Afinal, o ecocídio é ou não é considerado crime internacional?

24/09/2019 às 22:50
Leia nesta página:

Este artigo promove uma análise a respeito do crime de ecocídio dentro do Tribunal Penal Internacional buscando realizar uma colisão de informações acerca do assunto no que tange o reconhecimento do citado crime dentro do Estatuto de Roma.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Circula por vários canais de informação que o atual Presidente do Brasil poderá ser denunciado pelo crime de ecocídio no Tribunal Penal Internacional. Tal crime, segundo vários canais, foi regulamentado no final do ano de 2016 quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) se manifestou formalmente sobre o assunto vindo a acrescentar tal crime como sendo um dos crimes contra a humanidade.

Uma das matérias publicadas com tal conteúdo refere-se a publicação de Luciana Simmonds de Almeida que faz a seguinte citação:

A grande evolução trazida nesta seara foi o informativo de trabalho publicado pela procuradoria do TPI sobre a seleção de casos e as demandas que serão priorizadas, mencionando, além dos previstos no Estatuto de Roma, a cooperação nos crimes cometidos em detrimento ao meio ambiente, ampliando sua esfera de atuação ao entender que a lesão ao meio ambiente configura Crime Contra a Humanidade.

O próprio portal da Agência Brasil, da Empresa Brasil de Comunicação trouxe em uma das suas páginas o seguinte título: “Tribunal Penal Internacional reconhece 'ecocídio' como crime contra a Humanidade”. No entanto, basta buscar dentro do Estatuto de Roma que não se encontrará o dito crime de ecocídio e isso tem dividido opiniões de juristas e estudiosos sobre o tema.

Pode o agente responder por um crime sem a devida menção deste no tomo legal o qual se origina o poder punitivo? Tal discussão não será exaurida por meio deste artigo uma vez que nem a doutrina internacional parece estar em consenso com todas as ideias e opiniões. Logo, busca-se aqui apenas levantar uma tese sobre o tema, partindo do preceito da reserva legal dentro do Direito Penal Internacional.

 

 

ECOCÍDIO E SUA IDENTIDADE JUNTO AO ESTATUTO DE ROMA

Inicialmente, o crime de ecocídio pode ser definido pela “ofensa massiva ao meio ambiente capaz de provocar a morte de animais ou vegetais, ou por tornar inapropriados o uso das águas, o solo, subsolo e/ou o ar, e ocasionando também graves danos à vida humana.” Conforme define Heron José de Santana Gordilho e Fernanda Ravazzano.

De uma maneira ainda mais simples, pode-se definir esse termo como o ato de destruição de larga escala do meio ambiente. Tal delito vem conquistando a atenção de defensores ambientais, advogados e especialistas na tentativa de dar maior peso às condutas criminosas relativas ao meio ambiente. Ainda mais após o grande impacto midiático causado em todo o mundo após inúmeras queimadas registradas na Amazônia nos últimos anos nos países da América do Sul.

Mesmo com uma maior consciência mundial sobre o assunto, não se encontra pacificado dentro da comunidade jurídica internacional o reconhecimento de fato do crime de ecocídio, da maneira que é posto, perante o Tribunal Penal Internacional. Pelo menos, não como sendo um crime autônomo.

Não há dúvidas que o crime de ecocídio é um atentado a própria humanidade e isso realmente insere o ecocídio como um crime contra a humanidade prevista no artigo 7º, alínea k do Estatuto de Roma, devidamente regulamentado pelo Brasil através do Decreto nº 4.388 de 25 de setembro de 2002. Nesse ponto, narra o citado artigo que será considerado crime contra a humanidade “Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”

Falar do meio ambiente é falar também de um direito de terceira geração conquistado pela humanidade e influenciado por valores sólidos de harmonia e solidariedade com o objetivo de uniformizar com qualidade a convivência dos indivíduos em sociedade. Presente em várias constituições o direito ambiental possui espaço sólido e garantido como um dos principais temas defendidos pela comunidade internacional. Não obstante, temos em nossa Constituição também a menção a esse direito importantíssimo, in verbis:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”

Ora. Verificando a importância dada ao meio ambiente e verificando o artigo 7º do Estatuto de Roma, não resta dúvida de que é um crime colossal pôr o meio ambiente em risco extremo vindo a resumi-lo a situações de devastação.

No entanto, um dos princípios que rege o Direito Penal, inclusive o Direito Penal Internacional, é o princípio da reserva legal. Esse princípio encontra-se expresso no próprio Estatuto de Roma, no seu artigo 22, itens 1 e 2 onde se afirma que nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável ao menos que sua conduta constitua crime de competência do Tribunal do presente Estatuto; bem como a previsão de um crime presente no Estatuto deve ser estabelecida de forma precisa, não sendo permitido o uso de analogia.

Após tais observações, deve se ponderar três argumentos sobre a questão: o objeto punitivo do Estatuto; a tipificação dos crimes elencados no estatuto e a reserva legal dentro do tomo ora em comento.

Entendo a nobreza de vários estudiosos em afirmarem que o crime de ecocídio deve ser atribuído ao artigo 7º, inciso k do Estatuto de Roma como um crime contra a humanidade, todavia, esse processo deve ser realizado respeitando a reserva legal em cada caso. O crime de ecocídio como atentado à humanidade deve ser completamente moldurado ao instrumento para que possa realmente se fazer valer de legitimidade. Para tal enquadramento, é necessário que se preencha certos requisitos presente no tipo penal incriminador, sejam eles objetivos ou subjetivos.

Voltando ao texto do artigo 7º, em conjunto com a alínea k, temos:

“Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”

Observe que é necessário um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil, praticado de forma dolosa e objetivando tal crime sob um aspecto político. Ou seja, para que o crime de ecocídio passe a se enquadrar dentro da alínea citada, o agressor deve-se utilizar da ofensa massiva ao meio ambiente dolosamente e com finalidade política a fim de prejudicar determinada população civil. Caso contrário, o fato praticado não se enquadra como crime contra a humanidade.

No caso do Brasil, a título de exemplo, dada as queimadas ocorridas na Amazônia, buscou-se responsabilizar por ecocídio o Presidente da República fundamentando sob a imprudência do presidente ao dar “declarações irresponsáveis bem como desmonte de órgãos ambientais e das políticas de Estado de proteção a direitos socieambientais” conforme os dizeres de um grupo de juristas brasileiros que afirmaram estar preparando uma denúncia contra o Chefe do Executivo brasileiro por crime ambiental contra a humanidade para ser apresentada ao Tribunal Penal Internacional em Haia, na Holanda. Citação retirada do portal ACRITICA, em setembro de 2019.

Conforme dito anteriormente. Devemos analisar três fatores, sendo o primeiro relativo ao objeto de punição do Tribunal Penal Internacional conforme os crimes elencados no Estatuto de Roma. Busca-se responsabilizar o agente agressor e não o Estado em si, no entanto, é nítida a necessidade de que o agente em questão busque o objetivo de atacar a integridade de determinado grupo de pessoas não sendo possível imputar o crime contra a humanidade, por hora, em relação às atitudes imprudentes ou negligentes. O agente político deve agir dolosamente para que o crime de ecocídio seja prontamente amoldado na alínea k do artigo 7ª do Estatuto de Roma. Ele deve promover a ofensa massiva ao meio ambiente com clara intenção de prejudicar a humanidade ou certa população civil, por meio de um ataque sistematizado.

Somente por essa análise, já se verificaria que no caso dado como exemplo, seria impossível condenar o Chefe do Executivo Brasileiro por tal crime uma vez que não se nota que sua atitude ora descrita pelos denunciantes realmente busca-se atentar contra humanidade de forma sistematizada a fim de que se promova uma ofensa colossal ao meio ambiente com o objetivo de erradicar determinado grupo civil. Tampouco se verifica algum crime contra o meio ambiente no Estatuto de Roma como fim em si mesmo. Nesse ponto, não há o crime de Ecocídio dentro do Estatuto de Roma. O que há, e isso circula por todo o inventário de notícias na internet, é apenas os dizeres da Procuradoria do Tribunal Penal Internacional de que:

 “o tribunal interpretará os crimes contra a humanidade de maneira mais ampla, para incluir também crimes contra o meio ambiente que destruam as condições de existência de uma população porque o ecossistema foi destruído, como no caso de desmatamento, mineração irresponsável, grilagem de terras e exploração ilícita de recursos naturais, entre outros.”

Todavia, qualquer operador do direito sabe que o crime deve ser descrito de forma clara e precisa dentro o Instrumento Legal e que tal Instrumento Legal deverá ser formado por bases sólidas por meio de Lei. Somente a Lei pode comutar pena e descrever crimes. Qualquer outro documento, seja ele formal ou não, não é capaz de atribuir um crime a uma prática. Sendo assim, se o crime autônomo de ecocídio não é descrito no Estatuto de Roma e se, a conduta lesiva que guarde relação com o meio ambiente não se encontra devidamente em compasso com a conduta descrita no artigo 7º do Estatuto em conjunto com a alínea k, não é possível punir o agente com a conduta ora discutida.

Isso é o que impera e dá estabilidade ao cenário democrático de qualquer civilização. É o que chamamos de Princípio da Reserva Legal. Pelo Princípio da Reserva Legal, nenhum fato pode ser considerado crime se não existir uma lei que o enquadre no adjetivo Criminal. E nenhuma pena pode ser aplicada se não houver sanção pré-existente e correspondente ao fato. O Princípio da Legalidade constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais (JUSBRASIL, 2019).

Portanto, discordando de muitos doutrinadores, não reconhecemos que toda ofensa massiva contra o meio ambiente necessariamente guarda relação com um crime contra humanidade nos termos do Estatuto de Roma. No entanto, não retiramos a necessidade de uma tipificação desse crime como crime internacional, mas acreditamos que o crime de ecocídio deve ser introduzido por meio de emenda no presente Estatuto como um crime autônomo e direcionado claramente para o ataque ao meio ambiente servindo de um fim e não de um meio que venha a prejudicar a humanidade. Sendo essa tese defendida por Heron José de Santana e Fernanda Ravazzano conforme se observa:

 

O enquadramento do ecocídio no tipo penal descrito no artigo 7º  não configura analogia in malam partem ou interpretação extensiva, ambas vedadas pelo artigo 22 do Estatuto de Roma, mas de interpretação declaratória, uma vez que existirá uma adequação imediata ao tipo, desde que preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos descritos no tipo dos crimes contra a humanidade. Destarte, tal compreensão termina por ser fruto de uma visão antropocêntrica do meio ambiente e não ecocêntrica, afastando qualquer conduta de extrema gravidade que promova a destruição do meio ambiente em si, por não atingir diretamente uma população civil quando for resultado de uma ação política com tal finalidade específica. Em síntese, é preciso a aprovação de uma Emenda ao Estatuto para incluir o crime de ecocídio dentre os crimes contra a humanidade, permitindo punibilidade de ações que representem significativos danos aos ecossistemas naturais.

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Ainda seguindo a tese de que o crime de ecocídio não possuí validade dentro da seara internacional no que tange sobre sua existência material no Estatuto de Roma, temos a seguinte citação da doutrinadora e juíza do Tribunal Penal Internacional nos anos de 2003 a 2016, Sylvia Steiner, in verbis:

No entanto, a nosso entender, a premissa da mencionada denúncia é errônea, uma vez que – e é preciso repetir sempre – não há crimes contra o meio ambiente no Estatuto de Roma. O que há são condutas de destruição do meio ambiente como meio, como método de comissão de delitos, tais  como crimes de guerra – um deles aliás expressamente previsto no artigo 8(2)(b)(iv) do Estatuto ( lançar intencionalmente um ataque, com o conhecimento de que tal ataque causará perdas incidentais de  vidas ou danos a civis ou a objetos civis ou que causarão danos difusos, sérios e duradouros ao meio ambiente, que sejam  excessivos em relação à vantagem militar concreta que se pretendia).

 

Observa-se que, diante do exposto, não é ainda possível reconhecer o ecocídio como o 5º crime internacional. O que temos são apenas posições favoráveis de vários setores da comunidade internacional que reconhecem a necessidade e urgência da regulamentação e tipificação dessa conduta. Além disso, tais posicionamentos fortalecem os costumes internacionais vindo a dar base jurídica na proteção do meio ambiente.

Por fim, embora não se possa submeter o Princípio da Reserva Legal a meros entendimentos dos setores do Tribunal Penal Internacional, ainda sim é possível dar ouvidos a comunidades científicas e sociais que clamam a necessidade de se punir o crime de ecocídio entre as grandes potências mundiais e isso gera para a Procuradoria do Tribunal Internacional certa competência para buscar formas de punir tais crimes.

Seja o alto número de queimadas na Amazônia impulsionadas pela negligência governamental; seja a falta de consciência sobre mudanças climáticas por parte do governo americano; seja pela ganância chinesa capaz de transformar o céu em um depósito de poluição. Todos esses atos não podem ser mitigados pela burocracia existente na interpretação de um mero artigo, todavia, não deve ser tida como justificativa capaz de se sobrepor contra um tratado internacional só por conta de sua grande importância e urgência. Há de se existir um meio termo, de modo que o interesse ambiental seja soberano desde que também seja legal perante o governo dos homens.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA. Luciana Simmonds de. SOBRE A INCLUSÃO DO ECOCÍDIO COMO CRIME CONTRA A HUMANIDADE. Disponível em: http://www.trigueirofontes.com.br/artigo.php?idArtigo=2443. Acesso em setembro de 2019.

BRASIL. DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em setembro de 2019.

___________. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em setembro de 2019.

GORDILHO. Heron José de Santana; RAVAZZAN. Fernanda. Ecocídio e o tribunal penal internacional. JUSTIÇA DO DIREITO v. 31, n. 3, p. 688-704, set./dez. 2017. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rjd/article/download/7841/4648/. Acesso em setembro de 2019.

PORTAL ACRÍTICA. Juristas preparam denúncia contra Bolsonaro em Haia pelo crime de ecocídio. Disponível em https://www.acritica.com/channels/governo/news/juristas-preparam-denuncia-contra-bolsonaro-em-haia-pelo-crime-de-ecocidio. Acesso em setembro de 2019.

PORTAL AGÊNCIA BRASIL. Tribunal Penal Internacional reconhece 'ecocídio' como crime contra a Humanidade. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-02/tribunal-penal-internacional-reconhece-ecocidio-como-crime-contra. Acesso em setembro de 2019.

PORTAL JUSBRASIL. Princípio da Reserva Legal. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/293139/principio-da-reserva-legal. Acesso em setembro de 2019

STEINER. Sylvia. Não existe crime de ecocído no Tribunal Penal Internacional. Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-29/sylvia-steiner-nao-existe-crime-ecocido-tribunal-penal-internacional. Acesso em setembro de 2019.

 

Sobre o autor
Leandro Ferreira da Mata

Cientista Jurídico; bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio Brasília; Especialista em Direito da Criança, Juventude e dos Idosos e em Segurança Pública e Organismo Policial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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