Portar arma de fogo sendo produto de crime: receptação ou porte ilegal ou os dois? Parte 2

Do direto das doutrinas que construiu três princípios norteadores para solução das antinomias e jurisprudências.

17/09/2019 às 01:50
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No meu entendimento o nobre Professor Dr. mantém seu fundamento com base na inaplicabilidade do princípio da consunção entre os delitos de receptação e porte ilegal de arma de fogo, por ser diversa a natureza jurídica dos tipos penais, neste mesmo sent..

No artigo anterior contamos como gerou esta duvida, confira:

Portar arma de fogo sendo produto de crime: receptação ou porte ilegal ou os dois? Parte 1.

Continuando...

No meu entendimento o nobre Professor Dr. mantém seu fundamento com base na inaplicabilidade do princípio da consunção entre os delitos de receptação e porte ilegal de arma de fogo, por ser diversa a natureza jurídica dos tipos penais, neste mesmo sentido entende nossos tribunais a cerca do princípio da consunção em casos parecidos.

É notável a pacificação deste entendimento do princípio da consunção por vários tribunais, muitos recursos não foram PROVIDOS por ter como argumento este princípio.

Devemo-nos observar como a doutrina construiu três princípios norteadores para solução das antinomias:

i) O princípio da subsidiariedade;

ii) O princípio da consunção;

iii) O princípio da especialidade.

É sobre a incidência deste último princípio que onde se aplica na presente questão, e assim, afastar potencias conflitos aparente de normas penais, não somente utilizando o Princípio da Consunção ou Absorção.

Devemos pensar também que esse objeto produto de crime, possui uma condição especial, qual seja, é uma arma de fogo, cuja

disciplina legal e condutas ilícitas estão previstas na lei do Estatuto do Desarmamento em seu art. 14 da lei nº 10.826/03.

Temos estabelecido, pois, um conflito aparente de normas penais que, em tese, podem incidir sobre o mesmo fato, os verbos adquirirrecebertransportar ocultar, previstos no tipo do art. 14 da lei nº 10.826/03, estão expressos, também, no art. 180 do CP.

Para a solução dos conflitos aparentes de normas, a doutrina penal traz a aplicação de princípios, entre os quais, o Princípio da Especialidade.

Princípio da especialidade, a lei especial revoga a geral, uma norma especial acrescenta elemento próprio à descrição típica prevista. Este princípio determina que haverá a prevalência da norma especial sobre a geral, evitando o "bis in idem" , e pode ser estabelecido in abstracto, enquanto os outros princípios exigem o confronto in concreto das leis que definem o mesmo fato. Tem-se que no conflito entre um tipo penal específico e um tipo penal genérico, prevalece o específico.

O tipo penal específico (que pode estar contido no Código Penal ou na legislação penal especial) contém todos os elementos do tipo penal genérico e outros que caracterizam a especialidade. Existe uma relação de gênero e espécie. Esses elementos específicos são chamados de especializantes, os quais podem tornar o fato mais grave ou mais benéfico ao agente.

Uma norma será especial em relação à outra, quando definir legalmente e prever todos os elementos típicos que a norma geral possui, e mais alguns elementos, que dão outro objetivo ou abrangência à norma jurídica.

Especificamente, neste caso da Lei nº 10.826/03, que tem o objetivo de regulamentar as condições de registro e porte de armas de fogo, estabelecendo, também, definições de crimes que envolvem o porte e uso irregulares desse objeto chamado "arma". No caso, a norma insculpida no art. 14 da Lei nº 10.826/03, transcreve algumas condutas previstas no art. 180 do CP, tais como adquirirrecebertransportar ou ocultar, mas refere-se, especificamente, ao objeto arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Apenas essa coisa móvel "arma de fogo" tem a aplicação prevista no art. 14 da referida lei e, da mesma forma, somente esse tipo do art. 14 da Lei nº 10.826/03 incide quando o objeto adquiridorecebidotransportado ou ocultado for uma arma de fogo, tenha ela sido furtada, roubada ou apenas adquirida sem as formalidades legais.

Ademais, o art. 14, traz, em sua parte final, o elemento normativo que define quando os verbos narrados no início do artigo passam a constituir o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido: a conduta tem que ocorrer sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Sem sombra de dúvidas, quando a norma versa "em desacordo com determinação legal ou regulamentar", quer prever todas as formas de obtenção, porte ou detenção ilegais de arma.

A mesma especificidade de objeto e consequente aplicação da lei especial ocorrem quando, a coisa "receptada" for moeda corrente falsa, aplicando-se unicamente a norma do art. 289, § 1º, do CP, sendo absurdo cogitar da aplicação do delito de "receptação".

Observando outro exemplo de especificidade de objeto temos as substâncias entorpecentes não deixa de ter essa condição quando, por exemplo, for furtada ou roubada de um laboratório que a utiliza com permissão do Ministério da Saúde, ou, até mesmo de um outro traficante, uma arma de fogo não deixa de ser "arma de fogo" por ter sido furtada, roubada ou apenas adquirida sem as formalidades legais.

É válido, também, na definição de que norma incide na situação comentada, verificarmos qual valor jurídico está sendo violado com a conduta de portar arma de fogo roubada, furtada ou apenas adquirida sem as formalidades legais. O crime, pelo fato da arma ser objeto de um crime, não passou a ser delito contra o patrimônio, como é o caso do crime de receptação.

Além disso, é interessante lembrar que o princípio da especialidade afasta a incidência de dois tipos a uma mesma conduta, ou seja, impede que ocorra o “bis in idem” e, por consequência, evita que a punição seja duplamente aplicada em face de um mesmo delito.

Segunda a doutrina e jurisprudência pátrias, quando o agente adquire arma de fogo, acessório munição de uso permitido, de procedência ilícita, comete o crime previsto no artigo 14 da lei nº. 10.826/03 – Estatuto do Desarmamento.

Nesse caso não se aplica a regra do artigo 180 do CP, que dispõe sobre a receptação, em face do princípio da especialidade do crime definido pelo artigo 14 da Lei nº. 10.826/03. Pode-se falar ainda na incidência do princípio da subsidiariedade, pois a norma primária do artigo 14 da lei nº. 10.826/03 afasta a aplicação do artigo 180, caput, do CP.

Nesse sentido seguem abaixo jurisprudências acerca do tema:

LEI N.º 10.826/03. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. ART. 16. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGODE USO RESTRITO. CÓDIGO PENAL. ART. 180. RECEPTAÇÃO. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. A materialidade está demonstrada pelo auto de apreensão, pelo laudo pericial do Instituto-Geral de Perícias, bem como pelos demais elementos constantes nos autos. A autoria também é certa. ABOLITIO CRIMINIS. O pedido da Defesa para absolver o réu com base na abolitio criminis não merece prosperar. Apreensão de uma espingarda e diversas munições. Arma e munição de uso restrito. Impossibilidade de registro. INCONSTITUCIONALIDADE. E não há inconstitucionalidade nas figuras dos crimes de perigo abstrato. RECEPTAÇÃO. Pelo princípio da especialidade, adquirir - de qualquer forma - arma de fogo, no caso em tela, acessório de arma de fogo, sem observância das formalidades legais, pode constituir crime do Estatuto do Desarmamento. Por este motivo, não pode ser objeto de receptação, sob pena de responder por dois crimes, com apenas uma conduta. Induvidosa a existência do fato, com a apreensão de um cano de arma de fogo com luneta, objeto de furto. Autoria demonstrada pelas circunstâncias. Condenação mantida. APELO DEFENSIVO PROVIDO EM PARTE. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70046123154, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 14/06/2012).

Outra jurisprudência acerca do tema, e possível perceber que “veste como uma luva” no caso em tela:

APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE ILEGAL DE ARMA. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. CONFISSÃO DO AGENTE EM HARMONIA COM OS DEMAIS ELEMENTOS DE PROVAS. CONDENAÇÃO MANTIDA. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E RECEPTAÇÃO DO MESMO ARTEFATO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. INCIDÊNCIA DAS NORMAS PRECONIZADAS NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. CONFIGURAÇÃO APENAS DO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 14 DA LEI N. 10.826/06, QUE TAMBÉM PREVÊ A CONDUTA DE ADQUIRIR ARMA DE FOGO, ACESSÓRIO, OU MUNIÇÃO, ILEGALMENTE. ABSOLVIÇÃO, DE OFÍCIO, QUANTO AO CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. "Em razão do princípio da especialidade, adquirir - de qualquer forma - arma de fogo, no caso em tela, acessório de arma de fogo, sem observância das formalidades legais, pode constituir crime do Estatuto do Desarmamento. Por este motivo, não pode ser objeto de receptação, sob pena de responder por dois crimes, com apenas uma conduta. Absolvição mantida. (TJ/RS Ap. Crim. n. 70047432513, Terceira Câmara Criminal, Rel. Des. Ivan Leomar Bruxel, j. em 26/07/2012)".

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Outra jurisprudência mais recente acerca do tema, observamos o Desembargador de Tribunal de Justiça de SP, julgando improcedente a Apelação da acusação (Crime de receptação excluído – Aplicação do princípio da especialidade, punindo-se o agente unicamente pelo crime previsto no Estatuto do Desarmamento).

Apelação criminal – Posse ilegal de arma de fogo e receptação – Sentença condenatória – Pretendida a absolvição – Admissibilidade parcial – Materialidade e autoria do crime da Lei nº 10.826/03 suficientemente demonstradas – Condenação bem editada, com base em sólido e convincente acervo probatório – Penas e regime prisional escorreitamente fixados. Crime de receptação excluído – Aplicação do princípio da especialidade, punindo-se o agente unicamente pelo crime previsto no Estatuto do Desarmamento – Recurso parcialmente provido.

(TJ-SP - APL: 30001940320138260257 SP 300019403.2013.8.26.0257, Relator: Moreira da Silva, Data de Julgamento: 02/06/2016, 13ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 08/06/2016)

Neste pensamento e necessário aplicar o princípio da especialidade na questão em tela, sendo assim, se for editada nova lei que diminua a pena para o crime de receptação, ele não poderá se beneficiar do “novatio legis in mellius” , cuja aplicação retroativa se impõe, nos termos do previsto no art. 2º, parágrafo único, do CP, pois com este princípio aplicado, “Jose” só será réu apenas pelo crime de Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, art. 14 do Estatuto do Desarmamento, sobe pena de cometer a dupla incriminação ”

Com aplicação deste principio temos inconsistências na resposta, veja:

(...)

Se, durante o processo judicial a que José for submetido, for editada nova lei que diminua a pena para o crime de receptação, ele não poderá se beneficiar desse fato...

(...)

Resposta: CERTO (Pois ele não responde pelo crime de receptação)

Analisando outra parte da pergunta, veja:

(...)

Pois o direito penal brasileiro norteia-se pelo princípio de aplicação da lei vigente à época do fato....

(...)

Resposta: ERRADO (Pois o “novatio legis in mellius”, cuja aplicação retroativa se impõe, nos termos do previsto no art. 2º, parágrafo único, do CP.)

Analisando a pergunta toda:

Se, durante o processo judicial a que José for submetido, for editada nova lei que diminua a pena para o crime de receptação, ele não poderá se beneficiar desse fato, pois o direito penal brasileiro norteia-se pelo princípio de aplicação da lei vigente à época do fato.

Resposta: CERTO e ERRADO

Nota-se que a pergunta aqui contidas nesta avaliação, esta elaborada de forma incorreta, é possível perceber que gera duvida na resposta.

Para conhecimento, a questão em tela foi retirada de um concurso público para agentes da Policia Federal em 2018, ela e passável de interpretações e questionamentos, esta e a finalidade principal deste artigo, chamar a atenção, pois corre-se risco de cometer a dupla incriminação.

Nobre doutores, leitores etc. Qual a sua visão?

Ate a próxima!

Sobre o autor
Joilson Junior de Melo

Acadêmico de Direito - 2º Semestre

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Elaboração de um inicial para cancelamento da questão no âmbito acadêmico.

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