A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A SEGURANÇA JURÍDICA

17/10/2019 às 12:03
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE TEMA EM DEBATE NO STF ENVOLVENDO A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A SEGURANÇA JURÍDICA

Rogério Tadeu Romano

I – AS ADCs 43, 44 E 54 E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O Plenário do Supremo Tribunal Federal julga, no dia 17 de outubro do corrente ano,  o mérito das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54. Nas ações, o Partido Ecológico Nacional - PEN (atual Patriota), o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pedem que o STF condicione o início do cumprimento da pena ao esgotamento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado). O relator das ADCs é o ministro Marco Aurélio.

O tema de fundo das ações é o chamado princípio da presunção de inocência. De acordo com o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, destacado nas ações, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

As decisões deverão ter caráter vinculante e efeito erga omnes com relação ao tema.

De um lado, há a expectativa com relação a necessária segurança jurídica que o julgamento deverá trazer.

De outro lado, há uma apreensão com relação ao julgamento.

São inadmissíveis as ameaças e afrontas proferidas contra o STF, numa vã tentativa de emparedá-lo.  

Sabe-se que nesse julgamento, além de Lula, cerca de 4,8 mil presos podem ser beneficiados com uma mudança de entendimento do Supremo sobre o tema, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça. De 2016 para cá, o STF já entendeu em quatro ocasiões que é possível a prisão após condenação em segunda instância – a última delas foi na análise de um habeas corpus do petista, que acabou negado pelo apertado placar de 6 a 5. Faltava, no entanto, o julgamento de mérito das três ações, formando o entendimento que deve ser aplicado para todas as instâncias judiciais do País. 

O que está em discussão é a efetividade do princípio da presunção da inocência.

O princípio da presunção da inocência foi legitimado com a CF de 1988. Mas as alterações legislativas, ao longo dos anos, não deram uniformidade ao entendimento do tema.

É o que se tem da redação prevista no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal.

Desse modo, a regra há de ser a proibição da execução provisória mantida, então, a abertura para a sua excepcional exceção, enquanto a Constituição garantir a proibição de tratamento de culpado àquele ainda não definitivamente condenado(artigo 5º, LVII).

Veio o artigo 283 do CPP em sua nova redação de sorte que a liberdade é a regra e a prisão a exceção. Essa a redação trazida pela Lei 12.403, de 2011:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 1o As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 2o A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 84.078 – MG, decisão publicada no DJ em 26 de fevereiro de 2010, afastou a possibilidade de execução provisória da pena, na pendência de recurso especial ou de recurso extraordinária.

A partir da decisão referenciada, as prisões, na pendência de recursos da via extraordinária(especial e extraordinário) reclamam a devida fundamentação acautelatória.

Sabe-se que esses recursos são recebidos apenas no efeito devolutivo e não suspensivo.

Desse modo, a regra há de ser a proibição da execução provisória mantida, então, a abertura para a sua excepcional exceção, enquanto a Constituição garantir a proibição de tratamento de culpado àquele ainda não definitivamente condenado(artigo 5º, LVII).

O artigo 105 da Lei de Execuções Penais determina que ¨transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. Necessário atender que  o princípio da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao  réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário, como se lê de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no HC 80.719-4/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 28 de setembro de 2001. A decisão citada se amolda a outra no HC 88.174/SP, Relator para o acórdão o Ministro Eros Grau, onde se diz que a prisão sem fundamento cautelar, antes de transitada em julgado a condenação, consubstancia execução antecipada da pena, violando o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.

Destacam-se diversos julgamentos nesse sentido, da parte do Superior Tribunal de Justiça, como se lê do HC 73.578/RS, DJ de 15 de outubro de 2007, dentre outros.

A presunção de inocência é uma constante no Estado de Direito.

A regra trazida nesse magno princípio é de que todos se beneficiam por ser inocentes até prova em contrário.

Canotilho(Direito constitucional e teoria da constituição), comentando o princípio, chama a atenção para o fato de que o rigorismo de interpretação levaria à conclusão da própria inviabilidade da antecipação de medidas de investigação e cautelares(insconstitucionalizando a instrução criminal) e a proibição de suspeitas sobre a culpabilidade.

De fato, embora alguém só possa ser tido por culpado ao cabo de um processo com este propósito, o fato é que, para que o poder investigatório do Estado se exerça, é necessário que ela recaia mais acentuadamente sobre certas pessoas: sobre aquelas que vão mostrando seu envolvimento com o fato apurado.

Trata-se de uma verdadeira cláusula pétrea daquelas que não podem ser objeto de reforma constitucional e que protege uma garantia constitucional.

Bem disse Celso Ribeiro Bastos(Comentários à Constituição do Brasil, volume II, pág. 278), que “o que se pode inferir da presunção de inocência, em primeiro lugar, é que não pode haver inversão do ônus da prova. Se ao Poder Público compete o formalizar a denúncia, também cabe-lhe promover as provas necessárias, assegurados o contraditório e a ampla defesa”.

Esta, sem dúvida, é uma das manifestações mais sensíveis da presunção de inocência. Daí seguem-se diversos corolários se a verdade não ficar perfeitamente assentada na tese da acusação ou na defesa do réu, surgindo assim uma situação duvidosa, ainda assim deverá seguir-se a absolvição. A condenação somente poderá ser possível diante de provas que indubitavelmente infirmem a presunção de inocência. Guarda-se, aqui, a proximidade com o princípio do in dubio pro reo.

Sendo assim os princípios da presunção de inocência e “in dubio pro reo” constituem a dimensão jurídica processual do princípio jurídico material da culpa concreta como suporte axiológico normativo da pena”, como informou Canotilho.

Em 2009, no julgamento do habeas corpus de um réu que havia sido condenado em 2ª instância mas pedia o direito de recorrer em liberdade, o STF decidiu, por 7 a 4, que a execução da pena ficou condicionada ao trânsito em julgado (quando não cabe mais recurso).

II – A CRIMINALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A DENSIFICAÇÃO DA NORMA

Ocorre que, em nome do combate à impunidade, a corte resolveu alterar tal entendimento em fevereiro de 2016. A corte mudou o entendimento por entender que impedir a execução da pena em 2ª instância favorecia a impunidade.

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Foi decisivo para tal entendimento a chamada “operação lava-jato” que se baseou, no exemplo italiano, das “mãos limpas”.

Em nome do princípio da moralidade,entendeu-se que era necessário, mesmo com os devidos abusos, combater crimes contra o patrimônio público, expostos na corrupção ativa e passiva e ainda combater a chamada “lavagem de dinheiro” oriunda desses crimes.

Essa maioria formada buscava trazer a concretização dessas ideias.

Houve o que se chamou de criminalização da política.

Em outubro de 2016, o plenário confirmou a jurisprudência, dessa vez por 6 a 5, em julgamento de novo habeas corpus.

Em novembro de 2016, em decisão do plenário virtual, ministros votaram novamente pela execução da pena em 2ª instância. Rosa Weber não votou, e os demais magistrados não mudaram os votos.

Em abril de 2018, no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, o STF confirmou, mais uma vez, a jurisprudência em favor da prisão em 2ª instância.

Houve, naquelas últimas ocasiões, uma construção normativa, à luz dos ensinamentos de J.J.Gomes Canotilho. Para tanto, seria necessário densificar a norma jurídica exposta no artigo 283 do Código de Processo Penal.

Dentro da metódica jurídica normativo-estruturante, são componentes da norma, o programa normativo e o domínio normativo. O programa normativo, como informou J. J. Gomes Canotilho(Direito Constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1179), é o resultado de um processo parcial de concretização assente fundamentalmente na interpretação do texto normativo. O setor normativo é o resultado do segundo processo parcial de concretização fulcrado sobretudo na análise dos elementos empíricos(dados reais, dados da realidade).

Com isso, tem-se o método estruturante, na concretização da Constituição(que se traduz num processo de densificação de regras e princípios constitucionais), que vai do texto da norma para uma norma concreta, na tentativa de descobrir uma norma de decisão.

Densificar uma norma significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especificamente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos enfrentados pelo intérprete. Densifica-se um espaço normativo (preenche-se uma norma) para tornar possível a sua concretização e a consequente aplicação de um caso concreto.

Mas uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a “medida de ordenação”, nela contida se decide um caso jurídico, ou seja, quando o processo de concretização se completa através de sua aplicação, como anotou Canotilho(obra citada pág. 1184), ao caso jurídico a decidir: a) a criação de uma disciplina regulamentadora ; b) através de uma sentença ou decisão judicial; c) através da prática de atos individuais pelas autoridades. Com isso uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata através de sua passagem a norma de decisão, que regula concreta e vinculativamente o caso carecido de solução normativa. Estamos diante de uma norma de decisão.

Essa perspectiva de densificação da norma constitucional prevista  no artigo 5º, LVII, deve ser vista com evidentes reparos.

Ora, a impunidade deve ser objeto de combate, mas nos limites constitucionais, respeitas as garantias constitucionais e das leis. Ou seja: sem abusos.

III – A SOLUÇÃO ENCONTRADA EM OUTROS MODELOS CONSTITUCIONAIS

Dir-se-á ainda que os modelos constitucionais na Alemanha, na França e nos Estados Unidos acolhem esse entendimento pela execução da pena nas instâncias inferiores.

Assim tem-se:

Itália
Prisão pode ocorrer após decisão de segunda instância por corte de apelação

Alemanha
Detenção pode ser feita a partir de decisão de segunda instância, que resulta de julgamento feito por um colegiado composto por juízes e leigos

França
Execução da pena restritiva de liberdade pode ser efetivada depois de decisão de primeira instância, que é tomada por um grupo de magistrados

DIREITO ANGLO-SAXÃO

Estados Unidos
Prisão ocorre após julgamento de primeira instância decidido por júri popular   

Mas, no direito constitucional português, artigo 32, há texto que se aproxima daquele do artigo 5º, LVII, da Constituição de 1988.

IV - AS ESTATÍSTICAS 

É certo que os recursos especiais e extraordinário, previstos após a decisão de segunda grau, só enfrentam matéria de direito e não de fato. Ainda se diz que devem ser recebidos apenas no efeito devolutivo.

Por fim, para os afeitos às estatísticas trago as seguintes conclusões: Uma em cada três decisões judiciais proferidas na segunda instância que chegam ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) é alterada pela corte, e 7% dos casos que vão ao STF (Supremo Tribunal Federal) são total ou parcialmente modificados.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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