua família. Precedentes. 5. Na espécie, a moldura fática delineada nos autos – e inviável de ser analisada por esta Corte ante a incidência da Súmula 7/STJ – conduz à inevitável conclusão de que a constrição de percentual de salário da embargante não comprometeria a sua subsistência digna. 6. Embargos de divergência não providos.[37] (Grifo nosso)

Em seu voto, fez questão de esclarecer que, “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, vem evoluindo no sentido de admitir, em execução de dívida não alimentar, a flexibilização da regra de impenhorabilidade quando a hipótese concreta dos autos revelar que o bloqueio de parte da remuneração não prejudica a subsistência digna do devedor e de sua família. Busca-se, nesse contexto, harmonizar duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa humana – de um lado, o direito ao mínimo existencial; de outro, o direito à satisfação executiva”. Sendo assim, “Tem-se, que a regra da impenhorabilidade pode ser relativizada quando, a hipótese concreta dos autos, permitir que se bloqueie parte da verba remuneratória, preservando-se o suficiente para garantir a subsistência digna do devedor e de sua família.”.[38]

Nesse sentido, Priscila Ramos preleciona que “a penhora parcial de salários colabora para a tutela aos direitos fundamentais, porque a sua aplicação respeita às previsões constitucionais da prestação jurisdicional de maneira célere e eficaz, e ainda adequa os atuais meios processuais a tais previsões. ”[39]

Outrossim, existem outras diversas decisões sobre a matéria no sentido de admitir a penhora dos salários em casos pontuais, extraordinários, a depender das peculiaridades do caso concreto, quando se tem ameaça aos direitos fundamentais do credor, à tutela jurisdicional e ao patrimônio.

A nosso ver, a penhora parcial do salário é o caminho mais equilibrado entre os direitos do credor e do devedor, e sendo o salário, a fonte natural de renda dos cidadãos, torna-se ilógico que estes valores sejam impenhoráveis.

Outro tema de bastante inovação no âmbito jurisprudencial, é a possibilidade da penhora do bem de família de valor exorbitante. O raciocínio é bem simples, Marcelo Menezes Mattos, sabiamente descreve “entende-se que a impenhorabilidade dos bens de família deve se restringir ao que seja indispensável à subsistência digna da família. Desta forma, aqueles bens classificados como adornos suntuosos, podem e devem ter sua penhora determinada pelo magistrado, caso seja necessário para satisfação da dívida para com o exequente[sic]. ”[40]

Essa ainda é uma questão de grande controvérsia, tanto na doutrina, quanto no judiciário. Diversos juízos de primeira instância, tem decidido pela penhora desses bens, todavia, ainda são reformadas muitas dessas decisões.

Em recente decisão, o STJ se posicionou no sentido de manter a impenhorabilidade do bem de família, ainda quando o bem tenha valor exorbitante. Evidente que tal decisão contraria a essência da proteção, sobretudo porque o bem de família de valor exorbitante, representa riqueza e não uma garantia de patrimônio mínimo. Vejamos o julgado:

RECURSO ESPECIAL - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA EM AÇÃO DE COBRANÇA POR DESPESAS DE MANUTENÇÃO E MELHORIAS DE LOTEAMENTO - PRETENSÃO DE PENHORA DO ÚNICO BEM DE PROPRIEDADE DA EXECUTADA SOB A ALEGAÇÃO DE TRATAR-SE DE IMÓVEL DE LUXO (ALTO VALOR) - TRIBUNAL A QUO QUE MANTEVE O INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE PENHORA DA UNIDADE HABITACIONAL INDIVIDUAL ANTE O NÃO ENQUADRAMENTO NAS HIPÓTESES DE EXCEÇÃO À ALUDIDA GARANTIA (IMPENHORABILIDADE). IRRESIGNAÇÃO DO EXEQUENTE. Hipótese: Controvérsia envolvendo a possibilidade de reinterpretação do instituto da impenhorabilidade do bem de família com vistas a alargar as hipóteses limitadas, restritas e específicas de penhorabilidade descritas na legislação própria, ante a arguição de que o imóvel é considerado de alto valor. 1. O bem de família obrigatório está disciplinado na Lei nº 8.009/90 e surgiu com o objetivo de proteger a habitação da família, considerada, pela Constituição Brasileira, elemento nuclear da sociedade. 2. Em virtude do princípio da especificidade "lex specialis derogat legi generali", prevalece a norma especial sobre a geral, motivo pelo qual, em virtude do instituto do bem de família ter sido especificamente tratado pelo referido ordenamento normativo, é imprescindível, tal como determinado no próprio diploma regedor, interpretar o trecho constante do caput do artigo 1º "salvo nas hipóteses previstas nesta lei", de forma limitada. Por essa razão, o entendimento do STJ é pacífico no sentido de que às ressalvas à impenhorabilidade ao bem de família obrigatório, é sempre conferida interpretação literal e restritiva. Precedentes. 3. A lei não prevê qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família relativamente ao seu valor, tampouco estabelece regime jurídico distinto no que tange à impenhorabilidade, ou seja, os imóveis residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão do seu valor econômico, da proteção conferida aos bens de família consoante os ditames da Lei 8009/90. 4. O momento evolutivo da sociedade brasileira tem sido delineado de longa data no intuito de salvaguardar e elastecer o direito à impenhorabilidade ao bem de família, de forma a ampliar o conceito e não de restringi-lo, tomando como base a hermenêutica jurídica que procura extrair a real pretensão do legislador e, em última análise, a própria intenção da sociedade relativamente às regras e exceções aos direitos garantidos, tendo sempre em mente que a execução de crédito se realiza de modo menos gravoso ao devedor consoante estabelece o artigo 620 do CPC/73, atual 805 no NCPC. 5. A variável concernente ao valor do bem, seja perante o mercado imobiliário, o Fisco, ou ainda, com amparo na subjetividade do julgador, não afasta a razão preponderante justificadora da garantia de impenhorabilidade concebida pelo legislador pelo regime da Lei nº 8.009/90, qual seja, proteger a família, garantindo-lhe o patrimônio mínimo para sua residência. 6. Na hipótese, não se afigura viável que, para a satisfação do crédito, o exequente promova a penhora, total, parcial ou de percentual sobre o preço do único imóvel residencial no qual comprovadamente reside a executada e sua família, pois além da lei 8009/90 não ter previsto ressalva ou regime jurídico distinto em razão do valor econômico do bem, questões afetas ao que é considerado luxo, grandiosidade, alto valor estão no campo nebuloso da subjetividade e da ausência de parâmetro legal ou margem de valoração. 7. Recurso especial desprovido.[41]

Irrazoável e desproporcional a interpretação de que a Lei nº 8.009/1990 veda a penhora de imóvel luxuoso, pois, nas palavras de FARIAS, “permite que o devedor mantenha um alto padrão de vida, com conforto e comodidade excessivos, em detrimento de seus credores que podem vir a sofrer um comprometimento de sua dignidade.[42]

As questões que envolvem a penhora do salário e do bem de família são discutidas com frequência no meio acadêmico, e por isso, foram as únicas estudadas aqui. Todavia, não podemos olvidar que existem teses inovadoras que questionam a impenhorabilidade de outros bens, tais como os valores depositados em caderneta de poupança, ainda que inferiores a 40 salários mínimos, os ativos da previdência privada, os bens que guarnecem a residência, entre outros. Em regra, as teses apresentadas, são canalizadas na questão do valor do patrimônio do devedor, no princípio da proporcionalidade e no direito do credor ao mínimo existencial.

Deste modo, feitas todas estas considerações sobre o contexto atual, passaremos a estudar, de maneira sintetizada, os fundamentos do direito ao crédito e do direito à impenhorabilidade, sob um olhar de justiça.

2.3. Impenhorabilidade de bens, sob a ótica do princípio da proporcionalidade.

A impenhorabilidade dos bens é um direito do devedor que visa protegê-lo de uma possível situação de miserabilidade. Tal direito se baseia nos princípios fundamentais de proteção ao mínimo existencial e à dignidade humana.

Desde logo, destacamos que a norma processual é focada na dignidade do devedor, ignorando completamente os direitos fundamentais do credor. A esse respeito, Daniel Amorim Neves afirma:

A garantia de que alguns bens jamais sejam objeto de expropriação judicial é a tentativa mais moderna do legislador de preservar a pessoa do devedor, colocando-se nesses casos sua dignidade humana em patamar superior à satisfação do direito do exequente.

[...]

A preocupação em preservar o executado – e quando existente também sua família – fez com que o legislador passasse a prever formas de dispensar o mínimo necessário à sua sobrevivência digna [43] (Grifo nosso)

Importa destacar que essa proteção dada pelo ordenamento, tem relação história com o cristianismo e com a questão humanitária. O imperador Justiniano teve grande influência na construção dessa proteção, estabelecendo regra cogente de que ninguém seria obrigado a ceder todos os seus bens por dívida, e proibindo os magistrados de reduzirem o devedor à miséria, quando este jurasse pelos evangelhos, que não possuía condições de quitar o débito[44].   

No Brasil, passamos por momentos menos protetivos ao devedor, como na ocasião do código civil de 1916, todavia, como ressaltou Maurício Mota:

O atual Código Civil retomou a tradição reinícola e brasileira de maior proteção ao devedor, afastando-se do exacerbado individualismo do Código de 1916. O Novo Código tem como princípios a socialidade, a eticidade e a operabilidade. Tais princípios espraiam-se em diversas regras protetivas no Código, como o art. 113, ao estabelecer que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé.[45]

De todo modo, para além das mutações legislativas ocorridas durante a história, encontramos um fundamento principiológico atemporal, que seria a ideia de garantia do mínimo existencial. Ainda que o estudo desse princípio seja recente, sua essência pode ser observada desde as primeiras proteções dadas ao devedor.

Interessa destacar que a Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948, em seu artigo 25, assegura que “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.[46]

Sendo assim, esse princípio tem o fito de incentivar a postura garantista do Estado, que deve, através de suas atribuições, implementar programas e políticas públicas, para dar cidadãos o mínimo para a vida digna.

Não se trata de garantir o mínimo vital, e sim garantir o usufruto de uma vida digna, assegurando a alimentação, a moradia, o lazer, o vestuário, a saúde e a segurança. Conforme Torres, “Não é qualquer direito mínimo que se transforma em mínimo existencial. Exige-se que seja um direito a situações existenciais dignas. Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados.[47]

Por fim, sublinha-se que tal princípio é merecedor de admiração, pois carregado de humanidade e justiça. Entretanto, é encargo do Estado garanti-lo, sendo inadmissível que, nos processos de execução, o credor seja prejudicado por ser sustentáculo do mínimo existencial do devedor. 

Como visto a proteção da impenhorabilidade dos bens não leva em consideração a condição econômica do credor, e nesse sentido, podemos constatar que, em muitos casos, o credor tem o seu direito ao mínimo existencial afetado.

A condição de ser credor não é garantia de uma “hipersuficiência” financeira, em relação ao devedor. Salvo as relações de consumo, não existe nenhum parâmetro que coloque o credor em condição de superioridade em relação ao devedor, e por isso, entendemos haver um tratamento desigual desnecessário, entre as partes da execução.

Em contraposição ao direito do devedor à proteção patrimonial mínima, temos o direito do exequente à satisfação do crédito.

Trata-se de direito fundamental, tutelado pelo Estado, por meio do poder judiciário, seguindo o preceito mandamental do art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal que diz que ''a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito''.[48]

Pontuamos que nos dias atuais, existem diversos fundamentos, legais e principiológicos, que sustentam e fazem valer o direito ao crédito. Os institutos da penhora, da expropriação e da adjudicação, por exemplo, são mecanismos, que apesar de limitados pela própria lei processual, visam atender o exequente.

O código civil, no tocante às obrigações contratuais, prevê com detalhe como deve se responsabilizar os agentes, e, visando atender as obrigações civis como um todo, o código trouxe em seus arts 186 e 187, a ideia geral sobre o que caracteriza a responsabilidade civil, vejamos:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.[49]

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.[50]

Portanto, cada indivíduo que causar prejuízo a outrem, deve ser compelido a reparar o dano.

Devemos considerar também que o credor, ao perseguir seu crédito merece ver garantido o princípio da legalidade, a proteção à sua dignidade, e ainda, a proteção a seu patrimônio. Repisa-se que o mínimo existencial do credor também deve ser considerado, de modo que ele não se veja em situação de miserabilidade em virtude da inadimplência de seus devedores.

Consoante se observa, há um conflito claro entre os direitos patrimoniais do credor e do devedor no que concerne à execução e sendo assim, deve-se encontrar mecanismos abeis para que, de forma proporcional, seja garantida a dignidade de ambos.

O princípio do patrimônio mínimo, fundado no princípio do mínimo existencial, está em voga não só na esfera dos direitos do devedor, mas também dos direitos do credor, e assim sendo, o ordenamento somente deve interferir nas relações obrigacionais, de maneira absolutamente proporcional.

Somado a isso, a boa fé objetiva, norma cogente, deve ser respeitada por todos os inseridos no universo jurídico, evitando o surgimento de situações frustrantes. Interessa à sociedade, que não haja surpresas nas contratações, que as expectativas não sejam frustradas, e que as obrigações sejam devidamente cumpridas. A autonomia privada, só será plena quando os agentes da relação obrigacional tiverem condições de contratar com segurança jurídica.

Interessa que cada ser humano tenha a tutela estatal para protegê-lo de possíveis danos, e que caso ocorram, sejam efetivamente reparados.

Assim como o inadimplemento, a má-fé deve ser coibida pelo arcabouço legislativo e teórico, razão pela qual se propõe um novo olhar sobre a aplicação da impenhorabilidade.

Nessa altura, abordaremos a questão da proporcionalidade aplicada a relação entre credor e devedor. E nesse aspecto, vale a transcrição de trecho do estudo trazido por Carla Brizzi e Michel Pinheiro:

A proporcionalidade em sentido estrito vem garantir a otimização do benefício com o mínimo de limitação. Cria-se, de fato, uma verdadeira relação de vantagens e desvantagens, em que se busca o máximo das primeiras com o mínimo das últimas.[51]

Resumidamente, temos de um lado o credor, com direito à tutela jurisdicional do Estado, direito ao patrimônio, direito à manutenção do negócio jurídico, ao mínimo existencial, à razoável duração do processo, à contratação de boa-fé, ética e leal, à reparação pelos danos, e outros mais. Por outro lado, temos o devedor, que além desses mesmos direitos, possui a proteção expressa (Art. 833 CPC) em relação aos seus bens.

Evidente que o que pretendeu o legislador, foi criar uma regra diferenciada, na tentativa de tratar os desiguais na medida de suas desigualdades, fazendo cumprir o princípio da isonomia. Entretanto, como já mencionado, não existem indicadores de que o devedor mereça tratamento privilegiado, e sendo assim, a impenhorabilidade dos bens se apresenta como, um exemplo claro da prejudicial interferência do Estado nas relações privadas.

O princípio da proporcionalidade deve sopesar todas essas questões, e ainda considerar que há um interesse público no adimplemento das obrigações. De maneira inspiradora. Brizzi e Pinheiro pontuaram:: 

A aplicação dos princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana insertos na Constituição de 1.988 é uma das metas fundamentais do nosso sistema de garantias dos direitos fundamentais. Com isto, busca-se assegurar o máximo da efetivação da justiça, almejando-se que pequenos credores não sejam submetidos a vexames gerados por lei que favoreça a desonestidade do devedor. Não é incomum observarmos falência do credor quando ocorre considerável quadro de inadimplência, situação que gera desassossego, intranqüilidade e desespero, mormente naqueles que não têm outra fonte de renda para o sustento próprio e de sua família. E onde impera condição de miserabilidade ressai o justificável apego às pequenas coisas, às pequenas dívidas, aos pequenos serviços. Quase sempre a vida das pessoas mais pobres têm parâmetros referenciados na extrema dificuldade de percepção de bens materiais, mormente em país onde o salário mínimo beira à insignificância quando usado para aquisição de alimentos e vestuário.[52]

  1. DA MITIGAÇÃOO DA IMPENHORABILIDADE, NOS CASOS DE EVIDENTE PRÁTICA DE ATO ILÍCITO.

 

Por todo o posto, entende-se que o instituto da impenhorabilidade, que se criou como uma proteção contra o arbitrário poder do Estado, hoje, é utilizado como meio de fuga para a responsabilização, de tal modo, que nos depararmos com o absurdo de devedores, que mesmo agindo de má-fé desde o surgimento da obrigação, saem impunes das execuções.

Lado outro, enxergamos diversos credores, que em nada contribuíram para o prejuízo que sofreram, e, diante da ineficiência estatal, se veem obrigados a se contentar com o famoso brocado, “ganhou, mas não levou”. 

O que parecia ser uma medida meramente humanitária acabou por proteger de forma exagerada o devedor, deixando em segundo plano, a dignidade humana do credor. Karla Cristina de Almeida, em seu trabalho de conclusão de curso, de forma brilhante, preceitua:

A humanização da execução no Brasil excedeu seus limites, exagerou na proteção de quem não honra compromissos ou não repara espontaneamente danos causados. Esse excesso de proteção do patrimônio inadimplente ensejou uma crise, pois banalizou e sedimentou a cultura da procrastinação e de ofensa à dignidade do lesado em seus direitos, visto que não está em conformidade com a dignidade humana permanecer anos sem a tutela de seus direitos, ou até mesmo nunca conseguir tal tutela por causa de uma execução em crise. Também afronta a dignidade humana arcar com os custos de um processo sem resultados. Ficar o autor sem a tutela de seus direitos, embora tenha caminhado anos em busca do bem da vida, não é raro em nosso sistema. Muito pelo contrário, é bastante comum, devido à ineficiência da atual execução.[53] (Grifo nosso)

Fato é que muitos devedores, guiados por uma conduta irresponsável, ou mesmo pelo anseio de enriquecer ilicitamente, realizam negócios jurídicos conscientes de que serão incapazes de honrar com a obrigação. Essa atitude, por si só, já deveria ser afetada por alguma punição civil, todavia, como o diagnóstico a respeito desses casos, seria completamente complexo e subjetivo, o deixaremos para um estudo futuro, direcionando a reflexão atual, especificamente, aos casos de dolo explícito de causar dano, ou seja, às situações em que existe a figura do devedor de má-fé.

A fim de demonstrar quem seriam esses devedores de má-fé, podemos citar aqueles agentes que dolosamente causam dano à honra, à imagem, ou mesmo ao patrimônio de alguém. Quando executados, muitas vezes, se protegem na alegação da impenhorabilidade de seus bens, e o credor permanece no prejuízo.

A situação injusta, precisa de urgente resolução, e, entende-se, que a flexibilização da impenhorabilidade, nesses casos específicos, seria a medida mais adequada para garantir a reparação, desestimular as condutas de má fé, e de certo modo, punir o agente.

Além do mais, a boa-fé não deve reger apenas as obrigações contratuais, pois, como um princípio, deve nortear todas as condutas humanas. Qualquer postura improba deve ser repremida pela lei, em maior ou menor escala, a depender da gravidade.

A permanência da interpretação atual, de que mesmo os devedores de má-fé merecem a proteção da impenhorabilidade, mostra-se inadequada, posto que, inconstitucional, como bem expressa Marinoni:

Um sistema processual que estimula o inadimplemento do infrator em prejuízo do lesado viola direitos fundamentais, aqui especialmente o direito de proteção de todo cidadão, e, assim, é flagrantemente inconstitucional. Não ver isso é continuar estimulando os infratores – e assim os danos, os quais certamente prosseguirão entendendo que não é conveniente observar os direitos, pois é muito melhor ser executado.[54]

O rol do artigo 833 é literal na definição dos bens impenhoráveis, e apesar da jurisprudência, por vezes, relativizar a aplicação deste instituto, não o faz com base no objeto ou no sujeito da obrigação, e sim fundando-se na mera análise do valor do bem a ser penhorado, ou da situação econômica do devedor.

O que se propõe no presente trabalho, é que, por meio do legislativo, o ordenamento flexibilize a impenhorabilidade do salário (inc. IV do art. 833 CPC), dos valores depositados na caderneta de poupança (inc. X do art. 833 CPC), dos bens que guarnecem a residência (inc. II do art. 833 CPC), e, em último caso, do imóvel, bem de família (inc. I do art. 833 CPC), quando a obrigação tiver origem em ato ilícito.

O objetivo maior, é que a má-fé, caracterizada como aquela postura má, enganosa, fraudulenta, e desleal, praticada de forma consciente, seja, juridicamente repudiada, a ponto de tornar relativos, alguns direitos dos seus atores, como exemplo, o direito à impenhorabilidade.  

3.1. Do instituto da indignidade e suas semelhanças com a presente proposta

Em diversos momentos, o ordenamento jurídico reprime as condutas ilícitas, estabelecendo por vezes, multas e anulações de negócios quando se identificam os objetivos espúrios do agente, o que reforça a coerência da presente tese. 

Na tentativa de evitar que a proposta apresentada neste artigo seja encarada por críticos, como prejudicial ao devedor, ou mesmo desumana, pontuaremos a seguir, uma situação em que o ordenamento restringiu direitos do cidadão em consequência de uma conduta de má-fé.

Primeiramente, interessa mencionar, o famoso brocado jurídico de que “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza”, em latim, Nemo auditur propriam turpitudinem allegans. Tal brocado prelaciona, nas palavras de Delcides Prado, que “conforme se impõe em todas as searas do direito e até da vida em sociedade, significa que nenhuma pessoa pode fazer algo incorreto, praticar um ato ilícito, ou descumprir uma regra de conduta, imposta pelas normas legais, e depois alegar tal conduta em proveito próprio. ” [55]

O pensamento é facilmente aplicado ao caso do devedor de má-fé, que dolosamente, causa prejuízo ao credor, atingindo seu patrimônio, e depois, quando condenado, alega a impenhorabilidade de seus bens, encobrindo-se justamente no direito ao patrimônio.

De modo similar, temos, na seara do direito sucessório, o exemplo do herdeiro, que cometendo crime doloso contra a vida do autor da herança, e posteriormente, se apresenta no processo de inventário, como sucessor. Tal conduta é vedada pela caracterização da indignidade, que, conforme Maria Helena Diniz, “[...] vem a ser uma pena civil que priva do direito de herança não só o herdeiro, bem como o legatário que cometeu os atos criminosos, ofensivos e reprováveis, taxativamente enumerados em lei, contra a vida, a honra e a liberdade do de cujus ou de seus familiares” (DINIZ, 2010, p. 50)

O que se tem, portanto, é uma clara privação de direito, como penalidade ao herdeiro que comete algum dos ilícitos tipificados no artigo 1.814 do Código Civil[56]. Não se trata de proteção ao de cujus, e sim, de punição civil ao herdeiro, ideia que se aproxima a dos argumentos trazidos por este trabalho.

  1. Considerações finais

O direito processual civil, detentor de normas e princípios aplicáveis a todas as áreas do direito, deve ser coerente e justo. Os tratamentos desiguais só devem ser adotados quando comprovada sua imprescindibilidade.

Não se pode permitir que um instituto como a impenhorabilidade, criado pelo próprio ordenamento por motivos humanitários, seja utilizado como instrumento gerador de injustiças. Por essa razão, deve-se fazer uma releitura sobre este tema.

O inadimplemento, por si só, já é altamente prejudicial à coletividade, afetando desde as relações mercadológicas, até a economia nacional.

O credor, na condição de exequente, encara diversas dificuldades na busca pelo crédito, tais como, o desconhecimento sobre o patrimônio do devedor, as fraudes à execução, a irastreabilidade dos bens irregulares, a morosidade judicial, e principalmente, a impenhorabilidade de bens.

Além disso, o critério objetivo que fixa os bens impenhoráveis, dificulta a interpretação mais justa pelo judiciário, e sendo assim, mesmo as decisões fundadas na brilhante ponderação de princípios, por vezes, são reformadas.

Os ambientes acadêmicos e jurídicos têm sido palcos de debate sobre o tema, todavia, o legislativo, barrado pelas questões políticas, se mantém inerte frente à necessidade de inovação legal.

Com vistas nisso, para que a ideia de flexibilização da impenhorabilidade seja melhor aceita, propomos que prioritariamente, sejam tratadas as situações mais susceptíveis a gerar injustiças.

Nesse sentido, sugerimos que a impenhorabilidade de bens não seja aplicada aos casos em que o devedor tenha cometido ato ilícito doloso. Dessa forma, além de aumentar a probabilidade de o credor recuperar seu crédito, o ordenamento estará punindo o agente de má-fé.

Defendemos também, que em breve, sejam criados novos critérios para a definição dos bens impenhoráveis e das circunstâncias em que devem ser protegidos. Dessa maneira caminharemos para o fim da descrita cultura do inadimplemento.

 

Sobre a autora
Katrine Wurlitzer

Advogada com atuação em direito civil e empresarial! Ênfase em direito digital e LGPD!

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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