A desconsideração da personalidade jurídica na Lei de liberdade econômica

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Como a Desconsideração da Personalidade Jurídica foi abordada na Lei de Liberdade Econômica e os seus impactos nos registros das empresas. (Lei nº 13.874/2019)


O presente artigo visa abordar de forma simplificada e não exaustiva a nova
legislação denominada Lei da Liberdade Econômica, recebida por muitos como
um grande incentivo para a melhora da economia como um todo e,
notadamente, como uma sensível alteração da legislação empresarial.
Uma das principais mudanças trazidas pela nova legislação vem ao encontro
do interesse do meio empresarial que via nas constantes decisões judiciais um
entrave à concretização da separação da personalidade jurídica das
sociedades empresárias e a de seus sócios. Reiteradas decisões previam a
Desconsideração da Personalidade Jurídica a fim de atingir o patrimônio dos
sócios em eventual responsabilização por prejuízos causados pelo ente
jurídico.
O presente texto abordará apenas a temática referente às sociedades regidas
pelo Código Civil, em especial, à Sociedade Limitada.
A Desconsideração da Personalidade Jurídica
Antes de falarmos sobre a “Desconsideração da Personalidade Jurídica”,
impende ressaltarmos que existem três tipos de sociedade, tomando-se em
conta a responsabilização de seus sócios pelos danos causados por atos da
pessoa jurídica a que pertencem.
Quanto à responsabilização dos sócios pelas dívidas sociais, as sociedades se
dividem em Sociedades Ilimitadas, Sociedades Limitadas e as Sociedades
Mistas.
A par da nomenclatura empregada neste texto, que pode não ser a mesma
utilizada por outros autores, o que se busca é apontar em qual dos tipos
societários é que se aplicará a Teoria da Desconsideração da Personalidade
Jurídica.
Primeiramente, devemos ter em conta que a responsabilidade das sociedades
será, sempre ilimitada, isto é, o patrimônio social deve responder por todos os
atos ilícitos que ocasionar, até serem esgotados. Em tal caso o que se antevê é
a própria falência da pessoa jurídica, se empresária.
Assim sendo, quando se afirma que tal sociedade é de responsabilidade
limitada, o que se pretende efetivamente é dizer: sociedade na qual os
sócios não se responsabilizam pelos danos causados pela sociedade.
Isto é, a Sociedade Limitada é aquela em que os sócios têm assegurado que
seu patrimônio pessoal não será utilizado para o pagamento de dívidas sociais.
Por sua vez, a sociedade de responsabilidade ilimitada já prevê que, uma vez
esgotado o patrimônio social, o patrimônio pessoal dos sócios será utilizado
para cobrir eventuais dívidas contraídas pela Pessoa Jurídica que fazem parte.

Pois bem, nesse compasso, temos que a Desconsideração da Personalidade
Jurídica somente será necessária para o caso das Sociedades Limitadas, uma
vez que nas Sociedades Ilimitadas já está prevista a utilização do patrimônio
pessoal dos sócios pelas obrigações sociais.

A Desconsideração da Personalidade Jurídica Processual (CPC art. 133 a
137) – uma visão do Superior Tribunal de Justiça
Se por um lado a própria gênese da Sociedade Limitada, a qual visava o
incentivo ao desenvolvimento da atividade empresarial, por outro lado o
emprego reiterado desse tipo societário de forma ilegal retirou-lhe um pouco de
credibilidade a tal ponto que várias decisões judiciais lhe desconsideravam a
separação patrimonial. 1
O que se viu ao longo do tempo foram decisões que desconsideravam a
personalidade jurídica tão somente pela não localização de bens da sociedade
devedora e a fim de se atingir os bens dos sócios a qualquer custo.
O Código de Processo Civil de 2015 trouxe importante inovação ao criar nova
sistemática processual prevendo a necessidade de procedimento de
intervenção de terceiros, quando os sócios não fazem parte da relação jurídica
processual inicial, para que estes possam se defender antes de verem seus
bens pessoais atingidos por decisões judiciais, por vezes, desprovidas de uma
fundamentação coerente.
Neste contexto, o Superior Tribunal de Justiça proferiu entendimento de que o
procedimento de Desconsideração da Personalidade Jurídica deve ser
precedido da análise das causas permissivas descritas no artigo 50 do Código
Civil, em Recurso Especial cuja relatoria coube ao eminente Relator Min. Luis
Felipe Salomão:

RECURSO ESPECIAL.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. CPC/2015. PROCEDIMENTO
PARA DECLARAÇÃO. REQUISITOS PARA A
INSTAURAÇÃO. OBSERVÂNCIA DAS
REGRAS DE DIREITO MATERIAL.
DESCONSIDERAÇÃO COM BASE NO ART.
50 DO CC/2002. ABUSO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA. DESVIO DE
FINALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL.
INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR.

1 Tem-se que o surgimento das Sociedades Limitadas aconteceu no fim do século XIX, na Alemanha,
trazendo os benefícios da Sociedade Anônima, da limitação da responsabilidade, mas sem sua
complexidade, a somar-se com as sociedades de pessoas de simples constituição (Tomazette,
p.333/334)

DESNECESSIDADE DE SUA
COMPROVAÇÃO. 1. A desconsideração da
personalidade jurídica não visa à sua
anulação, mas somente objetiva
desconsiderar, no caso concreto, dentro de
seus limites, a pessoa jurídica, em relação às
pessoas ou bens que atrás dela se escondem,
com a declaração de sua ineficácia para
determinados efeitos, prosseguindo, todavia,
incólume para seus outros fins legítimos. [...]

Prossegue o referido acórdão asseverando, por um lado, a importância do
instituto procedimental da Desconsideração da Personalidade Jurídica para
evitar os abusos em torno da responsabilidade limitada e, por outro, o da
regular manutenção da atividade empresarial que atrai riscos em seu
desenvolvimento, para só permitir tal fenômeno, o da Desconsideração, em
casos restritos. Prossigamos em sua leitura:

[...] 2. O CPC/2015 inovou no assunto
prevendo e regulamentando procedimento
próprio para a operacionalização do instituto
de inquestionável relevância social e
instrumental, que colabora com a recuperação
de crédito, combate à fraude, fortalecendo a
segurança do mercado, em razão do
acréscimo de garantias aos credores,
apresentando como modalidade de
intervenção de terceiros (arts. 133 a 137) [...]
4. Os pressupostos da desconsideração da
personalidade jurídica continuam a ser
estabelecidos por normas de direito material,
cuidando o diploma processual tão somente
da disciplina do procedimento. Assim, os
requisitos da desconsideração variarão de
acordo com a natureza da causa, seguindo-
se, entretanto, em todos os casos, o rito
procedimental proposto pelo diploma
processual. 6. Nas causas em que a relação
jurídica subjacente ao processo for cível-
empresarial, a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica será
regulada pelo art. 50 do Código Civil, nos
casos de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade, ou
pela confusão patrimonial. 7. A inexistência ou
não localização de bens da pessoa jurídica

não é condição para a instauração do
procedimento que objetiva a desconsideração,
por não ser sequer requisito para aquela
declaração, já que imprescindível a
demonstração específica da prática objetiva
de desvio de finalidade ou de confusão
patrimonial. 8. Recurso especial provido.
(STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.729.554 -
SP (2017/0306831-0) Relator Min. Luis Felipe
Salomão, publicado em 8 de maio de 2018)

Os novos artigos 49-A e 50 do Código Civil
Um primeiro ponto a se verificar da nova Lei da Liberdade Econômica é o
esforço do legislador em reforçar a conhecida distinção entre a personalidade
jurídica, de qualquer uma das formas de sociedade e a personalidade de seus
sócios ou associados. Vejamos:

Art. 49-A.  A pessoa jurídica não se confunde
com os seus sócios, associados, instituidores
ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas é um instrumento lícito de
alocação e segregação de riscos,
estabelecido pela lei com a finalidade de
estimular empreendimentos, para a geração
de empregos, tributo, renda e inovação em
benefício de todos.

Por mais óbvio que possa parecer aos olhos de qualquer iniciado na liturgia do
Direito, tal dispositivo é uma prodigiosa tentativa de reafirmação de um tema
assaz debatido no universo jurídico: a pessoa jurídica é titular dos direitos e
deveres, os quais não são atribuíveis aos seus sócios, ao menos não
inicialmente. Os sócios têm personalidade distinta, física ou jurídica, e que não
terão reflexos imediatos sobre estes direitos ou deveres.
O mesmo artigo 49-A, em seu parágrafo único ratifica o dever de ser observada
pelos atores do Direito a regra da autonomia patrimonial entre as pessoas
jurídicas e o patrimônio pessoal de seus sócios.
Pois bem, o parágrafo único é uma consequência do caput ao fazer nova
referência aos direitos da personalidade de cunho patrimonial entre a
sociedade e o patrimônio dos sócios.
Dessa forma, pode-se afirmar que estamos diante de uma garantia de que
somente em casos excepcionais é que eventual responsabilização por danos
causados pela pessoa jurídica recaia sobre o patrimônio dos sócios ou

associados, uma vez que o patrimônio social dever ser utilizado em primeiro
lugar para alguma eventual indenização. 2
O parágrafo único assevera que o patrimônio social é o “instrumento lícito de
alocação e segregação de riscos”, numa tentativa de demonstrar a importância
desse patrimônio para o desenvolvimento da atividade fim da sociedade e para
posterior possível responsabilização.
Importante frisar aqui, que os membros de uma sociedade empresária devem,
como já deviam anteriormente, assegurar que os sócios efetivamente cumpram
com seu dever de contribuir para a formação do capital social e que o
patrimônio social seja devidamente integralizado e regularmente atualizado
perante à Junta Comercial.
Para se verificar a regularidade de uma “empresa”, os registros perante o
Registro Público da Empresa Mercantil devem ser atualizados, ao menos,
anualmente, bem como devem ser apresentados o balanço patrimonial e de
resultado, por força do disposto do art. 1.172 do Código Civil.
É de sumária importância, portanto, que se busque o auxílio do advogado para
que este verifique a regularidade das sociedades com as quais se deseja
contratar.
Assim, a importância do art. 49-A do Código Civil, inicialmente, é o de trazer
nova reflexão acerca da distinção entre a pessoa da sociedade e a dos sócios
que a compõem e, também, por reafirmar a diferenciação entre os patrimônios
da pessoa jurídica.
Por sua vez, a nova redação dada ao artigo 50 do Código Civil demonstra
preocupação do legislador em restringir os casos de Desconsideração da
Personalidade Jurídica. Vejamos:

“Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade
jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou
pela confusão patrimonial, pode o juiz, a
requerimento da parte, ou do Ministério Público
quando lhe couber intervir no processo,
desconsiderá-la para que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam
estendidos aos bens particulares de administradores
ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta
ou indiretamente pelo abuso (grifamos)

A começar pela nova redação do caput do art. 50 do Código Civil, temos que
será necessário demonstrar que os administradores e os sócios da pessoa
jurídica foram beneficiados pelo abuso na gestão desta.

2 Cumpre salientar que a responsabilidade dos sócios é, em regra, subsidiária em face do
disposto no art. 1024 do Código Civil.

Trata-se, como vimos acima, de mais um requisito a ser demonstrado
judicialmente a fim de se requerer a presença dos sócios na relação jurídica
processual.
Com relação à temática probatória em um processo, tal redação poderá
representar alguma dificuldade ao requerente, uma vem que nem sempre
disporá de meios para demonstrar que houve benefícios em favor dos sócios.
Todavia, entendemos que o desvio de finalidade e a confusão patrimonial já
são meios ilícitos previamente concebidos pelos administradores que, em
princípio, se utilizam de tais meios para obterem alguma vantagem, tornando
despicienda a nova redação ao final do caput.
Sobre tal afirmação, leia-se a redação dos parágrafos 1º e 2º do artigo 50 que
explicitam os casos em que haverá desvio de finalidade e confusão patrimonial.
Verbis:

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§ 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de
finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o
propósito de lesar credores e para a prática de atos
ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência
de separação de fato entre os patrimônios,
caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de
obrigações do sócio ou do administrador ou vice-
versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem
efetivas contraprestações, exceto os de valor
proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia
patrimonial.

Temos a registrar que os atos autorizadores da Desconsideração da
Personalidade Jurídica decorrem de práticas que visam lesar credores ou são
utilizados para atos ilícitos de qualquer natureza, sempre de forma comissiva.
Frisamos que o ato ilícito pode ser de qualquer natureza: civil, administrativo,
trabalhista, previdenciário, contratual, etc.
Quanto ao § 2º, inciso I, do art. 50, o legislador buscou atrelar a denominada
“confusão patrimonial” a um comportamento constante dos sócios e
administradores que se utilizam do patrimônio social para o cumprimento de
obrigações próprias. Já no inciso II do mesmo artigo, a confusão patrimonial

restará configurada quando houver transferência patrimonial entre sociedade e
sócios.
Percebe-se que o legislador deixou para a interpretação judicial um espaço
aberto através do Inc. III do § 2º, do artigo 50, quando permitiu a
Desconsideração da Personalidade Jurídica em casos de “atos de
descumprimento da autonomia patrimonial”.
Completando o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 50 com a nova redação
dada pela Lei 13.874/2019, o § 3º traz outra hipótese ensejadora da
Desconsideração da Personalidade Jurídica.
No caso do § 3º, o legislador buscou asseverar que a prática de se estender à
pessoa jurídica algumas obrigações dos sócios também caracteriza a confusão
patrimonial. Podemos citar como exemplo o pagamento de dívidas pessoais
com o cartão de crédito ou cheques da pessoa jurídica. Veja-se a redação:
§ 3º  O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste
artigo também se aplica à extensão das obrigações
de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
De forma restritiva, temos que os §§ 4º e 5º aduzem, novamente, que a
Desconsideração da Personalidade Jurídica não pode atingir grupos
econômicos sem que haja o benefício das pessoas jurídicas que o compõe.
Essa inovação é benéfica à formação de grupos econômicos, permitindo novos
investimentos, uma vez que nem sempre ocorrerá algum benefício ao novo
investidor. Em muitos casos o investidor visa apenas aportar recursos e
receber o lucro sem, necessariamente, ter que arcar com prejuízos
ocasionados por seus patrocinados.
Por último, a expansão da atividade não pode representar, de forma autônoma,
o desvio de finalidade, uma vez que pode se tratar de mera irregularidade
passível de ser sanada pela alteração do registro na Junta Comercial.
Leia-mos:

§ 4º  A mera existência de grupo econômico sem a
presença dos requisitos de que trata o caput deste
artigo não autoriza a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º  Não constitui desvio de finalidade a mera
expansão ou a alteração da finalidade original da
atividade econômica específica da pessoa jurídica.”
(NR)

Consideração finais

Inegável o benefício que trouxe a nova Lei 13.874/2019, a qual instituiu o novo
art. 49-A e alterou a redação do art. 50, trazendo mais clareza para o tema da
Desconsideração da Personalidade Jurídica, aos atores do Direito, restringindo
os casos de sua aplicação.
É de sumária importância que os casos de Desconsideração da Personalidade
Jurídica ocorram em hipóteses excepcionais, a fim de garantir os incentivos ao
desenvolvimento da atividade econômica, uma vez que a restrição da
responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais é um benefício a diminuir os
riscos do empreendimento.
Todavia, cumpre a todos os que pretendem contratar com a pessoa jurídica de
responsabilidade limitada colher prévias informações sobre sua regularidade,
com o intuito de diminuir riscos de inadimplemento das obrigações, bem como
cercar-se de maiores garantias, a depender de cada negócio jurídico.
A presente alteração legislativa veio ao encontro da alteração proposta pelo
Código de Processo Civil para, de fato, restringir as hipóteses de aplicação da
teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a qual deve ser
empregada em último caso pelo julgador.

Sobre o autor
Cavalcanti Oliveira Oliveira Lemos

Advocacia e Consultoria Jurídica

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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