“Res Furtiva”

21/09/2019 às 12:00
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I –       Por sua extraordinária concisão e majestade, a língua latina foi a que preferiram os velhos autores para difundir suas obras jurídicas e literárias. Nela foi também que se perpetuaram os aforismos de Direito.

            Ainda hoje, nenhum livro jurídico se edita, que não contenha frases ou locuções próprias da língua de Cícero.

            E nada há que alegar contra esse costume, exceto quando as citações, por mui frequentes e copiosas, venham a prejudicar a primeira qualidade de quem escreve — a clareza —, ou a ferir o preceito legal que obriga ao uso de nosso idioma vernáculo nas petições, sentenças e arrazoados forenses([1]).

            É certo que isso de alguém pejar de latinismos um texto escrito em linguagem inculca para logo pedantaria; será por igual fazer tábua rasa do brocardo de que todo excesso desvirtua, o que a antiguidade clássica resumia na parêmia: “Est modus in rebus”.

            Mas, desde que venha a ponto a expressão latina e se empregue com parcimônia, tem lá sua graça e vale por excelente recurso de estilo.

            Onde todo escritor deve extremar-se em desvelo é no guardar fidelidade ao elemento gráfico ou material das expressões latinas de que acerte utilizar-se. Tal advertência fizeram-na sempre os mestres, como a prevenir não se pusessem a circular moedas falsas ao lado das verdadeiras, de ouro de puríssimo quilate.

II –      A leitura (de livros jurídicos, profanos e de autos de processo) tem-nos deparado ocasião de anotar certas faltas em que geralmente caímos os que escrevemos, por dever do ofício ou por mero prazer intelectual.

            A primeira lição para os que se proponham adornar suas páginas literárias com as flores do Lácio é não acentuar graficamente a vogal tônica das palavras. Por exemplo: “data maxima venia” (e não “data máxima vênia”), “ex officio” (e não “ex offício”), “ad judicia” (e não “ad judícia”), “in dubio pro reo” (e não “in dúbio pro réo”), “in limine” (e não “in límine”), etc.

            Outra regra, muito para observar quando se escreverem vocábulos latinos, é a que manda abolir o hífen (ou traço-de-união), que o não há em latim: “habeas corpus” (e não “habeas-corpus”), “ex positis”, “lato sensu”, “stricto sensu”, “ab initio”, “ex vi legis”, etc.

            Algumas vozes, de uso corrente na linguagem do foro, aparecem muitas vezes estropiadas: “mellius” (por “melius”, com um “l” só), “oportuno tempore” (por “opportuno tempore”, com dois “pês”), “in memorian” (por “in memoriam”, com “m”), “animus caluniandi” (por “animus calumniandi”, com “mn”), etc.

            Tem-se visto a fórmula “rei furtivae” como se o plural de “res furtiva”([2]). Trata-se de engano; o certo é, no plural, “res furtivae” (coisas subtraídas: furtadas ou roubadas).

III –     Ainda se reputem simples erros de impressão, máculas a que livro algum está imune([3]), tais inexatidões costumam abater o esplendor que circunda a edição de certos livros.

            A expressão “reformatio in mellius” (em vez de “melius”, com um “l”), topamo-la em Damásio E. de Jesus (Código de Processo Penal Anotado, 1996, 17a. ed., p. 423); “animus caluniandi” (em vez de “calumniandi”), em Celso Delmanto (“in memoriam”) e Roberto Delmanto (Código Penal Comentado, 5a. ed., p. 276).

            Foi muito de estudo que nomeamos estes egrégios autores. Suas obras são as que, na atualidade, sobre todas, granjeiam a afeição dos cultores do Direito Processual Penal e do Direito Penal. Levem-nos pois à paciência os tenhamos individuado, que a seus prestantíssimos livros quadram estas elegantes palavras de nosso Matias Aires: “Nas sombras não há que distinguir, na luz qualquer alteração é reparável”([4]).

            Mas, dado o caso que houvera aí mais que toscanejos de revisores, “ad argumentandum tantum”, facilmente os confortara a cláusula escusativa universal: “Errare humanum est”.

            “Vale”!


Notas

([1])       Em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo (art. 156 do Cód. Proc. Civil). Cai a lanço o episódio que narra Moura Bittencourt: “Conta-se, por exemplo, com verdade ou malícia, que certo tribunal devia manifestar-se sobre a sentença de um magistrado inferior. Estava ela vazada em muitas páginas, nas quais havia mais citações em alemão do que considerações em português. Não era possível criticar-se o acerto da fundamentação. Dizem que a Corte não encontrou outra saída senão converter o julgamento em diligência para que o juiz traduzisse seu escrito” (O Juiz, 1966, p. 292).

([2])       E pois que falamos da “res furtiva” e das “res furtivae”, será bem dizer algo do autor do furto: o ladrão. Chamou-lhe Plauto “homo trium litterarum”. Em vulgar: homem das três letras, porque tantas são, em latim, as de “fur”, que significa ladrão (Cf. Arthur Rezende, Frases e Curiosidades Latinas, 1955, p. 283). Larápio, sinônimo de ladrão, esse conta com etimologia curiosa, a fiarmo-nos da seguinte notícia que traz o citado autor: “Dizem ter existido em Roma um pretor venal, cujas sentenças eram sempre a favor do litigante que melhor pagava. Chamava-se Lucius Antonius Ruffus Appius, e sua rubrica era: L.A.R. Appius. O povo o chamava Larappius, palavra que se tornou sinônimo de gatuno” (Idem, ibidem, p. 358).

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([3])       De que seja o erro partilha comum dos mortais prova-o que farte a anedota daquele revisor, profissional exímio, o qual passou ano inteiro a corrigir as provas de certo livro que, ao cabo, saiu à luz com o aviso: “Este livro não contém erata”. (“Transeat!”).

([4])       Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, p. 156.

Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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