Detenção e posse

Leia nesta página:

Tentativa de percepção técnica da posse.

Detenção e Posse

 

 

Trabalhando os conceitos

      Propriedade e posse são fenômenos jurídicos que se entrelaçam. Antropólogos ensinam que a propriedade privada somente surgiu nas sociedades agrícolas. Antes, nas sociedades de bandos de caçadores-coletores, desconhecia-se a propriedade e a posse tinha uma dimensão comunal.

            Embora estudada desde a Antiguidade (sobretudo em Roma), a posse somente no século 19, com Savigny e Ihering, tiverem seus contornos teorizados. De modo sucinto, essas percepções podem ser vistas assim: para Savigny, a posse resulta da combinação de dois elementos: “corpus” (detenção da coisa) e “animus” (intenção dono); para Ihering, a posse está no exercício, em nome próprio, de algum dos poderes da propriedade.

            Observe-se, porém, que a divergência entre duas percepções é mais aparente do que real. A rigor, ambas as percepções dizem a mesma coisa, se percebido que a intenção de ter a coisa como sua não pode ser detectada no interior do ocupante da coisa, mas se exterioriza pela conduta dele: os atos do ocupante é que revelam o ânimo de dono, ou exercício, em nome próprio, de poderes inerentes à propriedade (art. 1.204 do Código Civil). Aliás, enfrenta-se a mesma a dificuldade em identificar quem se conduz como se dono fosse e de quem exerce, em nome próprio, de algum dos poderes da propriedade.

            A posse, como qualquer direito real, tem como ponto nuclear de sua disciplina legal a aquisição. Assim, só é proprietário quem adquire o domínio por um dos modos previstos na lei.  Quanto à posse, a técnica usada no ponto é enunciar os elementos formativos dela (ocupação + conduta de dono) e elencar as situações em que, a priori, a ocupação da coisa não agrega conduta de dono, mesmo estando sendo exercido poder inerente à propriedade (o uso). Eis o que consta da lei:

Art. 1.204 Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.

Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.

Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.

            Nos artigos transcritos, a lei visualiza situações incompatíveis com o ânimo/conduta de dono ou o exercício, em nome próprio, de algum dos poderes da propriedade, e as disciplina como naturalmente excludentes da posse:

            i) ocupação da coisa por ordem ou tolerância de outrem: presença da figura de terceiro que se conduz como dono; na hipótese, a ocupação funda-se em algum vínculo jurídico entre o ocupante e o terceiro e, por isso, inibe-se a posse por impossível emergência do ânimo /conduta de dono, enquanto o quadro permanecer tal;

            ii) ocupação estabelecida de modo violento (com uso da força ou de ameaça) ou de modo clandestino (às escondidas) ou ardiloso (com astúcia ou esperteza) assenta-se em ocupação contrária à ordem jurídica, que não pode gerar ânimo/conduta de dono, enquanto permanecer tal;

            iii) ocupação em razão de um direito pessoal ou direito real limitado configura detenção jurídica e, portanto, legítima, mas não comporta posse, porque a relação entre o ocupante e aquele que titulariza o direito de fundo inibe a emergência do ânimo de dono (exemplos: o locatário, o comodatário, o credor pignoratício, o devedor fiduciante etc., esta hipótese é de detenção jurídica).

            À vista desse quadro disciplinar, seguramente é sensata a conclusão de que  possuidor é aquele que ocupa a coisa com ânimo (conduta) de dono segundo a lei.

A doutrina tradicional

            Além de mal compreender o conceito de posse, a doutrina tradicional opõe ferrenha resistência a admiti-la como um direito real.

            Vejam-se, por exemplo, estas opiniões:

Qualquer direito subjetivo tem origem em um fato jurídico. Todavia, a polêmica despertada pela natureza da posse – fato ou direito – é intensificada pela inexistência de uma terminologia capaz de distinguir o fato jurídico que lhe dá origem do direito subjetivo que o secunda. Exemplificando: a morte (fato jurídico stricto sensu) provoca o direito subjetivo de suceder; o contrato (negócio jurídico) desencadeia o direito subjetivo ao credito. Nada obstante, na matéria em relevo, o fato jurídico posse desencadeia o direito de possuir, independentemente de qualquer cogitação sobre a propriedade. (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosevald. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ed. 2, p. 34-35)

            Mas se encontra sobre o tema opinião como esta:

A expressão posse é ambígua e designa tanto o fato jurídico que, na norma, é descrito como antecedente do direito aos interditos ou à aquisição por usucapião como a faculdade de agir em defesa de seus interesses, quando ameaçados ou lesionados.

[...]

E nesse sentido da faculdade de agir também se emprega a expressão “propriedade”. A qual desses significados corresponderia a essência do conceito é questão metafísica, sem qualquer relevância tecnológica. (Fábio Ulhoa Coelho. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16/17)  

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            Pela análise até aqui feita, a posse tanto permite um trato conceitual preciso, como também sua inclusão no rol dos direitos reais. Vê-la como direito subjetivo exige apenas a compreensão de que um direito subjetivo não é mais do que um interesse juridicamente protegido, ou poder/poderes que a ordem jurídica assegura em razão da ocorrência de um fato/ato. Sem dúvida, a posse é um direito real como qualquer outro, e o que tem empanado essa percepção é a teimosa resistência à sua aceitação. Por sua extensa disciplina jurídica, a posse abrange poderes de ação e de defesa – e o que se exerce e se defende por força de lei é rigorosamente um direito, como qualquer outro.   

            O titular de posse pode adquirir o domínio da coisa por usucapião, satisfeitos os requisitos legais, e, se esbulhado ou turbado, tem franqueada a utilização das ações possessórias. A posse também pode ser transmitida a título universal ou singular. A singularidade é que, se contestada a qualquer tempo, terá de ser demonstrada por via de ação ou de defesa, em juízo. Nada impediria que houvesse uma ação judicial para provar a posse, possibilitando seu registro imobiliário, cancelável como qualquer direito real, nas hipóteses da lei.

Classificação da posse      

            O conceito de posse, além de impreciso e mal ordenado, tem dado lugar a classificações que o distorcem:

            a) posse direta e posse indireta: a chamada posse indireta é, na realidade, uma detenção jurídica: deter a coisa por ordem de outrem ou instrução de outrem ou no exercício de um direito pessoal ou real limitado (locatário, comodatário, devedor fiduciário, credor pignoratício);

            b) posse legítima e posse ilegítima: legítima ou ilegítima não é a posse em si – ela nasce atendidas as exigências da lei –, mas a detenção: deter a coisa em situação contrária à ordem jurídica (nos casos de violência, clandestinidade ou ardilosidade)  impossibilita a emergência do ânimo de dono; em tais situações o que existe é detenção ilegítima;

            c) posse justa e posse injusta: posse é simplesmente posse; se há alguma razão de justiça obstativa da emergência da posse, esta não nasce, ter-se-á detenção injusta;  

            d) posse de boa-fé ou de má-fé: o detentor de má-fé assume conduta social  contrária à ordem, e isso exclui o ânimo de dono, razão por que a posse não emerge; tem-se detenção de má-fé.

            Do ponto de vista da precisão terminológica, uma questão assume a maior importância: a distinção entre detenção fática e detenção jurídica. A detenção jurídica (decorrente de relação jurídica: locatário, devedor fiduciário etc) tem ínsita a exclusão do ânimo de dono e, portanto, não comporta posse. Já a detenção fática é aquela apta a  gerar posse, se satisfeitos os demais requisitos de lei. Nada impede que a lei confira ao detentor legítimo as ações possessórias.

            Embora arraigada no mundo jurídico a costumeira repetição do “quem disse o quê”, numa postura escolástica de absoluto acatamento de opiniões antigas porque emanadas de autoridades do passado, esse proceder na seara da posse tem impedido a formação de trato e terminologia precisos.

            Em conclusão, não é exagero dizer que, na disciplina da posse, o Código Civil (CC), tanto o atual quanto o anterior, carrega muito dos defeitos de percepção da doutrina tradicional.

 

Sobre os autores
Erivaldo Santana

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Ceará. Ex-Promotor de Justiça do MP do Ceará. Juiz inativo do Trabalho do TRT7. Integrante do escritório de advocacia Santana e Basílio, em Brejo Santo/CE. E-mail: [email protected]

Sérgio Vasconcelos Santana

Graduado pela PUC-PE e prós-graduado em Direito Civil pela URCA. Advogado no escritório Basílio e Santana, em Brejo Santo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

É uma tentativa de percepção técnica da posse.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos