Interpretação da Boa-fé Objetiva diante do Princípio da dignidade da pessoa humana

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O artigo trata da interpretação da cláusula aberta de interpretação contratual da boa-fé objetiva em consonância com a dignidade da pessoa humana a fim de solidarizar e dar um tratamento mais igualitário entre as partes contratantes.

O presente trabalho aborda a  importância da boa-fé objetiva entendida nos dizeres de  ALVÁRO VILLAÇA[1] um estado de espírito imputando ao sujeito uma aparente segurança. Por esta razão, este trabalho desenvolve a cláusula aberta de interpretação da boa-fé sempre conciliando com o princípio da dignidade da pessoa humana para que tenha uma conduta pautada na lealdade, na transparência, na confiança entre as partes, esclarecendo as situações do avençado para manter um estado de equilíbrio.

 

Para tanto é importante fixarmos o conceito da boa-fé objetiva e não poderíamos deixar de transcrever os ensinamentos de ORLANDO GOMES sobre a boa-fé objetiva:

 

Ao princípio da boa-fé empresta-se ainda um outro significado. Para traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocos. Numa palavra, devem proceder com boa-fé. Indo mais adiante, aventa-se a idéia de que entre o credor e o devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato. A tanto, evidentemente, não se pode chegar, dada a contraposição de interesses, mas é certo que a conduta tanto de um como de outro, subordina-se a regras que visam a impedir dificulte uma parte a ação de outra. [2]

 

A boa-fé objetiva, é um standard, um parâmetro objetivo genérico, dependendo de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai de família que agiria de maneira normal e razoável naquela situação analisada. Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação refletida, uma atuação confiável e equilibrada para sempre manter as partes em total conhecimento das situações acordadas e demonstrando uma aparente segurança jurídica para assim atuar conforme as necessidades sociais e visando o fim do contrato. É cláusula geral de interpretação, permitindo ao intérprete a busca da sua real valorização e adequação da conduta real da parte, como parâmetro de retidão, honestidade e igualdade, tudo isto para demonstrar que a conduta esperada deve manter a dignidade das partes contratantes.

 


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BOA-FÉ OBJETIVA:

 

Um novo movimento doutrinário surge para dar um enfoque dos direitos civis pelo manto do direito constitucional. nos dizeres de LUIZ EDSON FACHIN, “todo o Standard normativo infraconstitucional deve se amoldar ao modelo axiológico constitucional”[3], é reflexo evidente da evolução dos valores sociais e da necessidade de aproximar as leis ordinárias sob o prisma da Lei Fundamental.

 

Justamente nesta  esteira principiológica,  os preceitos do artigo 1º III, 3º I e 5º da Carta Magna de 1988, mormente na dignidade da pessoa humana, nos lindes do diploma Civil de 2002, ainda que ideologicamente, a primazia do formalismo jurídico deu lugar à eticidade, à sociabilidade e a operabilidade.

 

A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1, III  da Constituição Federal, como princípio superior, trata do respeito à dignidade de todas as pessoas, norteador de condutas dignas, justas e solidárias, definida, do ponto de vista jurídico, como atributo da pessoa humana, “fundamento primeiro e a finalidade última, de toda atuação estatal e mesmo particular”[4].

 

A dignidade da pessoa expressa, como afirma Elimar Szaniawski[5], este direito que garante ao indivíduo a autodeterminação como expressão maior do exercício da  cidadania, garante o respeito como ser intelectual.

 

A dignidade da pessoa humana é um princípio de importância ímpar, pois repercute sobre todo o ordenamento jurídico. É um mandamento nuclear do sistema que irradia efeitos sobre as outras normas e princípios, é um “verdadeiro supra princípio, a chave de leitura e da interpretação dos demais princípios fundamentais e de todo os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição”[6]. E se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamental à República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado.

 

No entendimento de ELIMAR SZANIAWSKI[7],o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser analisado sob dois aspectos. O primeiro como essência da pessoa humana em suas relações individuais e o outro como fundamento da ordem política e da paz social, emitindo juízos de valores gerais e determinantes que vinculam o poder público e seus órgãos, podendo inclusive trazer limitações às liberdades públicas. Diante disto, ao consideramos o primeiro aspecto, o princípio da dignidade da pessoa humana atuará como uma cláusula geral de tutela da personalidade e, no segundo aspecto, como princípio  fundamental, matriz e gerador dos direitos fundamentais.

 

Nas relações intersubjetivas, o princípio da dignidade da pessoa humana, analisada como cláusula geral, impõe um comportamento correto, ético e equânime na celebração de qualquer negócio jurídico. Frise-se, por oportuno, que desse princípio, atuando como cláusula geral decorre a boa-fé objetiva, que ordena, em suma, um comportamento ético entre os contratantes, não transgredindo a boa-fé, probidade e a função social do contrato, além de derivar os direitos concernentes ao respeito da pessoa humana em todas as suas dimensões, o respeito da integridade física e psíquica da pessoa, sua liberdade individual, dentre outros.

 

No enfoque do direito contratual, a violação dos deveres acessórios (laterais ou anexos), após a extinção de uma obrigação prevista em um contrato, fere a cláusula geral da boa-fé e, consequentemente, sua base inspiradora, que é o princípio da dignidade da pessoa humana.

 

Decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana os princípios da solidariedade e da igualdade, pois são verdadeiros instrumentos da efetiva proteção dos direitos personalíssimos do homem.

 

A solidariedade, prevista no artigo 3, I da Constituição Federal, está vinculada às cláusulas gerais, pois estas buscam o comportamento solidário entre as partes, ou seja, uma atitude compatível com a concepção social no contrato e a boa-fé objetiva.

 

Já o princípio da igualdade, previsto no artigo 5, caput, da Constituição federal, deve ser visto como um princípio da justiça social e da dignidade de pessoa humana. Há evidente vínculo desse princípio com uma política de justiça social e da boa-fé objetiva. Sendo assim, está compreendido no ideal de igual e dignidade social da pessoa humana. Cabe ainda dizer que a igualdade tem por objetivo realizar a igual dignidade do ser humano, para que seja efetivada a justiça social.

 

Portanto, os princípios da solidariedade e da igualdade têm por fim o desenvolvimento e o respeito à pessoa humana. Assim, não há justiça social com a violação, numa relação jurídica, dos deveres acessórios que são oriundos da boa-fé objetiva. A boa-fé objetiva, inspirada na confiança, lealdade, probidade, solidariedade e função social, só se materializa e toma espaço no mundo jurídico e metajurídico quando está inspirada sempre na realização e busca da dignidade da pessoa humana, e no vertente caso na dignidade das partes contratantes.

 

Cogitando de um sistema aberto, cuja supremacia axiológica é referida pela dignidade da pessoa humana, o direito civil e a Constituição manterão intenso vínculo comunicativo, com repercussão material dos princípios que lhe são comuns. Nessa constante travessia, a boa-fé objetiva é sentida como a concretização do princípio da dignidade no campo das obrigações. Consiste no chamado direito civil-constitucional justamente na reconstrução do direito privado mediante envio dos valores aos princípios constitucionais e, posteriormente, do ingresso desses princípios no Código Civil através da “janela” das cláusulas gerais .[8]

 

TEREZA NEGREIRO[9] nos ensina que deverá haver uma “coesão sistêmica”  entre o direito civil e o direito constitucional  para assim haver o direito privado, no instante, contratual, por uma perspectiva constitucional. A boa-fé objetiva só ingressa como cláusula aberta de interpretação por razão de sua natureza de dever de conduta, visando a proteção da sociedade e a dignidade das partes contratantes.

 

Colhemos, neste sentido os ensinamentos de JUDITH MARTINS COSTA[10]:

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“Toda e qualquer norma do ordenamento se funda no princípio da dignidade, cuja eficácia se projeta por todo o ordenamento. Por seu específico significado, a solidariedade social, exigência também decorrente do reconhecimento da fundamental dignidade da pessoa, atine com a boa-fé objetiva de modo mais direto e imediato.”

 

Como o direito quer prestigiar as condutas cooperativas, a boa-fé objetiva guardará sensivelmente nos objetivos fundamentais da República, uma vez que a Constituição pretende garantir uma sociedade solidária.

 


CONCLUSÃO

 

O Código Civil de 2002 trouxe a cláusula geral da tutela da personalidade da pessoa humana oriunda do princípio maior da dignidade que origina os princípios da solidariedade e igualdade que têm sempre a finalidade de produzir, reproduzir e desenvolver a vida do homem como ser intelectual. As cláusulas gerais deverão ser interpretadas em conformidade com a Constituição Federal, que é a base de princípios e interesses sociais. A boa-fé objetiva como cláusula geral de regulamentação da conduta do homem nas relações contratuais origina-se da cláusula geral da tutela da personalidade,  em conseqüência toda interpretação de situações contratuais deverá ter como “standard” jurídico a boa-fé objetiva analisada juntamente com o princípio da  dignidade da pessoa humana.

A boa-fé objetiva é um parâmetro geral de conduta da pessoa diante de determinada situação jurídica concreta, e a interpretação deste padrão comportamental deve ser da maneira que mantém sempre a dignidade das partes, a probidade das partes e principalmente o respeito aos normativos e princípios jurídicos da eticidade, sociabilidade e operacionalidade , princípios estes informadores do diploma civil.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVIM, A. A função social dos contratos no novo código civil. In: PASINI, N.; LAMERA, A. V. Ú.; TALAVERA, G. M. (Coord.). Simpósio sobre o novo código civil brasileiro. São Paulo: Método, 2003.

 

AZEVEDO, A. J. de. A boa-fé na formação dos contratos. Revista da Faculdade de Direito USP, São Paulo, n. 87, p. 79-90, 1992.

 

_____.  A boa-fé na fomação dos Contratos , Revsita de Direito do Consumidor, n 3, pp. 78-87

 

COSTA, J. M. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

 

_____. A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões em torno de uma notícia jornalística. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 4, p. 140-191, 1992

 

DUARTE, R. P. Boa-fé , abuso de direito e o novo código civil brasileiro. Doutrina Cível – Primeira Seção. ano 92. RT/817. nov. 2003.

FACHIN, L. E. Apreciação crítica do código civil de 2002 na perspectiva constitucional do direito civil contemporâneo. Coligido in Revista Jurídica. Rio Grande do Sul: Notadez, ano 52, n. 304, 17-22, fev. 2003.

 

GODOY, C. L. B. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004. (Coleção Prof. Augusto Alvim).

 

GOMES, O. Contratos. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

 

LOBO, P. L. N. Contrato e mudança social. São Paulo: RT/722, dez. 1995.

 

NEGREIRO, T. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1988.

 

NORONHA, F. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994.

 

ROSENVALD, N. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. (Coleção Prof Agostinho Alvin).

 

SAMPAIO, D. F. A intervenção do estado na economia e o princípio da dignidade da pessoa humana ante a nova lei ambiental. n 1. Brasília: CEJ, 2000.

 

SZANIAWSKI, E. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.


Notas

[1] AZEVEDO, A. V. passim.

[2] GOMES, Contratos, passim.

[3]   FACHIN, L. E. Apreciação crítica do código civil de 2002 na perspectiva constitucional do direito civil contemporâneo. Coligido in Revista Jurídica. Rio Grande do Sul: Notadez, ano 52, n. 304, 17-22, fev. 2003.

[4] SAMPAIO, D. F. A intervenção do estado na economia e o princípio da dignidade da pessoa humana ante a nova lei ambiental. n. 1. Brasília: CEJ, 2000.

[5] SZANIAWSKI, E. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 140.

[6] Id.

[7] Id.

[8] ROSENVALD, p. 142.

[9] NEGREIRO, T. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. passim.

[10] COSTA, J. M. Mercado e solidariedade social. In: ____. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. passim.  

Sobre os autores
Altair Mota Machado

Professor da Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Mestre em Direito  Universidade Federal do Paraná – UFPR.Delegado Geral de Policia Civil  -MG. Aposentado.

Angelo Junqueira Guersoni

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, Professor da Faculdade de Direito do Sul de Minas- Pouso Alegre-MG

Informações sobre o texto

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