Declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil e os direitos sucessórios do companheiro

04/09/2019 às 12:30
Leia nesta página:

Uma abordagem sobre os direitos sucessórios dos conviventes em virtude da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil.

Declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil e os direitos sucessórios do companheiro

 

                                                                                                   

 

                                                                                                    Adriana Antunes Costa

 

 

Resumo

 

O presente artigo examina os direitos sucessórios do companheiro à luz da declaração de insconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil de 2002. Esta relevante decisão do Supremo Tribunal Federal pôs fim a uma injustificável desigualdade no tratamento entre cônjuges e companheiros no que diz respeito à sucessão hereditária. Vindo ao encontro dos anseios de juristas e doutrinadores, a equiparação dos regimes sucessórios atribui efetividade ao reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar legítima.

Palavras-chave: Direito Sucessório. Companheiro. Inconstitucionalidade. Equiparação.

 

Abstract

 

This article examines the partner's inheritance rights in light of the declaration of unconstitutionality of article 1790 of the Civil Code of 2002. This relevant ruling of the Supreme Court has ended an unjustifiable inequality in treatment between spouses and partners with respect to hereditary succession. . Meeting the aspirations of jurists

 

and indoctrinators, the assimilation of succession regimes attributes effectiveness to the constitutional recognition of the stable union as a legitimate family entity.

Keywords: Inheritance Law. Companion. Unconstitutionality. Matching.

 

 

 

1. Introdução

 

            Ao julgar o Recurso Extraordinário n° 878.694/MG, em 10 de maio de 2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, em definitivo, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, firmando a seguinte tese para fins de repercussão geral “no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil” (Repercussão Geral – Info 864[1]). Com essa decisão, a Corte corrigiu uma desigualdade insustentável estabelecida pelo codex civilista, que atribuía direitos sucessórios inferiores ao companheiro em comparação aos garantidos ao cônjuge.

            Não mais se adequava aos preceitos constitucionais da igualdade e da proteção da união estável como legítima entidade familiar que o convivente supérstite encontrasse limites em sua participação na sucessão do outro. Muitos doutrinadores e julgadores já reputavam inconstitucional o tratamento diferenciado estabelecido pelo Código Civil, de modo que a decisão do STF veio ao encontro dos anseios desses estudiosos.

            Cumpre notar, porém, que, a despeito do avanço representado por este julgamento, um outro aspecto relevante para a seara do direito sucessório ficou em aberto: a inclusão ou não do companheiro (no mesmo patamar que o cônjuge) no rol dos herdeiros necessários do art. 1.845 do C.C/02. Tal questão é de fundamental relevância notadamente no que diz respeito à sucessão testamentária.

            Diante deste cenário, o presente estudo visa a apresentar, com base em posicionamentos doutrinários, como se dá a participação do companheiro no Direito das Sucessões tendo por pilar a tese firmada pela Corte Constitucional.

 

2. União estável e sua proteção constitucional

 

            A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 226, §3°[2] reconheceu a união estável como entidade familiar, garantindo-lhe proteção do Estado e facilitação de sua conversão em casamento. Pode-se conceituar união estável como uma relação afetiva de convivência pública e duradoura entre duas pessoas, do mesmo sexo ou não, com o objetivo imediato de constituição de família (Stolze, 2018, p.1.309).

            Diante do mandamento constitucional e para efetivar os direitos dos conviventes, foram editadas as leis 8.971, de 29 de dezembro de 1994 (que regulamentou os direitos dos companheiros aos alimentos e à sucessão) e 9.278, de 10 de maio de 1996 (que derrogou o diploma anterior — principalmente no que aludia à exigência de prazo mínimo para configuração da união estável — e ampliou o alcance de tutela dos companheiros).

           

 

Vale ressaltar que em comparação ao Código Civil de 1.916 (vigente à época), a lei 8.971/94[3] foi mais benéfica uma vez que garantiu ao convivente a totalidade da herança caso inexistissem ascendentes ou descendentes.

            Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, ambas as leis restaram tacitamente revogadas, já que o novo diploma tratou dos aspectos pessoais, patrimoniais e sucessórios da união estável. Porém, de forma inexplicável, o CC/02, em seu artigo 1.790, atribuiu aos companheiros proteção inferior àquela conferida anteriormente pelas citadas leis. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:

                                              

Em linhas gerais, o dispositivo restringe o direito do companheiro aos bens que tenham sido adquiridos onerosamente na vigência da união estável; faz distição entre a concorrência do companheiro com filhos comuns ou só do falecido; prevê o direito apenas à metade do que couber aos que descenderem somente do autor da herança e estabelece um terço na concorrência com herdeiros de outras classes que não os descendentes do falecido; não beneficia o companheiro com quinhão mínimo na concorrência com os demais herdeiros nem o inclui no rol dos herdeiros necessários; concorre com um terço também com os calotarais e só é chamado a recolher a totalidade da herança na falta destes. (Gonçalves, 2010, p.190)

 

Evidencia-se, com isso, que o novo Código relegou aos companheiros uma posição extremamente inferior, na sucessão hereditária, se comparada ao status sucessório dos cônjuges.

 

3. Sucessão do cônjuge X Sucessão do companheiro

 

            Em apertada exposição, é possível elencar as seguintes diferenciações nos regimes sucessórios estabelecidos pelo diploma civil de 2002: na sucessão legítima[4], o cônjuge concorre (I) com os descendentes — salvo nas hipóteses em que já faça jus à meação em virtude do regime de bens —, (II) com os ascendentes. Não existindo descendentes nem ascendentes, o cônjuge herda a totalidade da herança.

            Na hipótese de concorrência com descendentes, o cônjuge recebe quinhão igual ao destinado a estes, não podendo, todavia, sua quota ser inferior a 1/4 da herança se for ascendente dos herdeiros com os quais concorrer. Note-se que há uma reserva de quarta parte da herança caso o cônjuge supérstite concorra com mais de três descendentes do falecido. Já na concorrência com ascendentes, ao cônjuge caberá 1/3 da herança, caso concorra com ascendentes em primeiro grau (pai e mãe) do falecido ou fará jus à metade, nas hipóteses de concorrer com um só ascendente. Na inexistência de descendentes ou ascendentes, toca ao sobrevivo a totalidade dos bens.

            Estabelecidos tais parâmetros, passa-se à apreciação do artigo 1.790 do CC/ 2002:

         Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

 

            De início, percebe-se que o caput do referido artigo limitava o direito sucessório do companheiro ou companheira somente aos bens adquiridos onerosamente durante a união, excluindo, dessa forma, os bens particulares do de cujus. Logo, caso o falecido não tenha adquirido bens durante a convivência, ainda que tenha deixado valioso patrimônio amealhado antes da união estável, o companheiro nada herdará.

            No que tange à concorrência com descendentes, havia os seguintes cenários: (I) ao concorrer com filhos comuns, ao companheiro caberia quota equivalente à que for por lei atribuída ao filho. Faz-se mister notar que a legislação não assegurava reserva de quarta parte da herança ao companheiro sobrevivo. Na hipótese de concorrência com descendentes só do autor da herança (II), tocar-lhe-ia metade do que coubesse a cada um daqueles. Desse modo, a partilha se faz na proporção de dois para um, entregando-se ao companheiro sobrevivente uma parte da herança e, a cada um dos descendentes, o dobro do que a ele couber. (Gonçalves, 2010, p. 194)

            Em seu inciso III, o art. 1.790 determinava que na hipótese de concorrência com outros parentes sucessíveis, teria o companheiro direito a 1/3 da herança. Deve-se entender a expressão “parentes sucessíveis” como ascendentes ou colaterais até o quarto grau (irmãos, sobrinhos, tios, tios-avós e sobrinhos-netos) do autor da herança. Fica latente a posição desconfortável do convivente em relação a parentes longínquos do falecido.

            Do exposto, imaginando-se que o falecido tenha deixado apenas a mãe e a companheira, a esta caberia a penas 1/3 da herança, situação bem diferente se comparada à decorrente da relação de casamento, na qual o cônjuge supérstite tem garantido, em idêntica situação, metade do patrimônio deixado.

            Não é difícil apontar as diversas inconstitucionalidades que maculavam esse artigo. Desprestigiar a posição do companheiro sobrevivente limitando seu direito à sucessão do outro representava um retrocesso e contrariava a disposição constitucional protetiva da entidade familiar estruturada por meio da união estável.

 

4. A declaração de insconstitucionalidade do artigo 1.790 C.C/2002

 

            Em 10 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal, através do RE 878.694/MG, reconheceu, por 8 votos a 3, a incostitucionalidade do art. 1.790 do C.Civil de 2002. Votaram pela inconstitucionalidade, além do Ministro Relator Luis Roberto Barroso, os Ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki (e Alexandre de Moraes em substituição), Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Gilmar Mendese Cármen Lúcia. Foram vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. A ementa foi assim elaborada pelo Ministro Relator:

 

DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.

 

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.

 

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.

 

3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso.

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4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

 

5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

 

 

Acrescenta, ainda, o Ministro que o referido artigo, além de violar a igualdade de hierarquia entre as entidades familiares, violou também os princípios da dignidade da pessoa humana, o da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e o da vedação ao retrocesso.

Quanto aos efeitos da decisão, entendeu o Relator que o novel posicionamento deve ser aplicado apenas aos processos judiciais nos quais não tenha ocorrido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais que ainda não tenham sido lavradas em escritura pública, com o intuido de reduzir a insegurança jurídica.

Vale ressaltar que o decisium não esclareceu se, em decorrência dessa equiparação, o companheiro passou, também, a ostentar o status de herdeiro necessário, assim como o cônjuge, conforme reza o artigo 1.845 do Código Civil/2002. Diante da omissão, foram interpostos embargos de declaração, que foram rejeitados sob o argumento de que o objeto da repercussão geral não abrangia o citado artigo.

Ainda assim, corrente considerável da doutrina defende que o companheiro, de fato, seja considerado herdeiro necessário com fundamento nos mesmos princípios que consubstanciaram a decisão no Recurso Extraordinário: igualdade, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e vedação ao retrocesso.

 

 

 

 

 

5. Conclusão

 

            O reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 CC/02 consagrou a tão defendida equiparação entre união estável e casamento no que pertine à sucessão legítima. Ao garantir ao companheiro os mesmos direitos sucessórios atribuídos ao cônjuge retifica-se um posicionamento discriminatório inconcebível adotado pelo diploma civil.

            Há muito ainda que se avançar no tratamento da união estável em nosso ordenamento jurídico, porém é inegável que o STF deu um passo relevante nessa temática. Nada mais justo que garantir ao companheiro sobrevivente a participação na sucessão do de cujus nos mesmos moldes talhados para as pessoas unidas pelo casamento.

É inevitável reconhecer que a Constituição Federal veda qualquer tratamento diferenciado entre as entidades familiares nela consagradas. Desta feita, não poderia o diploma Civil simplesmente ignorar  o preceito protetivo estatuído pela Carta e segregar os conviventes, infringindo os primados da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Por fim, reitera-se a importância dessa decisão e aguarda-se que o Supremo se posicione de maneira indubitável acerca da inclusão do companheiro no mesmo patamar do cônjuge no rol dos herdeiros necessários.

 

 

 

Referências

 

 

BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em < www.planalto.gov.br> Acesso em 13 de junho de 2019.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Atualizada até a Emenda Constitucional nº 72. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em 13 jul. 2013.

Cavalcante. Márcio André Lopes. Informativo comentado: informativo 864 STF. Disponível em < www.dizerodireito.com.br> Acesso em 29 de junho de 2019.

 

GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Sucessões. Volume 7. 4ªed. São Paulo, 2010.

 

STOLZE, Pablo; FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. 2ªed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

 

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 8ªed. São Paulo: GEN, 2018 (Volume Único).

_____________. STF encerra o julgamento sobre a insconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. E agora? Disponível em < www.migalhas.com.br> Acesso em 26 de junho de 2019.

______________. Direito Civil. Direito de Família. Volume 5. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

 

 

 

 

 

 

 


[1] No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil. STF. Plenário. RE 646721/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso e RE 878694/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 10/5/2017 (repercussão geral) (Info 864).

 

 

[2] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

   (...)  § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.  

 

  [3] Art. 2º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:

        I - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou comuns;

        II - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

        III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança

 

[4] Sucessão legítima é a que decorre da lei. Em caso de inexistência ou invalidade do testamento, ou em relação aos bens não compreendidos nesse, é a lei quem determina quem herdará e como participará na herança.

 

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