Já é mais do que sabido que a violência doméstica nem sempre foi compreendida como violência conceitual e formal perante a sociedade e as autoridades. É inegável o fato de que ainda existe em nosso país uma hierarquia subjetiva entre o feminino e o masculino, da mesma forma que 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram algum tipo de violência em relacionamentos, segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (nov/2014).
A violência é um fenômeno social que atinge meninas e mulheres, em todo o mundo, sejam elas de diferentes culturas, idades, classe social, raça e etnia, trazendo com isso inúmeros efeitos negativos para a pessoa, afetando não somente a saúde física, mas a saúde psicológica e comportamental, tendo seus reflexos em toda a sociedade. O Mapa da Violência 2015 mostra maior impacto da violência sobre as mulheres negras. Considerando os dados de 2003 a 2013, houve uma queda de 9,8% no total de homicídios de mulheres brancas e um aumento de 54,2% no número de homicídios de mulheres negras. Em 2013 foram registrados 4.762 assassinatos de mulheres. Destes, 50,3% foram cometidos por familiares, e neste universo, 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex-companheiro, de acordo com essa mesma pesquisa. Em relação ao local das agressões, cerca de 27,1% dos homicídos de mulheres ocorrem dentro de seus próprios domicílios, em contraposição dos homicídios masculinos, que são assassinados na grande maioria por arma de fogo (73,2%) e as mulheres por arma de fogo (48,3%), estrangulamento/sufocação/cortante/penetrante e objeto contundente, indicando maior presença de crimes de ódio por motivos fúteis e banais.
Analisando a história brasileira, vemos que a legislação portuguesa (Ordenações Filipinas) vigorou em nosso país até a criação do antigo Código Civil em 1916. Em seu TITULO LXI constava que as mulheres não podiam praticar atos da vida civil devido a sua fraqueza de entendimento e instabilidade emocional. Nessa época, era permitido que as mulheres fossem castigadas por seus pais ou maridos, tidos como seus representantes legais, e até mesmo podiam ser mortas justificadamente, se fossem pegas em adultério. Não havia nenhuma espécie de punibilidade para as agressões contra as mulheres, deixando os responsáveis isentos de qualquer culpa.
Em 1830 havia o famoso crime de adultério, previsto no Código Criminal, onde transparece total desproporção entre a punibilidade da mulher e do homem. Para a mulher, seria crime em qualquer circunstância sem necessidade de provas. Para o homem, somente se o relacionamento fosse público, duradouro e estável. No Código Penal de 1940 foram criados os “crimes de paixão” mais conhecidos como crimes passionais, cometidos pelos uxoricidas, assim chamados os noivos, amantes, companheiros e maridos acusados de matar suas companheiras. Esse mesmo código previa que não era crime, pois os acusados estavam sob total privação dos sentidos e da inteligência no momento do crime. Foram necessárias muitas mortes de mulheres para que o código trouxesse “que a emoção ou a paixão não excluem responsabilidade penal”. O que não adiantou, visto que eram aceitos inúmeros argumentos para extinguir a punibilidade dos uxoricidas. Somente em 1991 o STJ decidiu que “ a honra é atributo pessoal e, no caso, a honra ferida é a da mulher”.
Em 1970 iniciaram-se movimentos feministas, trazendo consigo algumas reformas legais. Foi criada, mais adiante, a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes e houve também o Lobby do Batom, aliança formada por deputadas e senadoras. Em fevereiro de 1932, Getúlio Vargas assinou o tão esperado direito de voto. As mulheres brasileiras puderam votar em seus candidatos para a Assembleia Constituinte em todo o país, mas o voto feminino ainda era facultativo. Somente com a promulgação da nova Carta Magna de 1934 o direito feminino de se alistar foi transformado em dever. Enfim, a nossa atual Constituição Federal, de 1988, trás em seu Art. 5°: “I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;” O homem não é mais a figura de chefe da relação conjugal em nosso Código Civil, foi criada a lei do Feminicídio (13.104/15) e, também, a Lei Maria da Penha, com o intuito de coibir qualquer tipo de violência e discriminação contra a mulher. A lei é considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres.
Art. 6º Lei Maria da Penha: A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.
Maria da Penha era casada, vítima de violência doméstica por 23 anos. O marido, por duas vezes, tentou assassiná-la. Na primeira vez, com arma de fogo, deixando-a paraplégica, e na segunda, por eletrocussão e afogamento. Após essa tentativa de homicídio ela o denunciou, pôde então sair de casa devido a uma ordem judicial e iniciou a batalha para que seu então marido fosse condenado. Entretanto, o caso foi julgado duas vezes e, devido alegações da defesa de que haveria irregularidades, o processo continuou em aberto por alguns anos. Em 1998, Maria da Penha e duas Organizações Não Governamentais (CEJIL e CLADEM) entraram com uma petição contra o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, denunciando a tolerância do Estado brasileiro com a violência doméstica. O Estado brasileiro não ofereceu resposta. A conclusão da Comissão Internacional dos Direitos Humanos (Relatório 5401) foi entendida que o Estado brasileiro violou as garantias judiciais e a proteção judicial em prejuízo de Maria da Penha Fernandes. Entendeu, também, que a violação ocorre como parte de um padrão discriminatório com respeito à tolerabilidade à violência doméstica contra as mulheres no Brasil, fazendo algumas recomendações, e o governo brasileiro se viu obrigado a criar e aprovar um novo dispositivo legal que trouxesse maior eficácia na prevenção e punição dessa violência doméstica e familiar.
A LMP define especificamente algumas das violências contra a mulher: A violência patrimonial ou econômica, entendida como qualquer controle ou manutenção das finanças da vítima, proibição do acesso da mesma ao dinheiro, imposição de dependência financeira, proibição de trabalho e estudo e destruição ou subtração de bens materiais, documentos e instrumentos de trabalho; a violência física, que compreende maneiras de agir que violam os preceitos a integridade ou a saúde da mulher, como empurrar, puxar, agarrar, esbofetear, esmurrar, amarrar, realizar intimidações físicas como bloquear portas e janelas, arremessar objetos, perseguir ou fazer uso de armas; A violência sexual, que engloba os atos que forcem ou constranjam a mulher a presenciar, continuar ou participar de relações sexuais não desejadas, com intervenção de força física ou ameaça, como ataque a partes vulneráveis do corpo, atos sexuais forçados, estupro (inclusive o conjugal); a Violência emocional, psicológica ou abuso verbal, entendida como qualquer comportamento que cause à mulher um dano emocional, diminuindo sua auto-estima, causando constrangimentos e humilhações, como ameaças e uso de táticas coercivas, controle sobre atos da vítima, ataques a autoestima, menosprezo, culpabilização da própria vítima dos atos cometidos contra ela, ameaças a filhos ou animais de estimação, isolamento da vítima de amigos e familiares, gritarias, xingamentos, questionamentos constantes; e a Violência moral: entendida como qualquer conduta que represente calúnia, difamação e/ou injúria, por meio de falsas acusações, ofensa a honra e a reputação, e ataques às qualidades “subjetivas”.
Art. 2º: Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Recentemente, houve modificações na LMP, possibilitando que o delegado de polícia determine medidas protetivas à mulher ofendida pelo companheiro. Possibilitou, também, que verificada a existência de risco circunstancial ou iminente à vida ou integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar (ou de dependentes), o agressor poderá ser afastado imediatamente do lar, domicílio ou lugar de convivência (seja qual for) pelo juiz, pelo delegado de polícia quando o município não for sede de comarca, pelo policial (civil ou militar), quando não houver juiz nem delegado disponível no momento da “denúncia”. Deve ser feita a comunicação da medida ao juiz, no prazo máximo de 24 horas, decidindo em igual prazo, para manter ou revogar a medida, cientificando o Ministério Público. Inseriu-se, na Lei Maria da Penha, o artigo 12-C, nos seguintes termos:
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I - pela autoridade judicial;
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§ 1º. Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.
§ 2º. Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.
Outras características da LMP, é que a violência doméstica pode ser um agravante de pena. Hoje, não é mais permitido substituir pena por doação de cestas básicas ou multas, visto que não há valor em dinheiro para a conservação da dignidade humana. Há assistência econômica nos casos da vítima ser dependente do agressor (tendo em vista que a maioria das mulheres não denunciam o agressor justamente por medo de perderem o sustento alimentício básico, geralmente nos casos em que há filhos). Além da prisão do suspeito de agressão, o mesmo será afastado da vítima e de seus parentes. Existe o número 180, no qual a mulher pode ligar e denunciar o agressor se achar que o mesmo coincide com qualquer das formas de violência citadas acima. Existem também casas-abrigo, como a Casa da Mulher Brasileira para acolher a mulher que não tem para onde ir.
Art. 3° Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
A Lei Maria da Penha define também em seu texto o seu âmbito de sua atuação:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Estamos caminhando sistematicamente para que exista a punibilidade de todos os agressores, sem que seja preciso haver mais mortes de mulheres como vítimas de violência. No Brasil existem Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, para processamento e julgamento, exceto crimes dolosos contra a vida. Naqueles municípios que não há os Juizados, a LMP estabelece a competência das Varas Criminais. Há atendimentos multidisciplinares, realizadas pelas equipes de acompanhamento psicológico, jurídico e de saúde. É obrigatório o acompanhamento da mulher em situação de violência por advogado(a), para garantir às mulheres maior informação acerca dos acontecimentos, o direito de se manifestar tanto no processo quanto nas audiências sem abrir mão do acompanhamento técnico, salvo medidas protetivas que dispensam tal necessidade. Trata-se de várias medidas proporcionadas pela LMP, que hoje nos permite acreditar em igualdade de gênero. Não abordei toda a lei, o que deixo para o leitor a dica de uma leitura mais aprofundada da 11.340/06, não sendo uma lei extensa tampouco de difícil compreensão, mas que há de esclarecer muitas dúvidas. O que trago é a demonstração de que, ao longo dos anos, houve uma luta diária e sofrida de muitas mulheres para que fosse enfim atingida uma igualdade de entendimento, julgamento e medidas de proteção. Na sociedade brasileira de outrora, foi desenvolvida uma cultura completamente equivocada de patriarcado, que ainda insiste em expandir suas raízes nos dias atuais, de forma que aceitar a possibilidade de mudanças conceituais e tipológicas com relação à violência tende a parecer um pensamento distorcido. A nossa Constituição Federal de 1988 trás em seu texto muitas garantias e direitos que quando violados e ameaçados, não devem ser excluídos da apreciação judiciária. É uma obrigação do Estado e dos operantes que auxiliem na luta contra a violência, assim como é imprescindível que todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente em casos de violência se utilizem dos meios legais oferecidos como recurso, diminuindo as estatísticas que continuam sendo agravadas pela desestruturação familiar, desenvolvimento de sociopatias e crescente vulnerabilidade econômica.