Crônica de Paulo Sérgio Leite Fernandes e carta que, a propósito, lhe escreveu Carlos Biasotti.

Leia nesta página:

I- Crônica de Paulo Sérgio Leite Fernandes

Carlos Biasotti e o uso da vírgula

Paulo Sérgio Leite Fernandes

“Biasotti”, é como o chamávamos. Advogado criminalista muito competente, nós o mandamos para o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, ao tempo, depois unificado no Tribunal de Justiça. Antes disso, entretanto, Carlos Biasotti já fora guindado a desembargador, por merecimento. Às vezes, a Ordem dos Advogados faz escolhas discutíveis para o 5º constitucional. Alguém sem as condições especialíssimas exigidas acaba entrando em lista tríplice, cabendo ao Governador, então, nomeação. Certa vez, já faz trinta anos, alguém entendeu que eu poderia integrar o Tribunal, usando a toga em substituição à beca.

Foi esquisito, engraçado ou dramático, não se sabe bem, mas o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não me deu um só voto. Há quem se aborreça com a recusa, mas como tudo na vida, muitos são os chamados e poucos os escolhidos. Até hoje, ocasionalmente, o incidente me vem à cabeça. Houve, antes da votação, uma sorte de entrevistas com um ou outro desembargador, chamada “beija-mão”. O candidato precisava cumprir uma espécie de ritual informal, visitando os possíveis eleitores. Minha experiência naquilo foi única: havia um desembargador, cujo nome não importa, que cismou com relógio de pulso que eu exibia enquanto começávamos a conversa. Cuidava-se de artefato curioso porque, embora pouca gente saiba, eu era um artesão amador. Fazia caixas de relógio em prata. Ficava bonito mas, realmente, era extravagante. Disse a criatura, ao ver a joia, que com aquele relógio eu nunca chegaria a desembargador. Não o mandei àquele lugar porque meu padrinho merecia de mim respeito imenso. De resto, o desembargador já morreu. Parou de ter importância.

Vale o introito para retorno a Carlos Biasotti. O desembargador Biasotti é, entre todos, aquele que mais receptividade teve ao entrar no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, significando que além da afeição pelas artes da ciência jurídica, exibe uma qualidade rara: é extremamente sincero, franco, educado, amigo e leal. A par disso, conhece a língua pátria como poucos e a usa com muita distinção, escrevendo ou falando, pouco importa, mas sempre muito bem. Tenho dele alguns ensaios excelentes. Um deles, recentíssimo e distribuído a pouca gente, cuida da vírgula (Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.). No texto, Biasotti dá exemplo clássico do mau e do bom uso da vírgula. Começa assim: “O lavrador tinha um bezerro e a mãe do lavrador era também o pai do bezerro”. Depois, utilizando-se adequadamente o sinal ortográfico em questão: “O lavrador tinha um bezerro e a mãe, do lavrador era também o pai do bezerro”.

Além da profunda intimidade com o vernáculo, Biasotti tem voz poderosa e um peitoral alargado, virtudes não muito localizáveis nos juristas em geral e nos penalistas  em particular. Eu, enquanto jovem, tinha interesse na identificação física dos criminalistas nacionais e estrangeiros. Imaginava-os altos, fortes e providos de boa cabeleira. Desastrada investigação: encontrei-os gordos em maioria, calvos e rubicundos. Eu mesmo, já no terceiro terço da vida, começo a ficar preocupado com a deiscência própria. Enrico Ferri, quem sabe, seria uma exceção, mantendo-se impávido até pouco antes de partir. Heleno Fragoso, magro e alto, bigode espesso e sem falhas na glabela, alto do crânio, poderia, quem sabe, passar por um exame mais crítico. Parece que as angústias da especialidade, supinamente sacrificada esta última, contribuem para a decadência física do criminalista. Evidentemente, a profissão não se coaduna com a higidez física, mas tudo faz parte do jogo. Tocante a Carlos Biasotti, disse-lhe, enquanto lhe autografava um livro (“Fabulações de um velho criminalista”) que nós, advogados criminais brasileiros, o havíamos esperado ao retorno, prontos à devolução da velha beca usada durante tantos anos. No fim de tudo, não é a Ordem dos Advogados que se honra em tê-lo na magistratura, mas a Justiça Paulista, sim, deve ficar muito satisfeita em o acolitar alémdos umbrais. Biasotti foi e é um excelente advogado criminal. Como desembargador, embora diferenciado, contribuiu episodicamente. Seu lado melhor é o lado de cá.

http://www.processocriminalpslf.com.br/site/?page_id=5439


II- Carta de Carlos Biasotti

São Paulo, 21 de dezembro de 2011

         Caríssimo amigo Dr. Paulo Sérgio Leite Fernandes: Cordiais saudações!

         Com o coração cativo de seu obséquio, entro a discretear da página virtual em que se ocupou de minha modesta figura.

         Foi o caso que, da mesma forma que, na Escola de Atenas, se reuniam os discípulos ao pé de Platão para ouvi-lo, estivemos os criminalistas, noite dessas, ao seu redor, no lançamento do  livro  As Fabulações de um Velho Criminalista.

         Ali, para abraçá-lo e disputar-lhe, às cotoveladas, o precioso autógrafo, encontrava-se verdadeira  legião de advogados da mais alta esfera profissional. Da gloriosa confraria dos que pelejam, sem tréguas nem quartel, na arena criminal, pude ver, além de outros (muitos outros!), Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Alberto Zacharias Toron, Roberto Delmanto, Luiz Flávio Borges D’Urso, Antonio Di Franco Neto, Francisco Lobo da Costa Ruiz, Ademar Gomes, Tales Castelo Branco, Antonio Ruiz Filho, Luiz de Carvalho, Fábio Delmanto, Hélio Bialski, Nilson Jacob, o Des. Fábio Poças Leitão…

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         Do preclaro autor não hei mister dizer palavra: somente o não estima (e isso, nas mais das vezes, em grau assinalado) quem ainda não teve a dita de conhecê-lo.

         Afinal, dispensa toda a apresentação quem já alcançou notoriedade nacional com obras de grande cunho jurídico-literário, v.g.: Na Defesa das Prerrogativas do Advogado (3 vols.), Nulidades no Processo Penal, Aborto e Infanticídio, Caranguejo-Rei, etc. Tal sujeito, por força, pertence ao número daqueles para os quais a Mesa  Censória  —  apreciando-lhes os livros antes de mandá-los imprimir, como era então uso — reservava a retrilhada fórmula: “A melhor censura que se pode dar às suas obras é e será sempre o seu nome” (in Homenagem do Instituto Geográfico e  Histórico  da  Bahia  ao  Grande  e  Famoso  Orador  Padre  Antônio Vieira, 1897, p. 226). Ou esta: “(…) o seu nome é o seu maior panegírico” (ib., p. 47).

         Atendendo a essas mui particulares circunstâncias, foique lhe  dediquei  —  como  a  paradigma  da  ínclita  profissão — o livrinho Advocacia Criminal: Teoria e Prática. Daqui por que me pareceu também de preceito inscrever-lhe o nome entre os maiores  advogados  criminalistas  do  Brasil,  “nos  últimos  100 anos”, sobre consagrar-lhe algumas páginas, com fotografia, no Tributo aos Advogados Criminalistas (pp. 58-60 e 231).

         Confirmo-me, em suma, no justo conceito do mestre Flamínio Fávero, que lhe prefaciou o clássico Aborto e Infanticídio: “digno dos maiores elogios”.

         Quero deter-me, agora, no parto mais recente de seu espírito: Fabulações de um Velho Criminalista. Li-o sofregamente e pretendo fazê-lo mais de espaço. Já estou em condições, porém, de poder afirmar, sem contradita honesta, que seu livro — ou se lhe considere o estilo, ou a infinita sequência dos vivazes e surpreendentes episódios — haverá de figurar entre os melhores que, no gênero memorialístico, escreveram as penas mais bem aparadas dos discípulos de Enrico Ferri. Impossível não se comprazer o leitor com Fabulações de um Velho Criminalista  (“rectius”:  jovem  de  outrora),  que  fez  da  banca  de advogado tribuna de reparação do direito violado e cátedra da arte de bem escrever; livro em que a excelência das ideias e as centelhas da inspiração ajudam-se dos primores da forma, na melhor concepção machadiana.

         O capítulo XXXV — em que se atribui à diligência de outrem a preservação do manuscrito do Aborto e Infanticídio — é dos mais belos do livro. Não fosse a providencial iniciativa daquela que recolheu piedosamente as folhas esmaecidas e dilaceradas do cartapácio, e estava perdida para sempre uma obra de alto preço. Teria sido o abortamento do “Aborto” (vênia pelo esquálido equívoco!).

         A falar verdade inteira, constituem as Fabulações original e precioso escrínio de ricas surpresas e desafios que a vida (exuberante vida!) deparou a um egrégio varão, abalizado na arte de advogar e escrever.

         Estou a concluir estas reflexões (acaso temerárias e heteróclitas, porém sinceras em extremo). Antes, contudo, de expedir o ponto final, hei de confessar que achei muita graça àquele passo do livro onde se faz caso e cabedal “do terrível cacófato  por  cada”,  do  Saramago.  Tem  razão  o  meu  douto Amigo! Aquela vara ou por cada abate o seu tanto o esplendor da página do laureado Nobel de Literatura!

         Faz ao intento a anedota do mestre-escola português — pudibundo e preocupadíssimo com os vícios de linguagem —, que saiu à luz da publicidade com o seguinte vade-mécum: Como Evitar uma Cacofonia.

         Dessas depravações da língua venho amealhando, de longa data, um monte (monturo fora melhor dito) de exemplos, para possível ensaio. Haja vista estes:

  1. Do divino Antônio Vieira: “O primeiro golpe foi a morte de el-rei D. Afonso; o segundo golpe foi a morte da rainha nossa  senhora,  ambos  tão  sentidos  de  Sua  Majestade,  e  com  tão particulares  demonstrações,  como  o  pedia  o  parentesco  e  o  amor” (Sermões, 1959, t. XV, p. 380; Lello & Irmão – Editores; Porto).
  2. Do melífluo Manuel  Bernardes: “Escapei do abismo do inferno” (Nova Floresta, 1726, t. IV, p. 343).
  3. Do genial Camilo Castelo Branco: “O esboço é tudo” (Noites de Insônia, 1874, vol. I, nº 3, p. 81).
  4. Antônio Feliciano de  Castilho (“O Sublime Cego”) pôs fecho à tradução de O Médico à Força, de Molière, com esta quadra: “E  eu  lembro  ao  nobre  auditório  que  em  dia  assim de  folgar,  já  que  escapei  do  oratório  não  me  devem enterrar” (2a. ed., p. 224).

5.      Camilo Castelo Branco — afirma Álvaro Neves (Notas à Margem, 1916, p. 47) — “sublinhou a última sílaba do escapei e a palavra  do,  e  escreveu:  Fechar  uma  comédia  com  um  p.  …  é original”.

         A benefício de inventário, não foram unicamente esses patrícios de Saramago os que perpetraram o tremebundo cacófato: entre nós houve até uma revista (Visão, 9.7.54) que o trouxe na capa, em parangonas que desandavam a fartum. Eis o “corpus delicti” da infração das leis da gramática:

         À derradeira, fite os olhos no cartão florido (que comprei, faz décadas, numa banca de jornais instalada no calçadão da Doceira  Paulista,  esquina  da  Rua  Quintino  Bocaiúva  e  Rua Benjamim Constant, nesta Capital), e nele poderá ler, além do consolador versículo do Salmo 92 (“O  justo  florescerá  como  a  palmeira;  crescerá  como  o  cedro  do Líbano.”), uma pancárpia de margaridas; em suas pétalas, debaixo de caracteres brancos, a palavra COCÔ. Maravilhosa “obra” da Natureza!

         Aqui, deveras, faço ponto!

         Às vésperas do Natal, receba, querido Paulo Sérgio, os votos de muita felicidade e saúde (com efeito extensivo à sua musa Dione e filhos) e o afetuoso amplexo do menor e mais obscuro de seus amigos e admiradores.

Carlos Biasotti

Sobre os autores
Paulo Sérgio Leite Fernandes

advogado criminalista em São Paulo e presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado, no Conselho Federal da OAB.

Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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