A impossibilidade do desmembramento das penalidades no processo de impeachment de Presidente da República

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28/10/2019 às 14:39
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PENALIDADES CABÍVEIS

Como é consabido, os dois processos de impeachment foram marcados por diversas controvérsias, dentre elas a distinção na aplicação das penalidades de perda do cargo de Presidente da República e a inabilitação para exercer cargo público por oito anos.

No julgamento realizado no ano de 1992, referente a Fernando Collor de Melo, houve o reconhecimento da prática de crime de responsabilidade e aplicação da penalidade de perda do cargo e de inabilitação para exercer cargo público por oito anos.

Já no julgamento realizado no ano de 2016, referente a Dilma Rousseff, restou decidido no julgamento realizado pelo Senado Federal, que haveria apenas a perda do cargo, não havendo, contudo, a inabilitação para exercer cargo público por oito anos.

Diante desse contexto, é factível afirmar que a interpretação literal do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal juntamente com o caput do art. 68 da Lei n. 1.079, de 1950, conduz a intelecção de que a condenação por crime de responsabilidade de Presidente da República resulta perda do cargo com inabilitação por oito anos para o exercício de função pública.

Não obstante o caráter político da decisão proferida pelo Senado Federal no processo de impeachment, já existia decisão anterior (precedente) sobre a aplicação conjunta das referidas penalidades para Presidente da República que cometeu crime de responsabilidade.

No processo de impeachment de Fernando Collor de Mello entendeu-se que a pena inabilitação do cargo não tinha caráter meramente acessório, sendo o referido entendimento referendado pela maioria do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.68913.

Independentemente da discussão sobre a aplicabilidade no direito brasileiro da regra do precedente14 (ou mesmo do stare decisis), que é própria do sistema do common law, a existência de julgamento anterior sobre o mesmo assunto permite sustentar o fundamento de que deveriam ter sido aplicadas as mesmas penalidades, sem qualquer distinção, haja vista a similitude do processo de impeachment de Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff.

A diferenciação na aplicação das penalidades cabíveis decorrente de crime responsabilidade perpetrado por Presidente da República, sem justificativa consistente, configura inobservância da previsibilidade e coerência, que devem nortear o processo de impeachment, não obstante o seu caráter político.

No livro de Bernardo Gonçalves Fernandes, é realizada a seguinte abordagem sobre o fatiamento na aplicação das penalidades por crime de responsabilidade praticado por Presidente da República15:

(...) Nesse momento vamos analisar o “caso Collor” e o “caso Dilma” e as respectivas decisões do Senado:

1) O Senado, no “Caso Collor”, decidiu que as penas previstas no § único do art. 52 da CR/88 (perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de funções públicas) não eram uma principal (perda do cargo) e outra acessória (inabilitação para o exercício de funções públicas por 8 anos). Portanto, entendeu o Senado que as duas penas seriam independentes e ambas principais. Com isso, o ex-presidente Collor, que havia renunciado e propunha a perda de objeto do processo de crime de responsabilidade em virtude da renúncia, foi condenado à inabilitação para o exercício de funções públicas por 8 anos por 2/3 dos senadores.

(...)

2) No dia 31.08.2016 o Senado da República sob a condução do Presidente do STF, julgou o processo de crime de responsabilidade (impeachment) da então Presidente Dilma. Segundo o rito que estava previsto e havia sido aprovado, os Senadores iriam votar apenas uma vez, decidindo se a Presidente Dilma era culpada ou não do crime de responsabilidade. Se julgada culpada, receberia duas sanções estipuladas no art. 52 da CR/88, conforme já citadas: a) perda do cargo; e b) inabilitação para o exercício de funções públicas por oito anos. Porém, no início da sessão, o Partido dos Trabalhadores, representado pelo Senador Humberto Costa, formulou requerimento ao Presidente do STF (que presidia o processo de impeachment) pedindo que o julgamento de Dilma fosse dividido em duas etapas: 1ª) Uma primeira votação, na qual os Senadores decidiram se Dilma deveria ou não perder o cargo; 2) Em seguida, caso ela perdesse o cargo, os Senadores votariam se ela deveria ficar inabilitada para o exercício das funções públicas por oito anos.

O fundamento para a divisão dos julgamentos foi baseado na tese (já citada no vaso Collor) de que a perda do cargo e a inabilitação constituem-se em penas autônomas. Nesse sentido, foi levantada a tese de que seriam necessárias duas votações, uma para o julgamento da primeira sanção e outra votação para a segunda sanção.

O Presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que conduzia os trabalhos, aceitou o requerimento e foram realizadas duas votações: Na primeira, Dilma foi condenada a perder o cargo de Presidente da República. Com isso, os Senadores votaram no sentido de aplicar a primeira sanção. Foram 61 votos sim e 20 votos não para o impeachment.

Já na segunda votação, os Senadores decidiram que Dilma não deveria ficar inabilitada para o exercício de funções públicas por oito anos. Assim sendo, os Senadores votaram no sentido de não aplicar a segunda sanção. Foram 42 votos sim (pela aplicação da sanção), 36 votos não e 3 abstenções. Com isso não foi alcançado o quórum necessário de 2/3 dos Senadores, ou seja, no mínimo, 54 votos.

(...)

A Constituição de 1988 não admite que um Presidente da República seja condenado por crime de responsabilidade e receba como punição a perda do cargo (impeachment), mas fique livre da segunda sanção (inabilitação para o exercício de funções públicas por oito anos).

O Curso de Direito Constitucional de Walber de Moura Agra16 assim dispõe sobre as sanções cabíveis no processo de impeachment:

A sanção estabelecida pelo impeachment nos crimes de responsabilidade é a perda do exercício do mandato, no caso do presidente e do vice-presidente, e a perda do cargo no caso de ministros de Estado, procurador-geral da União, ministros do Supremo e advogado-geral da União. Além desta consequência, o cidadão, em qualquer caso, ficará impedido de exercer função pública pelo prazo de oito anos, seja em cargo eletivo, concurso público, função de confiança ou cargo honorífico. O impedimento ao exercício de funções governamentais funciona como um atestado que desqualifica o cidadão para o trato com a coisa pública. Todavia, no caso de Dilma Rousseff, assentou-se que o Senado Federal pode aplicar somente a pena de afastamento, sem a obrigatoriedade de aplicação do impedimento de exercer cargo ou função pública pelo prazo de oito anos.

Foi utilizado o argumento de que a lei, de 1950, que versa sobre o processo de impeachment deixa brechas para essa possibilidade.13 A grande questão é que o parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal é claro quando diz que o processo de impeachment causará a perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função ou cargo público.

Destarte e considerando a redação do art. 85, parágrafo único, da Constituição Federal, é forçoso concluir que as penas estatuídas na norma constitucional, apesar de serem autônomas, devem ser aplicadas de forma cumulada, não sendo possível, portanto, desmembrar sua aplicação.

Por fim, é necessário esclarecer que o presente artigo não objetiva exaurir o assunto ou mesmo valorar a imputação de crime de responsabilidade a ex-Presidentes da República, a finalidade deste modesto estudo foi abordar, no aspecto jurídico, algumas nuances processo de impeachment no sistema jurídico brasileiro, notadamente no que concerne às penalidades cabíveis.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, tem-se que o processo de impeachment de Presidente da República, apesar de ser legítimo sob ótica constitucional, deve ser compreendido com a devida parcimônia e como medida excepcional, uma vez que pode representar inobservância do sistema político da democracia, que é, também, caracterizado pela vontade popular na escolha dos representantes políticos.

Com efeito e considerando o decurso de tempo, após o julgamento do último processo de impeachment ocorrido, o que permite uma melhor reflexão sobre o assunto no aspecto técnico-jurídico, pode-se afirmar que o julgamento político realizado pelo Senado Federal, que resultou na perda do cargo, porém sem que houvesse, contudo, a inabilitação para o exercício de função pública, não se coaduna com a interpretação literal e sistemática do art. 85, parágrafo único, da Constituição Federal, e destoa do precedente existente sobre a matéria.

Sendo assim e considerando os argumentos acima articulados, afigura-se que a devida demonstração da autoria e materialidade na prática de crime de responsabilidade por Presidente da República implica aplicação da penalidade de perda do cargo, cumulada com a inabilitação, por 8 oito anos, para o exercício de função pública, não sendo possível o desmembramento na aplicação da citada reprimenda.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.

BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1079.htm>.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <https://www.stf.jus.br>.

ABBOUD, Georges. Precedente judicial versus jurisprudência dotada de efeito vinculante - A ineficiência e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de precedentes. In: Arruda Alvim Wambier, Teresa (coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. Belo Horizonte : Fórum, 2018.

DALLARI, Adilson Abreu. Investigação de Crime de Responsabilidade Civil do Presidente da República em mandato. Revista de Direito Administrativo - RDA, Rio de Janeiro, ano 2016, n. 273, p. 337-383, Setembro a Dezembro 2016.

FAVER, Marcus. Impeachment: evolução histórica, natureza jurídica e sugestões para aplicação Impeachment: historic evolution, legal nature and suggested application. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, ano 2016, n. 271, p. 319-343, Janeiro a Abril 2016.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2017.

MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 33ª edição. São Paulo: Atlas, 2017.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 16. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

YOSHIKAWA. Eduardo Henrique de Oliveira. Do Impeachment do Vice-Presidente da República. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 968, Junho/2016.


Notas

2 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional.33ª edição. São Paulo: Atlas, 2017.

3FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2017.

4 Súmula Vinculante nº 46 - A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são de competência legislativa privativa da União. A definição das condutas típicas configuradoras do crime de responsabilidade e o estabelecimento de regras que disciplinem o processo e julgamento dos agentes políticos federais, estaduais ou municipais envolvidos são da competência legislativa privativa da União e devem ser tratados em lei nacional especial (art. 85 da Constituição da República). ADI 2.220, rel. min. Cármen Lúcia, P, j. 16-11-2011, DJE 232 de 7-12-2011. Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=2368 >.

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5 De acordo com o Ministro Paulo Brossard, os crimes de responsabilidade, enquanto relacionados a ilícitos políticos, deveriam ter a denominação de infrações políticas para não serem confundidos com os crimes comuns. Eles têm uma tipificação aberta, polissêmica, possuindo vários significados, necessitando para sua tipificação das Condicionantes do momento sociopolítico. Para o seu enquadramento é imprescindível uma vontade política. (AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. Belo Horizonte : Fórum, 2018).

6 (...) Competência do presidente da câmara dos deputados, no processo do "impeachment", para o exame liminar da idoneidade da denuncia popular, que não se reduz a verificação das formalidades extrinsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender, segundo os votos vencedores, a rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao controle do plenário da causa, mediante recurso, não interposto no caso. (Supremo Tribunal Federal – STF. MS 20941, Relator(a): Min. ALDIR PASSARINHO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/1990, DJ 31-08-1992). Disponível em: :<https://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000148410&base=baseAcordaos>.

7 Com autorização da Câmara, contrariando boa parte da doutrina nacional, o STF entendeu na ADPF nº 378 que o Senado não é obrigado (em virtude da decisão da Câmara) a iniciar (instaurar) o processo. (FERNANDES, idem).

8 (...) 5. A VOTAÇÃO PARA FORMAÇÃO DA COMISSÃO ESPECIAL SOMENTE PODE SE DAR POR VOTO ABERTO (CAUTELAR INCIDENTAL): No impeachment, todas as votações devem ser abertas, de modo a permitir maior transparência, controle dos representantes e legitimação do processo. No silêncio da Constituição, da Lei nº 1.079/1950 e do Regimento Interno sobre a forma de votação, não é admissível que o Presidente da Câmara dos Deputados possa, por decisão unipessoal e discricionária, estender hipótese inespecífica de votação secreta prevista no RI/CD, por analogia, à eleição para a Comissão Especial de impeachment. Em uma democracia, a regra é a publicidade das votações. O escrutínio secreto somente pode ter lugar em hipóteses excepcionais e especificamente previstas. Além disso, o sigilo do escrutínio é incompatível com a natureza e a gravidade do processo por crime de responsabilidade. Em processo de tamanha magnitude, que pode levar o Presidente a ser afastado e perder o mandato, é preciso garantir o maior grau de transparência e publicidade possível. Nesse caso, não se pode invocar como justificativa para o voto secreto a necessidade de garantir a liberdade e independência dos congressistas, afastando a possibilidade de ingerências indevidas. Se a votação secreta pode ser capaz de afastar determinadas pressões, ao mesmo tempo, ela enfraquece o controle popular sobre os representantes, em violação aos princípios democrático, representativo e republicano. Por fim, a votação aberta (simbólica) foi adotada para a composição da Comissão Especial no processo de impeachment de Collor, de modo que a manutenção do mesmo rito seguido em 1992 contribui para a segurança jurídica e a previsibilidade do procedimento. Procedência do pedido. (Supremo Tribunal Federal – STF, ADPF 378 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 07-03-2016 PUBLIC 08-03-2016) Disponível em: :<https://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000251140&base=baseAcordaos>.

9 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 16. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

10 FAVER, Marcus. Impeachment: evolução histórica, natureza jurídica e sugestões para aplicação Impeachment: historic evolution, legal nature and suggested application. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, ano 2016, n. 271, p. 319-343, Janeiro a Abril 2016.

11 DALLARI, Adilson Abreu. Investigação de Crime de Responsabilidade Civil do Presidente da República em mandato. Revista de Direito Administrativo - RDA, Rio de Janeiro, ano 2016, n. 273, p. 337-383, Setembro a Dezembro 2016.

12 O impeachment é um necessário e indispensável mecanismo de defesa (controle + responsabilização)1 do povo (do qual emana o Poder, nos termos do art. 1.º, parágrafo único, da CF/1988)2 e do Estado Democrático de Direito (sob cuja forma este poder encontra-se organizado, nos termos do art. 1.º, caput, da CF/1988) contra atos ilícitos praticados pelas maiores autoridades da República. (YOSHIKAWA. Eduardo Henrique de Oliveira. Do Impeachment do Vice-Presidente da República. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 968, Junho/2016).

13 FAVER, Idem.

14 A doutrina dos precedentes consiste em teoria que alça as decisões judiciais como fonte imediata do direito, junto à equidade e legislação. Dessa maneira, a doutrina dos precedentes vincula as Cortes no julgamento dos casos análogos. Essa doutrina para ser aplicada demanda dos juízes a avaliações de quais são as razões jurídicas foram essenciais para o deslinde das causas anteriores. (ABBOUD, Georges. Precedente judicial versus jurisprudência dotada de efeito vinculante - A ineficiência e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de precedentes. In: Arruda Alvim Wambier, Teresa (coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012).

15 FERNANDES, Idem.

16 AGRA, Idem.

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Sobre o autor
João Paulo Santos Borba

Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em Direito Civil e em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogado da União.

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