Tão logo tenha conhecimento da prática de infração penal, deve a autoridade policial ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, isto é, mediante a coleta de suas impressões digitais.
Sem a identificação de quem seja o autor do fato delituoso, não há persecução penal, nem é possível a apuração da responsabilidade criminal do agente.
Não sofre disputa, portanto, que o Estado, ao qual incumbe combater a criminalidade, tem não apenas o direito mas também o dever de identificar o delinquente.
Tal providência, todavia, principalmente para aqueles que não foram antes indiciados em inquérito policial, representa violência moral insigne; o deixar alguém suas impressões digitais numa planilha, montara o mesmo queser condenado! Tão forte abalo costuma causar o ato de identificação no ânimo do acusado, que até aqueles que já figuraram na clientela da jurisdição criminal têm-no por medida extremamente vexatória.
Para conjurar tão cruel estigma, que marca a alma do indiciado (muita vez inocente) antes mesmo de averiguada sua culpa, autores abalizados na Ciência Penal propugnaram fosse a identificação criminal adotada só naqueles casos em que o suspeito de haver cometido algum crime ainda não estivesse identificado civilmente; do contrário, ficaria dispensado da formalidade.
Por algum tempo vigorou esse entendimento no seio dos Tribunais; cedeu o passo, contudo, à orientação mais severa, consubstanciada na Súmula nº 568 da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “A identificação criminal do indiciado pelo processo datiloscópico não constitui constrangimento ilegal, ainda que já identificado civilmente”.
Assim se praticou até à promulgação da Constituição Federal de 5.10.88, que, mercê do espírito liberal de seus legisladores, tratou por modo mais benigno e plausível a questão ao preceituar, no inciso LVIII de seu art. 5º, que“o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.
A nova Carta Magna, a mais abrangente e extensa de quantas houve entre nós, imprimiu grande relevo aos direitos e garantias individuais, sobretudo em matéria penal.
Em pontos de identificação criminal, a fórmula que impôs assegura ao mesmo tempo a defesa do Estado contra os que violam a ordem jurídica e, ao indivíduo, as garantias contra o arbítrio daquele.
Abolindo a identificação criminal quando já tiver o indiciado cédula de identidade, o legislador supremo revelou-‑se mui coerente com o princípio da presunção de inocência, que consagrara no inciso LVII do referido artigo.
De fato, se “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, seria contravir ao rigor da lógica jurídica submeter indivíduo a ato (identificação criminal), que, falando a verdade inteira, não fora menos infamante que a própria sentença condenatória!
Nem vale, contra esta consequência irrecusável, a objeção de alguns, fundada em que, não havendo a recente Carta da República revogado o inciso VIII do art. 6º do Códigode Processo Penal, será sempre exigível pelo processo datiloscópico.
Suposto impressione ao primeiro aspecto, esse raciocínio descobre, no entanto, fragilidade maior da marca, se apreciado mais de espaço, como o demonstrou, irrefutavelmente,o preclaro Juiz Oliveira Ribeiro, do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo:
“… a regra processual penal em causa, ao impor um dever legal que a Constituição só admite em grau de especializada exceção, joga por terra todo o comando jurídico da norma constitucional que dispõe de modo diametralmente oposto ao que naquela regra de processo.
Até e enquanto não surja no horizonte da República norma de direito comum estabelecendo as hipóteses de exceção ao mandamento proibitório, a exigência da identificação criminal, para todos aqueles acusados que estiverem identificados civilmente, não terá lugar” (Revista de Julgados e Doutrina, vol. I, p. 184).
A identificação criminal reservemo-la apenas àqueles casos em que o indiciado não foi civilmente identificado, ou haja fundadas suspeitas de que falso o documento de identidade expedido pelo órgão oficial competente; que fique ela adstrita ao critério da necessidade, não venha a ferir gravemente o “status libertatis” do indivíduo.
Aquele selo que Deus “pôs à mão de cada homem, para que o conheçam todos os homens” (Jó 37,7), não se transforme, facilmente, em ferrete de sua desgraça e ignomínia!