Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha no estudo da Legislação Penal Especial

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A obra tem o intuito de esclarecer pontos principais da norma especial vigente, com o fim acadêmico de exposição normativa quanto aos posicionamentos dos tribunais superiores.

 

As normas jurídicas são as células do ordenamento jurídico, e tais células se desenvolvem com a necessidade de evolução, o qual segundo o entendimento do sociólogo Émile Durkheim, na sua concepção de sociedade como corpo biológico social, tendo por analogia a teoria Darwiniana de desenvolvimento, as normas nascem fruto de um conflito de interesses, necessidade, proporcionalidade e adequação social, sendo, portanto, tais atributos destacados ao surgimento das normas, e uma vez constituídas, passaram a integrar e regular o corpo biológico social através do ordenamento jurídico do Estado.

Nesta senda de raciocínio é imperioso destacar como se deu o desenvolvimento da lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, a sua objetividade jurídica e seus reflexos sociais.

A própria Magna Carta, em seu artigo 226, dispõe que:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...) § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifo nosso)

 

Assim sendo, há uma nítida preocupação com a família por parte da nossa Constituição Federal, tendo a família como célula máter do Estado. E nesta esteira de desenvolvimento surge a necessidade do Estado de coibir atos de violência doméstica contra a mulher.

A Lei Maria da Penha em sua sumária exposição cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. Ademais, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

É de se destacar que a lei é considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. A lei é bastante clara em seu escopo, merecendo destaque o trabalho aplicado em seu desenvolvimento, com o conteúdo conceitual e autorregulador.

O Estado é o responsável constitucional de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações, e a Lei Maria da Penha se encarregou de atribuí-lo a incumbência de desenvolver políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Contudo, é de se destacar que cabe a família, a sociedade e ao poder público criar condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos às mulheres descritos pela norma.

 

A violência domestica e familiar é toda a espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra mulher num determinado ambiente (domestico, familiar ou de intimidade) baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Insta destacar o entendimento do jurista Edison Miguel da Silva Jr, que esclarece acerca da violência de gênero:

É aquela praticada pelo homem contra a mulher que revele uma concepção masculina de dominação social (patriarcado), propiciada por relações culturalmente desiguais entre os sexos, nas quais o masculino define sua identidade social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão que chega mesmo ao domínio do corpo da mulher”.[1]

            Merece destaque o entendimento do doutrinador Guilherme de Souza Nucci, que leciona:

“(…) interpretar o mencionado artigo 5º, ignorando a exigência da relação de gênero para qualificar a conduta ou simplesmente atribuir ao termo gênero o mesmo significado de mulher, violaria o princípio constitucional da igualdade de sexos, pois ‘o simples fato de a pessoa ser mulher não pode torná-la passível de proteção penal especial’ (NUCCI, 2007:1043). Enfim, sob pena de inconstitucionalidade, violência doméstica não se confunde com violência de gênero”.[2]

Merece pronto destaque o entendimento do egrégio Superior Tribunal de Justiça, o qual definiu parâmetros importantes para a compreensão da lei, com a aplicabilidade desta mesmo que não tenha havido coabitação, e mesmo quando as agressões ocorrerem quando já se tiver encerrado o relacionamento entre as partes, desde que guardem vínculo com a relação anteriormente existente.

É possível a incidência da lei nas relações entre mãe e filha, já que o objeto da tutela da lei é a mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima independentemente do gênero do agressor.

Nesse aspecto cabe ressaltar que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizada por uma relação de submissão. Assim sendo, é necessário o requisito da existência da situação de vulnerabilidade da vítima frente ao agressor ou a motivação de gênero, tendo, como motivação, dessa forma, a opressão à mulher (fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha), e não apenas a ocorrência de uma simples agressão moral, física, psicológica ou patrimonial da vítima em razão de desavenças.

Impende ressaltar que no tocante aos casos de união homoafetiva entre mulheres resta transparente a possibilidade de aplicação da Lei 11.340/06, em ocorrências de delitos praticados por uma mulher contra a sua companheira homoafetiva, mormente por força do artigo 5º, parágrafo único, da referida lei.

É de se esclarecer de maneira pontual que ao homem que figurar como vítima (sujeito passivo) da violência doméstica não é cabível a aplicação dos benefícios da Lei Maria da Penha, apesar da referida lei não ser aplicada ao gênero masculino, nada impede de que a mulher agressora responda criminalmente pelos outros delitos que tenha praticado.

Inicialmente, a Lei 11.340/06 seria inconstitucional para alguns estudiosos por ferir o princípio da isonomia disposto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal entre homens e as mulheres. Ocorre que, o fundamento jurídico da constitucionalidade da norma está justamente nesse ínterim, pois bem, a isonomia buscada pela legislação é a isonomia formal sempre, e quando não alcançada de maneira significativa por aqueles que compõem o Estado, o próprio ordenamento jurídico trata de equilibrar essa relação através de determinadas ações afirmativas, as quais são atos ou medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo estado, espontânea ou compulsoriamente, com os objetivos de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantir a igualdade de oportunidades e tratamento, compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização. Assim, temos a ideia das chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.

 

É válido o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EMENTA: PENAL - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - LEI Nº 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA) - MEDIDAS PROTETIVAS – INCONSTI-TUCIONALIDADE SUSCITADA - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISSO-NOMIA - INOCORRÊNCIA - ÓBICE CONSTITUCIONAL AFASTADO.

A Lei Maria da Penha não discrimina o homem em benefício da mulher, dado que, se por um lado norma constitucional garante a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I), por outro cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, §8º), conferindo, para tanto, competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I). "O que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça", portanto, não se vislumbra violação ao princípio da isonomia na aplicação das regras da "Lei Maria da Penha".

 

É de se ressaltar as importantes lições de Celso Antônio Bandeira de Melo, o qual de maneira específica aponta o entendimento suscitado pelo autor:

A razão é simples. Aquilo que se há de procurar para saber se o cânone da igualdade sofrerá ofensa em dada hipótese, não é o fator de desigualação assumido pela regra ou conduta examinada, porquanto, como se disse, sempre haverá nas coisas, pessoas, situações ou circunstâncias, múltiplos aspectos específicos que poderiam ser colacionados em dado grupo para apartá-lo dos demais. E estes mesmos aspectos de desigualação, colhidos pela regra, ora aparecerão como transgressores da isonomia ora como conformados a ela. Em verdade o que se tem de indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é a seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for 'justificável', por existir uma 'correlação lógica' entre o 'fator de discrímen' tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma e a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade: se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou - o que ainda seria mais flagrante - se nem ao menos houvesse um fator de descrímen, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade. Ao cabo do quanto se disse, é possível afirmar, sem receio, que o princípio da igualdade consiste em assegurar regramento uniforme às pessoas que não sejam entre si diferenciáveis por razões lógicas e substancialmente (isto é, à face da Constituição), afinadas com eventual disparidade de tratamento. Não há nele, pois, garantia alguma de que pessoas diferenciadas de outras façam jus a tratamento normativo idêntico ao que a estas foi dispensado quando tal diferenciação se haja estribado em razões que - não sendo incompatíveis com valores sociais residentes na Constituição - possuam fomento lógico na correlação entre o fator de discrímen e a diversidade de tratamento que lhe foi consequente. O que se visa com o preceito isonômico é impedir favoritismos ou perseguições. É obstar agravos injustificados, vale dizer que incidam apenas sobre uma classe de pessoas em despeito de existir uma racionalidade apta a fundamentar uma diferenciação entre elas que seja compatível com os valores sociais aceitos no Texto Constitucional”.

Deste entendimento parte o pressuposto de que o intuito da lei de restaurar o princípio da igualdade, quanto a questões que envolvam a família.

É de breve pontuação deste autor que melhor seria a norma coibir todo e qualquer tipo de violência de maneira independente não se vinculando a questões de gênero, mas vislumbrando o ser humano como sujeito de direito, fomentando o equilíbrio social, moral e legal entre suas diversas escalas interpretativas, de fato é, que se faz necessário coibir a violência contra a mulher, todavia, melhor seria coibir toda e qualquer prática de violência no âmbito das relações domesticas e familiares, independentemente de quem quer que seja o sujeito passivo, de sorte que, não apenas demostraria a maturidade no desenvolvimento das nossas legislações, bem como a sua estruturação pro futuro.

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Quanto á aplicabilidade das medidas protetivas na Lei Maria da Penha, merece pronto destaque a sua conceituação, a qual é um dos mecanismos criados pela lei para coibir e prevenir a violência domestica e familiar, assegurando qua toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goze dos direito fundamentais inerentes à pessoa humana e tenha oportunidades e facilidades para viver sem violência, com a preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. As medidas protetivas estão previstas no art. 22 da Lei 11.340/06, e enquanto as medidas para o auxílio e amparo das vítimas de violência está no art. 23 e 24 da referida lei.

Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça tais medidas protetivas podem ser aplicadas extensivamente as relações homoafetiva, a relações entre mães e filhas, filhos e mães, dentre outras.

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIMES DE LESÃO CORPORAL E AMEAÇA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. RELAÇÃO HOMOAFETIVA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

Havendo violência doméstica em um contexto de relação homoafetiva, presume-se aplicável a Lei Maria da Penha, com o intuito de preservar a integridade da vítima mulher, não podendo ser afastada de plano a legislação especializada por força dos art. 2º e 5º, parágrafo único, da Lei 11.340/2014. (Processo nº. 20140020162973CCR Relator: Desembargador Jesuino Rissato. DJ: 29 Set. 2014). (DISTRITO FEDERAL, 2014).

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. MAUS TRATOS PRATICADO POR FILHO EM FACE DE MÃE IDOSA. INCIDÊNCIA DA LEI"MARIA DA PENHA"(LEI Nº 11.340/06).

Caso em concreto em que se apura a pratica de crime de maus tratos promovido por filho contra mãe idosa. A competência, no caso, se estabelece em razão da violência de gênero e da natureza do fato delituoso (ocorrido no âmbito doméstico e do convívio afetivo), e não só diante da condição de idosa da ofendida. Incidência das disposições da Lei nº 11.340/06. (Processo nº 70065169302. Relator: Victor Luiz Barcellos Lima. DJ 09 nov. 2015). (RIO GRANDE DO SUL, 2015).

Entretanto, não é possível a interpretação extensiva analógica quanto à aplicabilidade das medidas protetivas em favor do homem, como já havia dantes esposado noutra linha de entendimento.

É de significativa importância a exposição de que a Lei Maria da Penha não prevê crimes, apenas trouxe regras processuais instituídas para proteger a mulher vítima de violência doméstica, mas sem tipificar novas condutas, salvo uma pequena alteração feita no art. 129 do Código Penal.

Quanto à diferenciação da Lei 11.340/2006 para a Lei 13.104/2015, é de primaz transcendência a análise da objetividade normativa desta ultima que visa coibir a violência com a finalidade de gênero no que tange as práticas de crimes contra a vida. O feminicídio é comprovado caso haja antecedente de violência doméstica e familiar ou se o crime for motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Assim, a Lei Maria da Penha é complementar a Lei de Feminicídio, sendo utilizada para provar e aumentar a pena do acusado.

Em conclusão ao aludido trabalho, resta evidente a significativa importância da lei Maria da Penha no âmbito social de proteção contra a violência, neste passo, deve-se salientar que não houve por parte da lei 13.104/2015 qualquer espécie de evolução, pois, o feminicídio nada mais é do que um desdobramento da motivação torpe disposta no art. 121, §2º, I, do Código Penal, o qual detém a pena em sua cominação em reclusão de 12 a 30 anos, nessa feita, há de se analisar o inciso VI, que institui o feminicídio, a sua pena cominada também é a mesma da motivação torpe, ademais, detém o §2º-A, uma consideração normativa quanto às condições de sexo feminino, a qual o inciso I envolve a Lei Maria da Penha como legislação especial complementar ao tipo, enquanto o inciso II, e é de dúbia e indeterminada conceituação, servindo apenas como extensor da qualificadora do art. 121, §2º, VI. Melhor seria se a própria norma especial obtivesse seu próprio conceito e estruturação quanto á figuração do feminicídio, ou, a inclusão de uma ou outra alínea quanto ao desdobramento das condições do feminicídio no próprio Código Penal vigente. 

Diante disso, pelo esposado fica evidente a nossa lenta caminhada à evolução social em uma utopia de Estado que tentamos a cada dia formar por meio de leis e regimentos que figurem com força imperativa a correção do individuo, enquanto deixamos cada vez mais de lado a ponte de conhecimento e desenvolvimento que é a educação. O núcleo da sociedade evolui quando os indivíduos a ela pertencentes também evolui, não há como ser o contrario, pois, restaria o Estado corrigir falhas de conhecimento por meio de leis? Não haveria lei mais perfeita do que a moral, a ética e educação se estas em verdade fossem leis, mas estas por sua vez, não são leis, são elementos construtores de indivíduos.

 

Ítalo Miqueias da Silva Alves

 


[1] SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Direito penal de gênero. Lei 11.340/06: violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1231, 14nov. 2006 .

[2] NUCCI

Sobre o autor
Ítalo Miqueias da Silva Alves

Jurista. Pós Graduado em Direito Processual Penal, Direito Processual Civil, Direito, Direito Constitucional e Direito Digital. Especialista em Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo. Pesquisador. Palestrante. Escritor e autor de diversas obras na seara jurídica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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