Os juros de mora, a Taxa Selic e o desacordo entre ambos

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Breve comentário sobre o verdadeiro critério legal de fixação dos juros de mora e a não incidência da taxa SELIC. Tema recorrente em lides de Direito do Seguro e de Direito dos Transportes.

Os juros de mora, a Taxa Selic e o desacordo entre ambos

 

 

Em disputas judiciais um tema sobre o qual tem surgido certa controvérsia é o da incidência de juros de mora. A problemática, embora seja apenas aparente, surge no critério de sua fixação correta: deve-se aplicar a taxa de 1% ao mês, a partir da citação, ou a taxa SELIC?

 

Antes de qualquer consideração, antes de desmontar a estrutura do problema e de conservar ao fundo, à beira das ruínas, a simplicidade tradicional de uma única resposta, é importante rememorar a razão de ser dos juros moratórios.

 

Diferentemente dos juros compensatórios, aos quais cabe a função precípua de operar um cálculo remuneratório pela utilização do capital alheio, os juros moratórios possuem natureza dupla: uma pedagógica e harmônica ao entendimento, outra coerente e apropriada a um caráter punitivo. São, ao mesmo tempo, punição e estímulo, incentivo e penitência.

 

Servem como fomento à composição do réu com o autor (quando faltar convicção à defesa do primeiro); e, perdida a chance do acordo, punem pelo estado de mora pressuposto em seu nome, pela demora no desfecho do litígio. Em sendo assim, convém indagar por qual motivo se deveria aplicar um critério menos rigoroso e favorável ao vencedor do litígio, quando for ele o autor?

 

Verdadeiramente, o menor rigor no critério se mostraria contraditório ao espírito da lei e aos próprios juros moratórios, algo que, na prática, funciona apenas para desonerar o devedor da prestação judicialmente imposta. Justamente por isso é que se deve defender o lado oposto, em favor dos juros de um por cento ao mês, uma vez que simétrico ao Direito, moralmente ordenado, muito mais próximo ao conceito de Justiça. Já passou do tempo de tratar o devedor com o rigor necessário, principalmente quando é ele próprio o responsável pela demora na prestação judicial.

 

Até porque a taxa Selic não se presta a isso. Ela é a taxa básica de juros da economia no Brasil, utilizada no mercado interbancário para financiamento de operações com duração diária, lastreadas em títulos públicos federais.

 

A sigla SELIC é a abreviação de Sistema Especial de Liquidação e Custódia. Alude ao sistema computadorizado utilizado pelo governo, a cargo do Banco Central do Brasil, voltado ao controle na emissão, compra e venda de títulos. Por se tratar de uma taxa, composta por juros e atualização monetária, não pode ser utilizada ao modo de um lastreador de juros moratórios (mora do devedor).

 

Como se sabe, os juros moratórios devem-se à demora no pagamento, a fluir desde a citação. Com efeito, dispõe o artigo 405, do Código Civil vigente:

 

 “Contam-se juros de mora desde a citação inicial

 

Complementa o artigo 406, do mesmo diploma:

 

se os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”.

 

O artigo 406 do Código Civil não faz alusão à taxa SELIC, mas dispõe claramente que os juros moratórios não convencionados, sem taxa estipulada ou resultantes de lei, são de 1% ao mês, percentual expresso no artigo 161, §1º do Código Tributário Nacional:

 

Art. 161. “O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária”.

 

§ 1º. Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% (um por cento) ao mês”.

 

 

Corroborando o percentual estipulado no § 1º, do artigo 161, do CTN, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., do Superior Tribunal de Justiça, juristas reunidos na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) editaram o enunciado 20, que dispõe (in verbis):

 

A taxa de juros moratórios a que se refere o artigo 406 é a do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês”.

 

O Tribunal de Justiça de São Paulo também se manifesta bem sobre o assunto:

 

Agravo de Instrumento nº 2188742-87.2014.8.26.0000 -Voto nº 18.978 - DVB 5 “(...) JUROS Moratórios - Incidência da taxa de 1% ao mês, desde a citação, como constou da sentença Admissibilidade - Autor não apelou - Incidência da taxa SELIC - Inadmissibilidade - Art. 406 do CC/2002 não faz alusão à taxa SELIC, mas diz que a taxa de juros de mora, quando não convencionada ou resultar de lei, é a de 1% ao mês, porque a esse percentual se refere de modo expresso o art. 161, § 1º, do CTN - Taxa SELIC foi criada por ato do Banco Central, não por lei. Ação de cobrança parcialmente procedente. Recurso provido em parte”. (TJ/SP, Apelação no 9095841-54.2009.8.26.0000, rel. Des. Álvaro Torres Júnior, julgado em 02/02/2015).

 

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já editou Súmula neste sentido:

 

Súmula nº 95:

 

“Os juros, de que trata o art. 406, do Código Civil de 2002, incidem desde sua vigência, e são aqueles estabelecidos pelo art. 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional.”

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Esse inclusive é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

 

“JUROS MORATÓRIOS Caderneta de poupança Remuneração do mês de janeiro/89 - Determinação para que o principal seja acrescido de juros de mora a partir da data do evento. Descabimento Incidência destes a partir da citação, por se tratar a hipótese de ilícito contratual Juros da mora, contudo, que não se confundem com os juros remuneratórios que integram o principal e que se capitalizam mensalmente Incidência de ambos, mas os da mora de forma simples, mensalmente, a partir do mês da citação.

 

Recurso provido no ponto” (Apel 7.071.759-0, Urupês, 23ª Câmara de Direito Privado, 14.03.07, Rel. Des. OSÉAS DAVI VIANA, v.u.). “Juros moratórios - Incidência da taxa SELIC - Inadmissibilidade - Art. 406 do CC/2002 não faz alusão à SELIC, mas diz que a taxa de juros de mora, quando não convencionada ou resultar de lei, é a de 1% ao mês, porque a esse percentual se refere de modo expresso o art. 161, § 1º, do CTN - Taxa SELIC foi criada por ato do Banco Central, não por lei - Recurso improvido quanto ao tema” (Apel 1337100-9, de Cruzeiro, 20ª Câmara Direito de Privado, 05.04.2005, Rel. Des. Álvaro Torres Júnior, v.u.).

 

De fato, o posicionamento histórico do STJ firmou-se na adoção da taxa de 1% ao mês, conforme relatório do Ministro Humberto Gomes de Barros, no AgRg no REsp 727.842-SP:

 

Os juros de mora são regulados pelo art. 1.062 do CC/1916 até a entrada em vigor do novo Código Civil. Depois dessa data, aplica-se a taxa prevista no art. 406 da novel legislação, à razão de 1% ao mês. O art. 406 do CC/2002 alude ao percentual previsto no art. 161, § 1º, do CTN, e não à taxa Selic, que tem sua aplicação restrita aos casos previstos por lei, tais como restituições ou compensações de tributos federais.

 

Não obstante, a matéria encontra-se em discussão no mesmo Tribunal Superior, onde Ministro Luis Felipe Salomão (REsp 1.081.149) propôs utilizar o índice oficial de correção monetária ou tabela do próprio Tribunal local, somado à taxa de juros de 1% a.m. (ou 12% a.a.), nos termos do art. 161 do CTN. Aponta, porém, o abuso que pode gerar a aplicação da taxa SELIC:

 

“Independentemente de questionamento acerca do acerto ou desacerto da adoção da Selic como taxa de juros a que se refere o art. 406 do Código Civil, o fato é que sua incidência se torna impraticável em situação como a dos autos, em que os juros moratórios fluem a partir do evento danoso (súmula 54) e a correção monetária em momento posterior (súmula 362). Assim, tendo em vista a subsidiariedade expressa no próprio art. 406 do Código Civil, em situações como essas, em que juros e correção não fluem simultaneamente, parece correta a aplicação do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional (1% de juros ao mês), sem prejuízo da incidência da correção monetária, no período correspondente, pelos índices oficiais aplicáveis em cada caso. 

 

A adoção da Selic para efeitos de pagamento tanto de correção monetária quanto de juros moratórios pode conduzir a situações extremas: por um lado, de enriquecimento sem causa ou, por outro, de incentivo à litigância habitual, recalcitrância recursal e desmotivação para soluções alternativas de conflito, ciente o devedor que sua mora não acarretará grandes consequências patrimoniais.”

 

 

Diante disso, indagamos: por que razão não seria o critério de um por cento ao mês o verdadeiramente aplicável, senão o único deles?

Os juros moratórios, segundo o critério tradicional, constituem mecanismo de calibragem dos litígios judiciais, revestidos de função pública, e absolutamente saudáveis. Por isso é preciso mantê-los em conformidade com a tradição, à taxa de um por cento ao mês, tendo a data da citação como termo inicial.

 

Rubens Walter Machado Filho e Paulo Henrique Cremoneze

Sobre os autores
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Rubens Walter Machado Filho

Administrador de Empresas, Especialista em logística e administração de transportes de cargas, Diretor do IBDTrans – Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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