ANÁLISE DAS ALOCAÇÕES DE RISCOS NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS

21/10/2019 às 15:10
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O presente trabalho buscar analisar a temática das alocações de riscos nos contratos de concessão de rodovias federais, ingressando, de maneira introdutória na conceituação de serviços públicos, do surgimento das concessões, fazendo um apanhado histórico.

INTRODUÇÃO

 

De início, buscar-se-á falar sobre a conceituação de serviço público no Brasil, adentrando-se, posteriormente, na questão de alocação de riscos nos contratos de concessão de rodovias federais, frente a essas delegações de serviços públicos. Será analisado, também, no processo de concessão das rodovias federais.

O tema em questão é de suma importância na atualidade, tendo em vista que, nos últimos anos, os contratos de concessão de estradas no território brasileiro têm aumentando de forma expressiva, e a problemática das alocações de riscos nestes contratos tem sida colocada cada vez mais sob análise.

2 ANÁLISE DAS ALOCAÇÕES DE RISCOS NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS

2.1 CAPÍTULO I - SERVIÇOS PÚBLICOS E AS CONCESSÕES DE RODOVIAS

2.1. Noções introdutórias

 

O preceito mais genérico relativo ao assunto “serviços públicos” existente na Constituição de 1988 é o seu art. 175[1], que está inserido no Título VII (“Da Ordem Econômica e Financeira”). É a seguinte a sua redação:

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – O regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – Os direitos dos usuários;

III – Política tarifária;

IV – A obrigação de manter serviço adequado.

Esse dispositivo constitucional atribui ao “poder público” a titularidade dos serviços públicos de um modo geral. Estatui, ainda, que o poder público pode prestar esses serviços públicos diretamente ou indiretamente, nesse último caso, mediante concessão ou permissão. (ALEXANDRINO e PAULO, 2011, p. 649).

As atividades que constituem objeto dos serviços públicos a que se reporta o art. 175 da Constituição são de titularidade exclusiva do Estado, vale dizer, o exercício da atividade é subtraído à iniciativa privada livre. Esses serviços públicos podem ser prestados pelo Estado diretamente, ou por particulares, mediante delegação do poder público. Em todo caso, essas atividades têm que ser exercidas como serviço público, submetidas a um rígido regime jurídico de direito público.

2.1.2 Conceito de serviço público

Vale dizer, preliminarmente, que a Constituição da República não conceitua serviço público; tampouco o fazem as leis no Brasil. É mister, dessarte, perquirir como a doutrina trata o problema da definição do objeto desse tema. Certo é que não existe um conceito doutrinário consensual de “serviço público”. O que há são escolas ou correntes teóricas que, segundo critérios variados, procuram indicar os elementos relevantes para a identificação ou conceituação de uma atividade como serviço público. (ALEXANDRINO e PAULO, 2011, p. 653).

De acordo com os ensinamentos de (DI PIETRO, 2009, p. 99-104), o conceito de serviço público pode ser destacado em duas vertentes: conceito amplo e conceito restrito.

O serviço público em sentido amplo, segundo a doutrinadora, pode ser conceituado como aquele que abrange todas as atividades do Estado, ou seja, toda a atividade judiciária e administrativa, em virtude do fato de que o objetivo maior do Estado é proporcionar aos cidadãos a satisfação de suas necessidades.

Esse conceito de serviço público amplo é adotado atualmente pelo ilustre (MASAGÃO, 1956, p. 252) no qual, considerando os fins do Estado, considera como serviço público toda a atividade que o mesmo exerce a fim de cumprir seus objetivos.

Os professores (CRETELLA JÚNIOR, 1966, p. 60) e (MEIRELLES, 2009, p. 320) também adotam o conceito amplo de serviço público, conceituando-o como “toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para a satisfação das necessidades públicas mediante procedimento típico do direito público” e “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniência do Estado”, respectivamente.

Ademais, a Lei 8.666/93, que regulamentou o art. 37, XXI, da Constituição, instituindo normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Pública, assim definiu o serviço público:

Art. 6º. Para fins desta lei considera-se:

II: Serviço público: toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” [2].

 

Por sua vez, serviço público em sentido estrito, é aquele que define o serviço público como as atividades exercidas pela Administração Pública, com exclusão das funções legislativa e executiva. Nesse sentido, é restrito o conceito dos professores (MELLO, 2004, p. 158) e (JUSTEN FILHO, 2005, p. 345), para os quais serviço público é, respectivamente:

Toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes. Sob um regime de direito público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios do sistema normativo”.

“(...) a atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, insuscetível de satisfação adequada mediante os mecanismos da livre iniciativa privada, destinada a pessoas indeterminadas, qualificada legislativamente e executada sob regime de direito público”.

 

2.1.3 Surgimento das concessões

 

Segundo autores como Floriano de Azevedo Marques Neto[3], o surgimento do termo “concessão” como significado de instrumento do Poder público para execução de suas tarefas, se deu antes, inclusive, do Direito Administrativo.

Encontramos no Direito Romano, exemplos de concessão como gênero, como a concessão de terras públicas, com a finalidade de conferir privilégios aos nobres, ou visando fins arrecadatórios. Concessões estariam presentes também no período medieval e absolutista. (GALVÃO, 2016, p.4)

Todavia, o seu significado passou por transformações ao longo do tempo.

Em nosso País, o início do processo de desestatização se deu na década de 90, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Embora intensos debates tenham se dado à época – na maioria das vezes motivados por motivos ideológicos, e não de ordem pragmática – e até hoje perdurem discussões acaloradas que contestam sua adoção, esse processo se mostrava necessário em face do cenário enfrentado: o Estado era grande, com muitos custos, sem eficiência; a crise financeira se aprofundava, a inflação atingia níveis alarmantes e imprevisíveis, chegando a alcançar, em 1985, mais de 235% ao ano, enquanto o Estado social se mostrava ineficaz em atender os anseios da população. (GALVÃO, 2016, p.4)

É nesse cenário que surge a Lei nº 8.987 de 13 de fevereiro de 1995 e a Lei nº. 9.074 de 7 de julho de 1995, ambas versando do instituto das concessões e das permissões de serviços públicos. Posteriormente, em 2004, surgiria ainda a lei de Parcerias público-privadas (Lei 11.079/04), que traria novas modalidades do contrato administrativo de concessão, como a concessão patrocinada e a concessão administrativa. Tanto as concessões quanto as permissões são instrumentos destinados à descentralização da prestação dos serviços públicos. (GALVÃO, 2016, p.5)

A titularidade do serviço ainda continua com o Estado, mas sua execução é passada ao particular, que deve atender a todos esses requisitos quando da prestação dos serviços de titularidade estatal.

 

2.1.4 Licitação

 

            Em regra, a concessão é precedida de licitação na modalidade concorrência, nos termos do art. 2º, incisos II, III e IV, c/c o art. 40, parágrafo único, da Lei 8.987/1995, sendo possível, todavia, outras modalidades de licitação por legislação específica.

            Há também a alternativa de contratação direta nas hipóteses de inviabilidade de competição (licitação inexigível) ou na hipótese de urgência (art. 24, III, IV e IX, da Lei 8.666/1993), quando a licitação seria um óbice à promoção célere do interesse público, bem como na hipótese de licitação deserta (art. 24, V, da Lei 8.666/1993).

 

2.1.5 Concessões de rodovias

 

Os contratos de concessão de rodovias são firmados entre o poder concedente (governo) e a empresa particular que tenha vencido a licitação. Nele, encontram-se todos os investimentos previstos, a localização sugerida dos postos de pedágio, obras que devem ser feitas, e os critérios adotados para quaisquer reajustes de tarifa.

As alterações no contrato devem ser avaliadas e discutidas entre o governo e a concessionária, já que qualquer mudança feita por apenas uma das partes é ilegal.

A concessionária é escolhida através de um processo de licitação pública. A empresa que vencer essa licitação, administrará a rodovia em questão.

O critério de escolha dependerá do tipo de modelo escolhido pelo órgão público. Existem casos em que o governo opta por fazer um leilão, que funciona da seguinte forma: é fixada uma tarifa máxima para o pedágio, e a empresa que oferecer a menor taxa vence o leilão.

Outra possibilidade é o poder público fixar a tarifa do pedágio e declarar a concessão à empresa que oferece o maior valor da outorga pelo direito de administrar o trecho. Desta forma, o governo consegue usar o valor arrecadado para investir em outros projetos na área de transporte.

Ditas essas noções introdutórias e conceituais, passa-se a análise das alocações de riscos dos contratos de concessões de rodovias federais.

 

2.2 CAPÍTULO II - ALOCAÇÕES DE RISCOS NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE RODOVIAS

 

A análise microeconômica, partindo da suposição de indivíduos avessos ao risco, apresenta como resultado a necessidade de que haja um prêmio pelo risco, isto é, um indivíduo que recebe um valor certo, deriva deste, um determinado nível de utilidade; para que ele consiga o mesmo nível de utilidade via loteria, é necessário que o valor esperado da loteria seja superior ao valor certo. Esta diferença em dinheiro é o prêmio pela exposição ao risco.

Este é um fundamento básico para a teoria de finanças corporativas e para os modelos de precificação de ativos como o CAPM (Capital Asset Pricing Model) e apresenta reflexos sobre a otimização de alocação de risco em contratos de concessão.

Como os diversos agentes percebem de forma distinta um mesmo risco (loteria), isto significa que haverá agentes cobrando prêmios distintos para um mesmo risco (loteria). Se alguém tem por objetivo minimizar o valor do prêmio pago, deve desenvolver maneiras que identifiquem o indivíduo que cobre o menor valor possível de prêmio.

Aplicando ao caso de uma concessão, se todos os licitantes esperam receber o mesmo fluxo futuro de benefícios, considerando os investimentos e obrigações, ou seja, possuem expectativas semelhantes sobre os possíveis resultados da concessão, ganhará o licitante que cobrar o menor prêmio pelo risco de operar a concessão, posto que a menor taxa gerará o maior lance em valor. (GUERRERO, p. 3)

O mesmo raciocínio vale para leilões de menor tarifa; pois para uma dada estrutura de custos esperada, ganhará o licitante que cobrar o menor prêmio pelo risco, pois irá requerer a menor tarifa necessária para cobrir seu custo de oportunidade.

Desta análise já se pode observar a relação existente entre o valor da tarifa de lance dada por cada licitante e a percepção de risco que esse licitante tem da concessão. Isso significa que uma eventual realocação de riscos na minuta do contrato de concessão presente em um edital pode alterar o valor da tarifa de lance de todos os licitantes, alterando a tarifa do lance vencedor (relação com a modicidade tarifária).

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De forma bastante simplificada, quanto menores forem os riscos repassados ao concessionário privado, menor tenderá a ser o seu prêmio de risco e, consequentemente, menor será sua tarifa mínima requerida.

Contudo, este é um lado do problema, pois uma eventual situação limite na qual não se repassa nenhum risco ao concessionário pode onerar excessivamente o lado público, podendo gerar como resultado gastos por parte do Tesouro para arcar com os riscos assumidos, implicando, do ponto de vista global, um resultado pouco eficiente, pois o que o concessionário não cobra diretamente dos usuários (via tarifa) passa a ser cobrado indiretamente dos contribuintes. (GUERRERO, p. 3).

Todos os contratos possuem uma matriz de risco. E é essa matriz que determina qual será a responsabilidade de cada uma das partes. Nisso inclui estipular também qual das partes estará incumbida de lidar com determinados riscos que podem vir a afetar o andamento contratual. A alocação adequada de riscos é fundamental para que se obtenha um andamento conveniente do contrato, e consequentemente incentivo para a ação de cada uma das partes contratuais.

Assim, a alocação correta dos riscos do empreendimento é fundamental para o sucesso da empreitada, uma vez a distribuição desses fatores pode permitir que o negócio se torne mais ou menos eficiente, tanto do ponto de vista da economicidade quanto da qualidade do serviço oferecido aos usuários.

No Brasil, historicamente, a estrutura de alocação de risco é ainda fortemente baseada na teoria das áleas, relacionada com a doutrina administrativa brasileira.

Segundo a teoria das áleas, os riscos de uma concessão são divididos em três grupos:

a) álea ordinária: eventos relativos ao andamento regular do negócio, que são de responsabilidade do ente privado (exemplo: flutuação de demanda);

b) álea extraordinária econômica: eventos que dificultam fortemente a execução do contrato, porque oneram excessivamente a parte contratada (Teoria da Imprevisão). Estes são usualmente alocados como de responsabilidade do Poder Concedente (exemplo: enchentes que oneram, mas não inviabilizam a continuidade dos serviços);

c) álea extraordinária administrativa: conjunto de eventos que alteram o contrato de forma unilateral, tendo por origem o Poder Concedente ou autoridade legal, resultando em desequilíbrio econômico-financeiro relevante. Estes também são alocados como de responsabilidade do Poder Concedente (exemplo: alterações tributárias ou descontos tarifários não planejados originalmente). Aqui também se inclui o caso de Força Maior, que impossibilita a continuidade da execução do contrato, mas, neste caso, ficam ambas as partes isentas de qualquer sanção (exemplo: greve que inviabiliza a execução do contrato).

Por essa razão, a matriz de risco está muito ligada ao sistema de equilíbrio econômico-financeiro. A função do sistema é justamente o cumprimento permanente da matriz de riscos contratual, nos termos de Maurício Portugal Ribeiro[4], o autor explica que há três critérios principais, que devem ser observados para uma melhor distribuição dos riscos em um contrato, sendo eles:

1. As condições que estão ao alcance de cada parte para evitar eventos indesejáveis. O risco deve ser alocado à parte que consiga, a menor custo, reduzir as chances de um evento danoso ocorrer. Uma lição citada pelo autor é que, em contratos de concessões rodoviárias, costuma-se atribuir o risco ao concessionário por eventuais acidentes com cargas perigosas. Afinal, está muito mais ao alcance deste prevenir os acidentes (ao manter a rodovia em boas condições, por exemplo).

2. As condições de lidar com tais eventos danosos, uma vez já ocorridos. Novamente, o exemplo de acidentes com cargas perigosas em concessões rodoviárias se aplica aqui: o concessionário costuma estar em melhor posição para remediar mais rapidamente as consequências do acidente, evitando, dentro do possível, ainda mais contaminações.

3. A possibilidade de “externalizar” os custos desses eventos danosos a terceiros. Nesse caso, como a Administração sempre repassa seus custos, direta ou indiretamente aos contribuintes, a utilização desse critério acabaria nos levando ao entendimento de que seria melhor priorizar a transferência dos riscos sempre ao parceiro privado. No entanto, há casos em que a concessionária não tem condições de lidar com alguns riscos, ou remediar suas consequências.

Assim sendo, o parceiro privado tenderá a embutir em seu preço o custo de lidar com esses eventos indesejáveis, ou fazer seguro e repassar esse custo para o preço cobrado da Administração ou do usuário. Dessa forma, deve-se analisar cada caso individualmente, sem pularmos à conclusão de que seria sempre melhor alocar os riscos ao parceiro privado.

Assim, percebe-se que, para além da alocação eficiente de riscos entre as partes, é importante também que todo o conjunto regulatório que sustenta essa alocação de riscos seja crível.

 

2.2.1 A DISTRIBUIÇÃO DOS RISCOS

 

            De acordo com o art. 5º, III da Lei nº 11.079/2004

Art. 5º As cláusulas dos contratos de Parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei n] 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prover:

(...)

III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.

Para (RIBEIRO, 2016, p. 3), as 3 principais partes de um contrato de concessão, cuja estruturação adequada é essencial para a maximização da sua eficiência, são: (1) o cerne do contrato (indicadores de serviço, obrigações de investimento e sistema de pagamentos), (2) a matriz de riscos contratual, e (3) o sistema de equilíbrio econômico-financeiro.

O cerne do contrato trata das especificações das atividades a serem delegadas pelo Poder Concedente ao concessionário (qualidade e quantidade dos serviços, investimentos a serem realizados etc.) e de como ele remunerará ou penalizará o concessionário pelo cumprimento ou descumprimento das prestações previstas no contrato. Considerando que os contratos de concessão são contratos de longo prazo, ao longo da sua vigência poderão ocorrer diversos eventos que podem perturbar ou facilitar o cumprimento das obrigações que integram o cerne do contrato. (RIBEIRO, 2016, p. 3).

Para maximizar a eficiência do contrato, é preciso criar incentivos para as partes protegerem o cerne do contrato, maximizando as chances de ocorrência dos eventos que são benéficos ao seu cumprimento e minorando as chances de ocorrência dos eventos que o perturbam. Esses incentivos são criados pela alocação às partes dos riscos relativos aos eventos. (RIBEIRO, 2016, p. 4)

O sistema de equilíbrio econômico-financeiro, por sua vez, é o conjunto de regras que estabelece como serão calculadas e realizadas as compensações econômicas e/ou financeiras da parte responsável pelo risco de ocorrência de dado evento à parte que foi atingida por suas consequências. O sistema de equilíbrio econômico-financeiro pode ser definido como o braço operacional da matriz de riscos, pois é ele quem define como devem ser realizadas as compensações entre as partes que decorrem da distribuição de riscos prevista no contrato. (RIBEIRO, 2016, p. 4).

 

2.2.2 Critérios para distribuição de riscos

 

Conforme ensina (RIBEIRO, 2016, p. 4), há, basicamente, quatro critérios teóricos bastante simples que devem ser seguidos na decisão sobre repartição de riscos: “O primeiro deles é que o risco deve ser sempre alocado à parte que, a um custo mais baixo, pode reduzir as chances do evento indesejável se materializar ou de aumentar as chances de o evento desejável ocorrer”.

Esse critério leva em conta a capacidade das partes de adotarem ações preventivas para evitar eventos indesejáveis ou de incentivarem a ocorrência dos eventos desejáveis. Por exemplo, é comum se atribuir ao parceiro privado em contratos de concessão comum e PPP o risco de sobre custo ou atraso na construção do empreendimento. Isso porque há no mercado privado expertise para gerenciamento do risco de construção, que pode ser obtida a custos mais baixos pelo parceiro privado, que pelo Poder Concedente. Também é bastante comum em contratos de concessão comum e PPP atribuir ao parceiro privado o risco de disponibilidade do serviço, pois, em regra, a iniciativa privada tem capacidade e experiência em se organizar para prestar adequadamente os serviços nos setores de infraestrutura, particularmente os que já foram objeto de desestatização.

O segundo critério para alocação de riscos, considera, ao invés da capacidade de prevenção dos eventos indesejados, a capacidade de gerenciar as consequências danosas, caso o evento indesejado se realize.

Por esse critério, o risco deve ser alocado à parte que pode melhor mitigar os prejuízos resultantes do evento indesejável. É o caso, por exemplo, do risco de acidentes com cargas perigosas em rodovias. Nas concessões rodoviárias, geralmente é risco do concessionário eventuais acidentes com cargas perigosas. Decerto que o concessionário pode praticar alguns atos para prevenir a ocorrência de acidentes, como, por exemplo, manter as rodovias em boas condições, com sinalização adequada, disponibilizar batedores para acompanhar os caminhões que transportam esse tipo de carga etc. Contudo, o mais relevante nesse caso é que, uma vez ocorrido o acidente, o concessionário geralmente é quem está em melhor posição para rapidamente remediar as consequências do acidente, de maneira a impedir contaminações para além das inevitáveis.

O terceiro é a capacidade das partes do contrato de “externalizar” o custo de prevenir ou remediar os eventos indesejáveis. Por esse critério, os riscos devem ser alocados sempre sobre a parte que tem menores possibilidades de “externalizar” as consequências do evento indesejável, ou seja, repassar para terceiros o custo destes eventos.

Isso porque a possibilidade de repassar facilmente o custo para um terceiro tira geralmente o incentivo da parte para prevenir e remediar adequadamente a ocorrência de eventos indesejáveis. Considerando que a Administração Pública sempre repassa os seus custos direta ou indiretamente para os contribuintes, a utilização desse critério levaria a priorizar a transferência para o parceiro privado dos riscos. Por outro lado, ao repassar para o parceiro privado riscos que ele não tem como controlar, ou seja, cuja ocorrência dos eventos indesejáveis ele não tem como prevenir ou remediar, o parceiro privado tenderá a: (a) fazer seguro, e repassar o custo do prêmio para o preço cobrado da Administração Pública ou usuário; ou, (b) quando não houver seguro disponível no mercado a preços razoáveis, embutir no seu preço à Administração Pública custo total de lidar com os eventos indesejáveis. Se houver seguro disponível no mercado e experiência relevante de contratação desse seguro, a tendência é que a cobertura esteja disponível no mercado securitário a preços razoáveis.

A contratação do seguro resultará na repartição social do risco, pois o preço do prêmio considerará a probabilidade de ocorrência dos eventos indesejáveis e a dimensão do dano esperado, na eventualidade de sua ocorrência.

Se, contudo, o parceiro privado não puder encontrar cobertura securitária no mercado, ele, para se resguardar contra o risco do evento indesejável, incluirá no seu preço o custo de lidar com esses eventos. Isso significa que a Administração Pública e/ou os usuários estarão pagando pelas consequências do evento indesejado, mesmo em um cenário em ele não ocorra.

Por isso, no caso de não haver no mercado securitário cobertura para o risco que se pretende transferir para o parceiro privado – a despeito do parceiro privado não ter controle sobre a prevenção da sua ocorrência, ou minoração das suas consequências danosas – ou no caso dos prêmios para tais coberturas serem proibitivos (o que acontece geralmente por subdesenvolvimento do mercado de seguros, e, portanto, falta de histórico e bases estatísticas para precificar adequadamente o risco), faz sentido alocar o risco sobre a Administração Pública.

Com essas considerações, faremos uma análise crítica a respeito da alocação de riscos nos contratos de rodovia.

 

2.3 CAPÍTULO III - DOS CONTRATOS DE CONCESSÕES DE RODOVIAIS FEDERAIS

 

Os contratos de concessões de rodovias federais passaram por três módulos, cada qual com um modelo de contrato distinto. Adicionalmente, a própria ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) vem alterando seus procedimentos regulatórios, intensificando-os, como em 2012 quando da realização da Primeira Revisão Tarifária Periódica do setor de transporte ferroviário de cargas. Dentro deste contexto, esta seção busca verificar se as alterações na matriz de risco das concessões rodoviárias federais têm ido em direção a uma alocação mais eficiente, reduzindo o risco global da concessão, consequentemente, indo em direção da modicidade tarifária. Previamente à análise de cada contrato, há um resumo das condições macroeconômicas e institucionais que auxiliam no entendimento da estrutura de cada contrato.

 

2.3.1 Primeira etapa de concessões de rodovias federais[5]:

 

A primeira etapa de concessões de rodovias federais ocorreu na segunda metade da década de 90, na esteira do PND (Programa Nacional de Desestatização). Esta década marcou o início da transição brasileira do modelo de Estado produtor nos setores de infraestrutura para um modelo de Estado regulador nestes setores. 

A própria Lei de Concessões havia sido promulgada apenas em 1995. Até então, a principal referência da relação público-privado era a Lei de Licitações de 1993 (a qual já teve versões anteriores, revogadas por esta última).  Completava este quadro o fato de que a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) só seria criada em 2001 e, portanto, as licitações foram realizadas no âmbito do DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem). 

Do ponto de vista econômico, o Brasil ainda vivia sob a sombra de um possível retorno da inflação, com uma estrutura produtiva defasada, poucas reservas internacionais etc. Estes fatores implicavam um cenário de constante instabilidade econômica, o que também dificultava o interesse privado nos setores a serem privatizados, requerendo altas taxas de retorno em troca. Institucionalmente, ainda era muito recente a guinada pró-privatização, o que resultava em uma menor credibilidade do Estado por parte dos investidores, sendo também mais um fator que contribuía para a demanda de altas taxas de retorno por parte dos investidores. 

Com relação à literatura aplicada sobre o tema privatização/concessão, havia ainda poucos resultados empíricos analisados para países emergentes. É dentro este contexto que foram elaborados os contratos de concessão desta etapa. O reflexo de todos estes fatores sobre os contratos de concessão desta primeira etapa foi a elaboração de contratos caracterizados por (contrato NOVADUTRA):

a) Formato mais voltado para obra pública:

I. Definição de preços unitários para as diversas obras (ao invés de valor global), eliminando o risco privado de variações na quantidade de insumos nas obras definidas contratualmente (PER – Programa de Exploração Rodoviária); e

II. Possibilidade de revisão dos preços dos insumos ou dos fatores de produção relevantes não atendidas pela fórmula paramétrica (cláusula 64, item (g), reduzindo o risco privado de alterações de preços em seus custos.

b) Uso de índice de reajuste paramétrico, repassando aos consumidores, no momento do reajuste, os choques de preço nos insumos (cláusula 53);

c) Ausência de mecanismo de revisão tarifária periódica, impedindo a repartição dos ganhos de produtividade e de compartilhamento de riscos;

d) Ausência de matriz de risco explícita, implicando o uso da teoria das áleas (cláusulas 19 e 20);

e) Baixo incentivo ao uso de receitas acessórias como instrumento para modicidade tarifária (cláusulas 75 a 78).

O que se observa, de modo geral, é a tendência ainda acentuada do conceito de obra pública, com a blindagem para o privado de variações nos quantitativos e nos preços. Isto é reforçado pela aplicação da fórmula paramétrica. Adicionalmente, não havia mecanismos de repasse de produtividade e nem uma alocação mais clara de riscos entre as partes.

 

2.3.1 Segunda etapa de concessões de rodovias federais[6]:

 

A segunda etapa de concessões de rodovias federais ocorreu entre 2007 e 2009, dentro de um cenário econômico e regulatório/institucional bastante diferenciado.

Do ponto de vista econômico, o país já demonstrava uma situação de maior estabilidade, com boas perspectivas de crescimento derivada de anos de ajustes fiscais e com uma política monetária mais fortalecida (SELIC bem mais baixa comparativamente com a década de 90).

O risco-país, um indicador relevante para o investidor, também havia apresentado forte queda com perspectivas de manutenção em patamares mais baixos (investment grade). Este novo cenário auxiliava na redução das taxas de retorno requeridas pelos investidores para participar de setores regulados.

Pelo lado regulatório/institucional, a ANTT já operava desde 2002 e outras agências, como ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) e ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), principalmente esta última, vinham evoluindo em termos de mecanismos de regulação com o objetivo de garantir a qualidade dos serviços prestados, visando à modicidade tarifária simultaneamente à manutenção de uma taxa de remuneração atrativa. Estes objetivos foram buscados com o uso de instrumentos como consultas e audiências públicas, nos quais foram discutidos modelos para mensuração de ganhos de produtividade e regras para o funcionamento do setor.

Dessa forma, estas agências bem como a própria evolução do setor de rodovias forneciam informações sobre como redigir os contratos de forma mais eficiente do ponto de vista regulatório e como interagir com os regulados e sociedade de forma clara. 

Ainda assim, a primeira fase da segunda etapa, em 2007, apresentou poucos avanços nos termos contratuais comparativamente com a quantidade de informações disponíveis do ponto de vista regulatório e a melhora do ambiente econômico. Os principais avanços foram (contrato Fernão Dias):

a) Consolidação do conceito de concessão e não mais de obra pública nos contratos:

I. Substituição do uso de preços unitários por preços globais, de forma a alocar o risco de quantidade de insumos para o concessionário, que é quem tem maior capacidade técnica de assumir este risco (cláusulas 4.2 e 4.3);

II. Alocação para o concessionário dos riscos associados à variação nos custos dos insumos, mão-de-obra e financiamentos (cláusula 4.5).

b) Substituição do índice paramétrico pelo IPCA-IBGE (Índice de Preços ao Consumidor Amplo – Instituto Nacional de Geografia e Estatística) (cláusula 6.29);

c) Adoção de mecanismo de revisão periódica, mas tendo por foco o PER e não potenciais repasses de ganhos de produtividade obtidos pela concessionária ou o compartilhamento do risco de variação de preços dos fatores (cláusula 6.42).

Foram mantidos os seguintes pontos:

a) Ausência de matriz de risco explícita, implicando o uso da teoria das áleas (cláusulas 4.1 a 4.9);

b) Baixo incentivo ao uso de receitas acessórias como instrumento para modicidade tarifária (cláusula 6.37, item (f)).

De forma resumida, pode-se afirmar que o principal avanço foi a adequação dos contratos a um formato mais de acordo com o conceito de concessão, por meio do repasse integral dos riscos de custos e quantitativos para o concessionário. A inclusão da revisão periódica, na prática, apenas possibilitou a revisão do PER, possibilitando sua atualização, o que auxilia na eficiência do contrato (dado seu caráter de longo prazo), mas sem entrar em questões de repasses de produtividade ou de compartilhamento de riscos nos custos.

 

2.3.3 Terceira etapa de concessões de rodovias federais[7]

 

            A terceira etapa, em andamento, por estar próxima da segunda etapa, também está sendo executada em ambiente econômico e regulatório/institucional similar. Ainda assim, há avanços até o momento, com destaque para (contrato BR 116):

a) Incorporação do fator X como instrumento de incentivo na busca de eficiência por parte da concessionária durante o período inter-revisões (cláusula 17.3.3);

b) Substituição de taxa de remuneração baseada na TJLP e na inflação definida pelo CMN por taxa baseada na metodologia de WACC (Weighted Average Cost of capital), (cláusula 21.5.2) nos casos de aplicação do fluxo de caixa marginal

Como se pode observar, com relação ao fator X, houve um esforço para tentar capturar os ganhos de produtividade esperados pela gestão privada. Sobre a metodologia de WACC, a Agência optou pelo uso de metodologia amplamente aceita tanto no ambiente acadêmico como nos procedimentos de mercado.

 

2.4 PROPOSIÇÕES OBJETIVAS

 

      Diante do até agora dito, propõe-se no presente trabalho, nos contratos de concessão de rodovias federais, que a distribuição de riscos seja feita da forma mais eficaz, por meio da adoção dos seguintes parâmetros propostos:

  1. Alocação do risco junto à parte que tenha o menor custo para reduzir a chance de ocorrência do evento indesejável e de aumentar a chance de materialização do evento desejável;
  2. Alocação do risco junto à parte que tem maior capacidade de gerenciar as consequências danosas caso o evento indesejado se realize;
  3. Alocação do risco junto ao concessionário sempre que for possível a contratação de seguro para sua cobertura, visto que nesse caso haverá uma socialização eficiente do risco; e
  4. Alocação do risco junto à Administração Pública quando não for possível a contratação de seguro, já que nesse caso é mais eficiente sua distribuição pela coletividade do que promover uma oneração excessiva dos usuários ainda que o evento não venha a se materializar.

Ainda que não seja possível produzir uma distribuição completa de todos os eventos que possam vir a impactar no contrato ao longo de toda a sua vigência, a distribuição correta dos riscos identificados nos estudos de viabilidade do projeto gera incentivos para que a parte incumbida de o gerir adote comportamentos aptos a reduzir a probabilidade de ocorrência de eventos danosos e a fomentar a materialização de eventos positivos.

O sistema de repartição de riscos revela-se, assim, como um importante mecanismo na busca pelo incremento da qualidade do serviço oferecido aos usuários pelo concessionário. Ele não deve ser considerado como a panaceia para a impossibilidade de completude típica dos contratos complexos e de longa duração, como são as concessões e as PPPs.

Entretanto, sendo tratado com seriedade, por intermédio de um projeto financeiro robusto e que observe os parâmetros acima elencados, a alocação dos riscos identificados neste estudo junto à parte que demonstre maior capacidade de gerenciá-los permite que os eventos que possam impactar no contrato funcionem como um incentivo à promoção de eventos desejáveis e à redução de eventos indesejáveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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_______. Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Diário Oficial da União, 22 jun. 1993.

 

_______. Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Diário Oficial da União, 31 dez. 2004.

 

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[1] Constituição Federal de 1988, art. 175, parágrafo único, incisos I, II, II e IV.

[2] BRASIL. Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 de jun. de 1993. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm >. \Acesso em: 14 mar. 2018.

[3] NETO, Floriano de Azevedo Marques. Concessões. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015.

[4] RIBEIRO, Maurício Portugal. Concessões e PPPs. Melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 78-81.

[5] Contrato de Referência analisado: NOVADUTRA.

[6] Contratos de Referências analisados: Fernão Dias (1ª fase) e Via Bahia (2ª fase).

[7] Contrato de Referência analisado: BR – 116.

Sobre o autor
Felipe Paiva da Costa

Advogado, especialista em Direito Previdenciário e Direito Administrativo.

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