A SOCIEDADE DE FATO E O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS
Rogério Tadeu Romano
I – AS SOCIEDADES EM COMUM
Determina o Código Civil brasileiro com relação a sociedade em comum:
Art. 986. Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples.
Art. 987. Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prová-la de qualquer modo.
Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum.
Art. 989. Os bens sociais respondem pelos atos de gestão praticados por qualquer dos sócios, salvo pacto expresso limitativo de poderes, que somente terá eficácia contra o terceiro que o conheça ou deva conhecer.
Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.
As sociedades em comum ou de fato são aquelas que funcionam, exercitando atividades empresariais, sem, contudo, haver se constituído segundo os dispositivos legais, não arquivando os seus atos constitutivos, se houver, no registro de pessoas jurídicas. Essas sociedades poderão usar um nome social, ter um domicílio certo, dar um título ao seu estabelecimento, contudo, não possuem personalidade jurídica, já que os seus atos constitutivos não foram arquivados no registro próprio.
O sistema brasileiro filia-se ao que se chama de “disposições normativas” que preenche uma posição intermediária entre os sistemas(o que admite a criação da pessoa jurídica pela simples elaboração do seu ato constitutivo e outro do sistema de reconhecimento, que se prende em suas origens ao direito romano e que sobrevive no direito moderno, como se lê do modelo italiano, em cuja doutrina se debate a necessidade de um decreto de reconhecimento). Esse sistema de “disposições normativas” outorga poder criador à vontade, ensanchando à entidade por ela criada à faculdade de adquirir personalidade independentemente de qualquer ato administrativo de concessão. Mas exige, por outro lado, a observância de condições legais predeterminadas, e, desde que a elas atendam, vivem e operam sem constrangimentos.
Assim a criação da pessoa jurídica passa por duas fases: a ao ato constitutivo e a da formalidade administrativa do registro.
Na primeira fase, ocorre a constituição da pessoa jurídica, por ato inter vivos, nas associações e sociedades, e por ato inter vivos ou causa mortis nas fundações. É sempre uma declaração de vontade, para cuja validade devem ser presentes os requisitos da eficácia dos negócios jurídicos.
A segunda fase configura-se no registro. Com o propósito de fixar os principais momentos da vida das pessoas, o direito institui o sistema do registro civil para as pessoas naturais. Para as pessoas jurídicas foi criado o sistema de registro, por via do qual ficam anotados e perpetuados os momentos fundamentais de sua existência(seu começo e fim), bem como as alterações que venham a sofrer no curso de sua vida.
No caso do registro das pessoas naturais, ele tem uma eficácia probatória. Já no caso do registro das pessoas jurídicas, este tem verdadeira força atributiva, pois que, além de vigorar ad probationem, recebe ainda o valor de providência complementar de aquisição de capacidade jurídica.
Da conjugação das duas fases, volitiva e administrativa, é que resulta a aquisição da personalidade. O ato constitutivo é o instrumento continente da declaração da vontade criadora, é a causa que geradora primária do ente jurídico, o qual permanece em estado potencial até o momento em que se realiza a formalidade do registro. Assim o começo da existência jurídica está fixado no instante em que aquele ato de constituição é inscrito no Registro Público, seja para as sociedades ou associações, seja para as fundações(patrimônio destinado a um fim).
Voltemos a falar das sociedades em comum ou de fato.
Ditava o artigo 304 do Código Comercial de 1850:
“A existência da sociedade(de fato ou em comum), quando por parte do sócio não se apresenta instrumento, pode provar-se por todos os gêneros de prova admitidos em comércio(artigo 122), e até mesmo por presunções fundadas em fato de que existe ou existiu sociedade”.
Sobre a prova da presunção da existência das sociedades de fato dispunham os artigos 137, 138, 184, 186, 187 e 188 do Regulamento 737, de 1850.
O projeto do Código Civil regulou essas sociedades, com o nome de sociedades em comum, nos artigos 1023 a 1027. Aliás, diga-se, de passagem, que o nome dado pelo Anteprojeto e Projeto do Código das Obrigações e pelo Projeto do Código Civil, de sociedades em comum, foi o que, a essas sociedades, deu o Código Comercial revogado(artigo 304).
Quanto às presunções da existência das sociedades de fato já estatuía o artigo 305 do Código Comercial revogado:
Art. 305 - Presume-se que existe ou existiu sociedade, sempre que alguém exercita atos próprios de sociedade, e que regularmente se não costumam praticar sem a qualidade social.
Desta natureza são especialmente:
(Revogado)
1 - Negociação promíscua e comum.
(Revogado)
2 - Aquisição, alheação, permutação, ou pagamento comum.
(Revogado)
3 - Se um dos associados se confessa sócio, e os outros o não contradizem por uma forma pública.
(Revogado)
4 - Se duas ou mais pessoas propõem um administrador ou gerente comum.
(Revogado)
5 - A dissolução da associação como sociedade.
(Revogado)
6 - O emprego do pronome nós ou nosso nas cartas de correspondência, livros, fatura, contas e mais papéis comerciais.
(Revogado)
7 - O fato de receber ou responder cartas endereçadas ao nome ou firma social.
(Revogado)
8 - O uso de marca comum nas fazendas ou volumes.
(Revogado)
9 - O uso de nome com a adição - e companhia.
(Revogado)
A responsabilidade dos sócios ocultos é pessoal e solidária, como se fossem sócios ostensivos (artigo nº. 316).
(Revogado)
Há uma diferença entre a sociedade de fato e a sociedade irregular.
Carvalho de Mendonça e Waldemar Ferreira procuram fazer a distinção entre sociedades irregulares e sociedades de fato. O último, contudo, as chama de “sociedades em comum”, frase que bem exprime o estado de comunhão em que ela se resolve por falta de registro.
Quer a sociedade tenha os atos constitutivos inscritos e não arquivados, que resulte apenas de atividade empresarial em comum com ânimo societário, teremos uma sociedade de fato e não uma sociedade irregular. Está será a sociedade que se organiza legalmente, arquiva os seus atos constitutivos no Registro, mas, posteriormente, pratica atos que desnaturam o tipo social. Uma sociedade de fato não chegou a possuir personalidade jurídica, por não ter arquivado os seus documentos construtivos no Registro de Pessoas Jurídicas.
Às sociedades de fato não se aplica a teoria da aparência, assim, apresentando-se aos terceiros como uma sociedade, estes, estando de boa-fé, são amparados pela aparência da sociedade e assim poderão agir contra os sócios na defesa dos seus direitos, já que, para as sociedades irregulares, como as concebemos hoje, não se aplicaria o princípio da aparência, pois os terceiros poderão a qualquer instante certificar-se da existência da sociedade mediante consulta ao Registro.
II – OS DIREITOS DE TERCEIRO E AS SOCIEDADES DE FATO
Discute-se com relação aos direitos de terceiros em relação às sociedades de fato.
Os terceiros que transacionam com as sociedades de fato podem intentar contra a sociedade, utilizando-se de quaisquer meios de provas para justificar a sua existência, ou podem ainda agir contra os sócios isoladamente, os quais respondem de forma ilimitada e solidária, como se lia do Código Comercial de 1850(artigos 304 e 305; Projeto de Código Civil, artigos 1024 e 1027).
A sociedade de faz uma comunhão de interesses entre os sócios; esses terão o direito de partilhar do acervo social, quando da extinção da sociedade, de acordo com o pactuado entre si(Projeto de Código Civil, artigo 1025).
Em relação aos terceiros, os sócios são solidariamente responsáveis, de forma ilimitada, pelas obrigações sociais(Código Comercial revogado, artigo 205, última alínea; Projeto de Código Civil, artigo 1027).
É cediço que uma sociedade empresária nasce a partir de um acordo de vontades de seus sócios, que pode ser realizado por meio de um contrato social ou de um estatuto, conforme o tipo societário a ser criado. Destoa dessa realizada a sociedade fato, atualmente denominada sociedade em comum, que não adquire personalidade jurídica por meio das solenidades legais aptas a lhe emprestar autonomia patrimonial, não obstante seja sujeito de direitos e obrigações.Como ensina Marlon Tomazette acerca do patrimônio dessa sociedade despersonificada,
Assim é dito no artigo 987 do Código Civil de 2002:
Art. 987. Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prová-la de qualquer modo.
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça enfrentou a matéria no REsp 1.706.812, onde se disse que: Na separação convencional de bens, prova escrita é indispensável para configurar sociedade de fato.”
III – O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS
Para Sílvio Rodrigues(Direito de família, volume VI, sexta edição, pág. 202), regime de separação é aquele em que os cônjuges conservam não apenas o domínio e a administração de seus bens presentes e futuros, como também a responsabilidade pelas dívidas anteriores e posteriores ao casamento.
Dizia-se que quando se pactuava tal regime, o casamento não repercutia na esfera patrimonial dos cônjuges a não ser no que concernia à proibição, que sobre eles incidia, de alienarem bens imóveis sem a anuência ou autorização do consorte.
Pelo casamento os cônjuges unem suas vidas e seu destino. Mas, através do pacto antenupcial em que ajustam a separação, circunscrevem os efeitos dessa união, a fim de impedir que ela se estenda ainda ao campo patrimonial. Embora sejam marido e mulher, cada cônjuge continua dono daquilo que era seu senhor exclusivo dos bens, que vier a adquirir e receberá, sozinho, as rendas produzidas por uma e outros desses bens.
Já se entendia no Código Civil de 1916, da leitura dos artigos 247 e 254, que ainda não se comunicavam as dívidas por cada qual contraídas, exceto que forem pela mulher, ou seja, pela compra das coisas necessárias à economia doméstica; e resultantes das obrigações concernentes à indústria o profissão que exercia com autorização do marido, ou suprimento do juiz.
Aliás, Pontes de Miranda(Tratado de direito de família, volume II, § 164) ensinou que, no direito anterior ao do Código Civil de 1916, a administração dos bens, ainda no regime da separação, competia ao marido e isso desde os primitivos tempos do direito lusitano. Para tanto, Pontes de Miranda se escorava em Domingos Antunes Portugal(Tractatus de donationibus, I, 118 s) e em B. Egídio (Comentaria in L. ex hoc iure; I parte II, c. 7 n. 25).
No regime de separação de bens, sob o Código de 1916, surgia uma exceção ao princípio daquele artigo 233, n.IV do Código Civil anterior que impunha ao marido o dever de prover a mantença da família. No sistema anterior, como os patrimônios dos cônjuges, seus ganhos e rendas não se comunicavam, justo se afigurava ao legislador que ambos os cônjuges deviam concorrer para a mantença da família, na proporção de seus bens. Era a regra do artigo 277 do Código Civil revogado.
Como a contribuição da mulher era proporcional ao valor de seus bens, poderia ocorrer que ela, os tendo de maior valor, fosse obrigada a contribuir com importância mais elevada do que o marido. O conveniente, nesse campo, era convencionar no pacto antinupcial.
A oposição da mulher, em contribuir para as despesas do casal, poderia ser vencida por ação judicial.
Veio o Código Civil de 2002.
O regime de separação de bens, do que se lê do artigo 1.687 do Código Civil de 2002, vem a ser aquele em que cada consorte conserva, com exclusividade, o domínio posse e administração de seus bens presentes e futuros e a responsabilidade pelos débitos anteriores e posteriores ao matrimônio, como se lê das lições de Silvio Rodrigues(Direito de família, 1980, volume sexto) e ainda Pontes de Miranda(obra citada, § 85), como ainda se lê: RT 620/163; 630/77; 663/69, dentre outros.
Há, no regime estudado, dois patrimônios perfeitamente separados e distintos: o do marido e o da mulher.
Há incomunicabilidade não só dos bens que cada qual possuía ao se casar, mas ainda dos que veio a adquirir na constância do casamento, havendo uma completa separação de patrimônios dos dois cônjuges. Assim, como revelou Maria Helena Diniz(Curso de direito civil brasileiro, volume V, 24ª edição, pág. 191), esse regime em nada influi na esfera pecuniária dos consortes. Não há proibição de gravar de ônus real ou alienar bens, inclusive imóveis, sem o assentimento do outro cônjuge. Qualquer dos consortes poderá, sem autorização do outro, pleitear, como autor ou réu, acerca de bens ou direitos imobiliários, prestar fiança ou aval e fazer doação, não sendo remuneratória, como se lê do artigo 1.647 do Código Civil de 2002. Como o ativo, o passivo dos cônjuges também é separado, não se comunicando os débitos anteriores ou posteriores ao casamento, pelos quais responde o consorte que os contraiu, isoladamente, e, se créditos houver entre marido e mulher, regular-se-ão pelas normas atinentes às obrigações entre pessoas estranhas. Mas ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, exceto se houver estipulação em contrário no pacto antenupcial.
Esse regime matrimonial poderá provir de lei ou de convenção.
IV – A PROVA DA SOCIEDADE DE FATO NO REGIME MATRIMONIAL DE SEPARAÇÃO DE BENS
No regime matrimonial de separação convencional de bens, a prova formal, por escrito, é requisito fundamental para a demonstração de existência de sociedade de fato, nos termos do artigo 987 do Código Civil. Para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), não havendo comprovação do vínculo societário por meio de documentos, como atos constitutivos da sociedade ou atos de gestão ou integralização do capital, permanece a distinção de bens prevista no pacto nupcial formalizado entre as partes.
A autora da ação afirmou que contribuiu ativamente para o sucesso dos negócios da família do ex-marido – constituídos principalmente por um restaurante –, motivo pelo qual deveria ser considerada sócia de fato ou dona dos empreendimentos. Segundo ela, os frequentadores a identificavam como a proprietária do restaurante, sem, no entanto, ter recebido remuneração ou lucro da sociedade.
Além disso, afirmou que o ex-marido, servidor público federal, não poderia administrar a sociedade e, assim, constava formalmente como sócio outras pessoas.
Não há falar em sociedade de fato quando o regime adotado é o da separação convencional de bens. É premissa basilar que, sob a égide de tal regime, não se presume comunhão de bens e que eventual interesse em misturar os patrimônios deve ser expressa e não presumida.
Nesse sentido:
“CASAMENTO. PACTO ANTENUPCIAL. SEPARAÇÃO DE BENS. SOCIEDADE DE FATO. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. DIVISÃO DOS AQUESTOS.- A cláusula do pacto antenupcial que exclui a comunicação dos aqüestos impede o reconhecimento de uma sociedade de fato entre marido e mulher para o efeito de dividir os bens adquiridos depois do casamento. Precedentes" (REsp 404.088/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJ 28/05/2007 - grifou-se). Assim, o regime matrimonial adotado enseja plena autonomia dos patrimônios dos cônjuges, distintos por natureza.
"(...) o conjunto de bens organizados posto à disposição do exercício da atividade empresarial é um patrimônio especial que pertence aos sócios em condomínio (art. 988). Reconhece-se um patrimônio especial, que não pertence à sociedade, mas pertence diretamente aos próprios sócios em condomínio" (Marlon Tomazette, Curso de Direito Empresarial, 9ª Edição, Editora Saraiva, pág. 325).
A condição para se admitir a existência de uma sociedade é a configuração da affectio societatis (que não se confunde com a affectio maritalis) e a integralização de capital ou a demonstração de prestação de serviços. Tais requisitos são basilares para se estabelecer qualquer vínculo empresarial.
A propósito, confira-se o artigo 981 do Código Civil de 2002:"Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados." Os resultados comerciais, como regra, podem ser positivos ou negativos, motivo pelo qual se presume que quem exerce a empresa deve assumir também os riscos do negócio.