Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
Por maioria, a 2ª. Turma do STF anulou a sentença do caso julgado pelo então Juiz Federal Sérgio Moro, referente ao réu Aldemir Bendine. [1] A fundamentação da decisão se atém a um aspecto formal do procedimento, ligado aos Princípios da Ampla Defesa e do Contraditório, ambos corolários do Devido Processo Legal.
Ocorre que havia corréus delatores e no momento das alegações finais, o Juiz abriu prazo comum para sua oferta. Entendeu o STF que, em sendo os delatores também réus, mas apresentando-se como uma espécie de figura híbrida, que também aduz imputações contra o outro corréu, o procedimento mais garantidor dos Princípios Constitucionais sobreditos seria a abertura inicial de prazo para alegações do Ministério Público, em seguida para os réus colaboradores e somente ao final para o réu Aldemir Bendine. Sendo os prazos comuns, poderia haver prejuízo para a defesa de Bendine ao não ter conhecimento, quando da elaboração de suas alegações, do que seria tratado nas alegações dos corréus colaboradores.
Esse tipo de questionamento não é nenhuma novidade no Processo Penal brasileiro. A doutrina e a jurisprudência, mesmo antes da existência em nossa pátria do instituto da colaboração premiada, já discutiam a questão de possibilitar a contradição do réu acusado por outro.
Uma revisão histórica faz-se necessária para compreender o quão antiga é essa discussão.
O Código de Processo Penal, na sua versão original de 1941, estabelecia que o ato de Interrogatório era “exclusivo do Juiz”, não podendo as partes fazerem quaisquer indagações. Esse modelo sempre foi objeto de críticas e acoimado de “inquisitorial”.
Entretanto, discutia-se a situação em que um corréu proferisse imputações prejudicais a outro corréu. Nesse caso, parte da doutrina e da jurisprudência já afirmava que, mesmo no modelo original de 1941, haveria uma exceção em que o corréu mencionado pelo outro, teria direito de, por meio de seu defensor, formular indagações no momento do interrogatório. O fundamento tinha sustento nos mesmos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa.
O modelo de interrogatório exclusivo do magistrado, por essa e outras críticas, acabou sendo alterado pela Lei 10.792/03, permitindo-se no artigo 188, CPP a formulação de perguntas pelas partes (acusação e defesa) após as indagações do magistrado. Com isso, a discussão sobre a possibilidade de perguntas no caso de corréus que se acusam, findou resolvida, já que em qualquer caso, seja com acusações mútuas ou não, poderão ser formuladas perguntas pelas partes no ato do interrogatório.
Entretanto, também seria consequência dessa visão em que um corréu faz imputações ao outro a possibilidade de que, no momento ulterior de apresentação das alegações finais, aquele que fez imputações tivesse prazo anterior ao que as recebeu, sempre em homenagem e cumprimento aos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Afinal, é regra processual geral aquela de que quem se defende deve atuar sempre por último na dialética. E isso não pode ser considerado como qualquer espécie de “novidade”. Até mesmo fisicamente é sabido que quem ataca age primeiro e quem se defende reage, ou seja, age posteriormente. A regra processual que determina que a defesa feche a dialética, nada mais é do que a transposição teorética para o processo de um fato natural.
A discussão é então muito antiga e pode-se afirmar que se acirra ainda mais com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual deu imenso destaque ao Princípio do Devido Processo Legal e seus corolários básicos da Ampla Defesa e do Contraditório.
O surgimento da inicialmente chamada “Delação Premiada” no Brasil, mediante utilização de modelos estrangeiros, tais como a anglo – saxã “Plea Bargaining” ou o instituto Continental (Italiano) do “Pentitismo”, somente fomentou ainda mais essa antiga questão.
A “Delação Premiada” foi instituída no Brasil inicialmente pela Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) limitada a casos de quadrilha para a prática de crimes hediondos ou equiparados (art. 8º, Parágrafo Único ).
Também na Lei 8137/90, através da Lei 9080/95, foi incluído um Parágrafo Único no artigo 16 daquele diploma legal, prevendo redução de pena de um a dois terços para o coautor ou partícipe que revelasse espontaneamente, em sede de confissão, toda a trama criminosa. Agora também seriam abrangidos os Crimes contra a Ordem Tributária.
Depois foi novamente prevista na Lei 9034/95 (Primeira Lei de Crime Organizado ) ( art. 6º ).
A Lei 9269/96 ampliou a aplicação da delação premiada a quaisquer casos de extorsão mediante sequestro, com a inserção do § 4º do art.159, CP, pois pelas disposições anteriores, somente poderia ocorrer nos casos de quadrilha (Lei 8072/90) ou Organização Criminosa (Lei 9034/95). No § 4º incluído pela Lei 9269/96, qualquer caso de concurso passou a ser abrangido. [2]
Surgiu posteriormente ainda a Lei 9807, de 13 de Julho de 1999, que dispõe sobre a proteção às vítimas, testemunhas e acusados que colaboram no esclarecimento de crimes. Essa lei, em seus artigos 13 e 14, ampliou grandemente o campo de aplicação da delação premiada, que agora não se restringe às quadrilhas (associações criminosas) de crimes hediondos, crime organizado e extorsão mediante sequestro.
Finalmente vêm a lume a Lei 12.850/13, nova Lei do Crime Organizado, que revoga expressamente a antiga Lei 9034/95, passando a regulamentar pormenorizadamente o instituto da “Delação Premiada”, agora com a nova terminologia de “Colaboração Premiada”.
Entretanto, embora fosse conhecida a celeuma acerca da ordem de oferta de alegações pelos réus que acusam outros réus, seja em sede de colaboração ou não, fato é que a Lei 12.850/13 foi omissa em estabelecer uma regra para a ordem dessas alegações, fosse prevendo dispositivo em seu corpo, fosse promovendo alguma alteração no Código de Processo Penal.
Dessa forma, continuou a velha controvérsia: afinal, as alegações poderiam ser contemporâneas ou deveriam ser subsequentes, manifestando-se primeiramente os réus colaboradores e só ao final os réus não colaboradores?
A lacuna legal deixou o procedimento à interpretação dos magistrados que, em sua maioria, determinava a abertura de prazo contemporâneo para as defesas.
A decisão do STF, portanto, vem solver uma antiga celeuma processual penal e constitucional, dando respaldo justificável tecnicamente ao Devido Processo Legal e seus Princípios derivados da Ampla Defesa e do Contraditório.
O problema dessa decisão do STF não está, portanto, no seu aspecto técnico – jurídico, o qual, aliás, parece ser escorreito. Acontece que não se pode conviver com a mentalidade herdada do Positivismo, a qual defende a possiblidade de que tecnocratas atuem com base exclusiva em critérios técnico – científicos, de forma absolutamente imparcial e isenta ou neutra. Essa herança maldita de uma crença fanática na técnica e no cientificismo, nos torna cegos e ingênuos ao ponto de não percebermos que a própria postura infensa à ideologia apregoada pelos positivistas, olvida e oculta que o próprio Positivismo não passa de outra ideologia dentre tantas, senão de uma concepção praticamente religiosa e dogmática.
Não é possível, considerando as circunstâncias que rodeiam a decisão do STF, acreditar que esta foi tomada somente tendo em conta a “imaculada” intenção de proteger o Devido Processo Legal e demais princípios constitucionais garantidores de um processo justo e democrático, com base somente na técnica jurídica.
Isso é impossível, salvo para alguém totalmente iludido e fora de sintonia com o que acontece ao seu redor no mundo social e político.
Como visto, o STF teve oportunidade por muitos anos, melhor dizendo, por muitas décadas, de enfrentar essa questão, mesmo antes que a colaboração premiada fosse utilizada no Brasil. Inobstante, nossa Corte Suprema se manteve silente. Ainda que se considere somente o lapso temporal da edição da Lei 12.850/13, há pelo menos 6 anos de inércia a serem atribuídos ao STF quanto ao tema. Isso sem contar, o que já ocorria desde a origem da então chamada ainda “Delação Premiada”, desde 1990, ou mesmo antes disso, com relação aos interrogatórios em que corréus se acusavam uns aos outros. Esse silêncio eloquente da Corte Suprema, inclusive pode ser uma das causas pelas quais a grande maioria dos magistrados brasileiros não se atenta para essa ordem das alegações finais, seja quando corréus se acusam, ainda que não haja colaboração premiada, seja nos casos de colaboração premiada. O silêncio da Lei Ordinária e a inércia do STF, suposto guardião da Constituição e seus princípios básicos, certamente foi sempre um indicativo de que não havia ilicitude e muito menos inconstitucionalidade no procedimento adotado reiteradamente.
É claro que o fato de a Lei Ordinária ser omissa não impede que o procedimento seja corrigido com base no cumprimento de Princípios Constitucionais (Ampla Defesa e Contraditório) que estão hierarquicamente acima da legislação comum. O que não é compreensível é que o STF tenha, por décadas, permanecido inerte e, repentinamente, se aperceba de uma inconstitucionalidade que, na verdade, macula a grande maioria dos processos nas condições em destaque.
Não é possível comprovar, mas o que parece, o que, na verdade, transparece, é uma ação ardilosa sob o ponto de vista moral e até mesmo jurídico.
Acontece que o mesmo STF decidia reiteradamente que a prisão de uma pessoa, salvo se presentes os motivos e requisitos da Prisão Preventiva, somente poderia se dar após o trânsito em julgado de sentença condenatória. Esse trânsito sempre foi considerado o julgamento de todos os recursos nas esferas ordinária e extraordinária. Num dado momento, em casos rumorosos, altera-se o posicionamento e passa-se a admitir o cumprimento da pena após a decisão de segundo grau, mesmo pendendo outros recursos. Parece que foi uma alteração na interpretação técnica, motivada pela pressão social diante da impunidade de potentados. Novamente, não podemos nos iludir com contos de fada positivistas.
Com essa decisão muitos foram presos, alguns da vala comum, outros de destaque no cenário político e econômico brasileiro. Quando ocorre a mesma situação com o Político Luiz Inácio Lula da Silva, nitidamente se verificou um movimento tímido de hesitação no STF, tendo em conta a dimensão da influência do condenado. Entretanto, logo foi percebido que uma mudança brusca no entendimento, mantendo Lula solto, seria alvo de imensa mobilização e revolta nacional. O STF então se manteve em sua posição antecedente.
Mas, parece que o desejo de desencarcerar a maior figura presa em virtude da chamada Operação Lava – Jato nunca abandonou pelo menos a maioria dos Ministros daquela Corte.
Portanto, o surgimento dessa decisão de anulação de um caso bem mais obscuro da Lava – Jato, mas com nítida possibilidade de repercussão no caso do destacado político Lula, não parece ser algo que se sustente apenas ou nem mesmo preponderantemente na técnica jurídica. Fato é que tal decisão somente é tomada em um momento de fragilidade política do governo atual, que é oposto ao lulismo. A manobra nacional e internacional de difamação do atual Presidente da República quanto à questão ambiental, fragilizando sua posição interna e externamente; o atrito real ou imaginário, mas divulgado abundantemente pela mídia, entre o Presidente da República e o Ministro Sérgio Moro (figura de destaque incontestável na Lava – Jato), causado pela interferência do primeiro na Polícia Federal; o arquivamento de caso envolvendo suspeitas contra um dos filhos do Presidente, entre outras questões, que, ao menos aparentemente, geram uma situação de maior fragilidade política no atual governo, parece que se apresentaram para os Ministros do STF como o momento esperado para poder deflagrar uma espécie de dispositivo incendiário que, de um pequeno foco (caso Bendine) pode ensejar a queima de diversos processos importantes, dentre os quais o mais relevante, ou o que tem o personagem mais relevante para a esquerda nacional, qual seja, o processo de Lula. [3]
Acaso o STF anule também o processo de Lula e mande voltar ao primeiro grau para alegações e nova decisão, a Suprema Corte estará livre de seus grilhões autoimpostos quanto à prisão em segunda instância. Ora, o caso voltará à primeira instância e, salvo no caso de necessidade de decreto de Prisão Preventiva, imporá a soltura do mais destacado réu da Operação Lava – Jato. Afora o efeito de que toda a Operação praticamente desmoronará como em cinzas. Tenha-se ainda em mente o aumento considerável de possibilidades de prescrição e absoluta impunidade de muitos e muitos réus, inclusive o próprio Lula, o qual, como os demais, estará livre para, inclusive, utilizar politicamente essa liberação como se significasse sua inocência, quando, na verdade, será fruto tão somente de manobras judiciais e consequências do reconhecimento de extinção de punibilidade por decurso do tempo.
O mínimo que se espera é que o STF reveja essa decisão em plenário e, ainda que a mantenha no caso isolado, module seus efeitos para os processos vindouros, sem aplicação retroativa, a qual teria efeitos catastróficos. Isso porque não nos parece que, ao contrário da aparente ideia de alguns componentes da Corte Suprema, a desidratação ou queima da Lava – Jato e a soltura de seu principal réu, passarão em branco diante da população brasileira. A fragilidade do governo não parece ser suficiente para isso e, ainda que essa fragilidade seja tão imensa quanto se imagina, não deveriam os Senhores Ministros confundir o Estado brasileiro, com a Sociedade Civil brasileira e muito menos com o Povo brasileiro. Estes, ao que se sente, não mais podem ser ludibriados tão facilmente, de forma que provavelmente haverá reações extremadas e indignadas à percepção de uma impunidade generalizada.
[1] FERNANDES, Augusto. STF anula sentença de Moro que condenou ex – presidente da Petrobrás. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/08/27/interna_politica,779447/stf-anula-sentenca-de-moro-que-condenou-ex-presidente-da-petrobras.shtml, acesso em 29.08.2019.
[2] Usa-se a expressão “quadrilha ou bando” porque as legislações da época a utilizavam. O artigo 288, CP tinha o “nomen juris” de “Quadrilha ou Bando”. Atualmente a terminologia correta seria “Associação Criminosa”, novo “nomen juris” estabelecido para o artigo 288, CP pela Lei 12.850/13.
[3] KADANUS, Kelli, ABRÃO, Camila. Decisão do STF sobre Bendine pode levar à anulação da sentença contra Lula. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/republica/decisao-stf-bendine-levar-anulacao-sentenca-contra-lula/, acesso em 29.08.2019.