O PRINCÍPIO DE ESTADO DE INOCÊNCIA

Um debate atual

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Na atualidade muito se tem discutido sobre o estado de inocência, dito incorretamente presunção de inocência, em julgamento com repercussão geral no STF. O presente texto tem por objetivo trazer novas luzes a esse debate.

O PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA: um debate atual

                                                 Marcelo Murillo de Almeida Passos, especialista em Direito

Introdução histórica

 

Historicamente o princípio do estado de inocência relaciona-se como uma reação liberal frente aos abusos cometidos pela Inquisição, cuja luta culminou com a sua positivação pela primeira vez no artigo 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris), de 1789, ditada sob a inspiração iluminista.

A ideia central do princípio está contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao consagrar no artigo XI, item 1 que, “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

É uma garantia social e política do cidadão crescentemente reconhecida e protegida pelas Constituições modernas e Tratados de Direitos Humanos editados a partir da Segunda Guerra[1] com uma abrangência de universalidade e alcance ilimitado, cujo conteúdo vincula a atividade administrativa, jurisdicional e também situações extraprocessuais como são as atividades de informação.

O artigo 5.º, inciso LVII que consagra entre nós o princípio do estado de inocência é quase que uma cópia fiel da primeira parte do art. 32.º-2 da Constituição portuguesa, que nos serviu de fonte de inspiração, ao estabelecer in verbis: “Art. 32.º-2 - Todo o arguido se presume inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, ou seja, “Art. 5.º, LVII - “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Entre nós, na República Federativa do Brasil, nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte a redação original do artigo 43, § 1.º do anteprojeto era que “Presume-se inocente todo acusado, até que haja declaração judicial de culpa”. Frente a essa redação foi apresentada emenda pelo deputado constituinte, advogado e jurista José Inácio Ferreira (PMDB-ES), da qual culminou na redação atual do inciso LVII do artigo 5.º, da Constituição de 1988[2], com opção constituinte de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o que faz toda a diferença.

Portanto, por opção do legislador constituinte o estado de inocência vigente foi além do juízo de formação da culpa que se dá normalmente com a decisão proclamada na segunda instância, embora recorrível. Pela redação atual do artigo 5.º, LVII para que haja a inversão de tratamento de inocente para culpado, isto é, de réu para condenado, e todas as consequências jurídicas disso decorrente, exige-se que a decisão penal condenatória seja irrecorrível, nomenclatura técnico-legal e inequívoca do significado trânsito em julgado, a teor do DL 4.657/42, art. 6.º, § 3.º. Destarte, por raciocínio óbvio, se há recursos pendentes aos tribunais superiores é porque não ocorreu o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E pendentes recursos aos tribunais superiores a condenação pode ser revista em novo julgamento (em matéria exclusiva de direito) inclusive para absolver o réu. Nessas circunstâncias, pela Carta Política, sem a ocorrência do trânsito em julgado, como uma das consequências do estado de inocência, não se pode dar início ao cumprimento de pena obtida nas instâncias ordinárias em detrimento do réu, porque juridicamente na dicção constitucional ainda não foi ilidido o estado de inocência. Em matéria processual penal não socorre o argumento de que os recursos especial e extraordinário não são dotados do efeito suspensivo, porque a Constituição deu um tratamento diferenciado, pois, do contrário seria mantido a redação original “da formação da culpa” no texto constitucional.

 

O Estado de Inocência como Cláusula Pétrea da Constituição Federal

 

Sob o aspecto da estabilidade (ou alterabilidade) a nossa Constituição classifica-se como super-rígida por possuir um núcleo material duro, imutável ou insuscetível de modificação pelo poder constituinte derivado ou reformador, chamado de cláusula pétrea.

O princípio do estado de inocência proclamado no artigo 5.º, LVII, da Constituição Federal, por constituir-se num direito fundamental do cidadão ou cláusula pétrea constitucional, pela redação do artigo 60, § 4.º, IV, da Constituição Federal, não pode ser objeto de emenda constitucional tendente a aboli-lo. Do texto constitucional extrai-se que os direitos fundamentais somente podem ser alargados pelo legislador constituinte derivado, jamais suprimidos ou reduzidos.

E se o legislador não pode reduzir ou excluir um direito fundamental, quanto mais seu intérprete!

 

A denominação mais correta com o escopo constitucional

 

Por técnica jurídica, há de se preferir sempre o termo “estado de inocência” sobre as demais designações (“princípio presunção de inocência ou “de não-culpabilidade”), porque, do contrário, cria-se uma compreensão incorreta do conteúdo do princípio, isto é, de que a inocência é sempre presumida ou de um juízo provisório negativo sobre a culpa, mas que adiante será confirmada. Neste sentir, a expressão estado de inocência é a que melhor se afina com o sentido que lhe dá a redação do artigo 5.º, LVII da Constituição Federal de que não se presume a inocência, mas consagra que ninguém será considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Tal expressão, ademais, está mais ligada à maior proteção dos Direitos Humanos.

O estado de inocência desdobra-se em dois aspectos: o material e o processual.

 

Estado de inocência em sentido material

 

 No Direito Penal representa um limite de natureza constitucional frente ao legislador ao proibir a criação de tipos penais que presumam a culpabilidade do autor, ou que de qualquer forma que impliquem numa presunção de culpa.

 Em outras palavras são nulos aqueles preceitos penais em que se estabeleça uma responsabilidade baseada em fatos presumidos (fatos que se presume ter o autor realizado, ainda que disso não exista prova alguma)[3].

 São exemplos de tipos penais de culpa presumida os crimes de mera suspeita, que, segundo Manzini, são aqueles que “não constituem um fato nem positivo, nem negativo, mas simplesmente uma situação individual, que apesar de não constituir infração de nenhum comando ou proibição penal, são incriminados pela simples suspeita que despertam”[4]. Como exemplos de tipos penais de mera suspeita podem ser citados os definidos nos artigos 24, 25 e 26 da Lei de Contravenções Penais.

 O artigo 24 da LCP tipifica como contravenção penal e pune com prisão simples, de 6 meses a 2 anos e multa, o fato de alguém fabricar, ceder ou vender gazua ou instrumento empregado usualmente na prática de crime de furto. Cremos que, numa intepretação conforme para autorizar a persecução penal não basta o fato isolado em si, desacompanhado de outros elementos de prova indicativos do crime patrimonial, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

 Com efeito, a criação de tipos penais de culpabilidade presumida (crimes de mera suspeita) sempre chamou atenção dos penalistas por ferir de morte o princípio do estado de inocência e, por conseguinte, o princípio da culpabilidade.

 Muitas vezes não é fácil a detecção dos tipos penais de mera conduta, pois o legislador moderno com ares punitivistas tem-se cada vez mais aperfeiçoado nesta técnica.

 Esse tema foi objeto de discussão na doutrina espanhola acerca da duvidosa constitucionalidade do crime de detenção ilegal com desaparecimento forçado.

A descrição típica desse crime encontrava-se no artigo 483 do Código Penal espanhol revogado de 1973, com a seguinte redação: “O réu de detenção ilegal que não esclareça o paradeiro da pessoa detida, ou não acredite havê-la deixado em liberdade, será punido com pena de reclusão maior, de 15 a 20 anos”.

Pois bem, entendia-se que o crime do artigo 483 tratava-se de um crime de detenção ilegal com a pena agravada diante de uma presunção de homicídio. Com efeito, na dúvida de que se o sujeito passivo dessa detenção havia sido assassinado ou não, o artigo 483 presumia a sua execução, invertendo-se a carga probatória.

Dessa forma, discutia-se ainda que essa redação típica violava o princípio da culpabilidade, porque ao autor de uma detenção ilegal se imputava uma morte, da qual não se podia provar que não ocorreu, e ainda, no caso de ter ocorrido, que o causante tenha agido com dolo ou culpa[5].

Diante da relevância do tema no direito comparado reportamo-nos à exposição de Zugaldía:

 “Deste ponto de vista, oferecia sérias dúvidas a constitucionalidade do artigo 483 CP-73 (que equivale ao atual art. 166 do CP espanhol), segundo o qual se pode punir com pena parcialmente coincidente com do crime de assassinato o fato de não poder dar conta do paradeiro de uma pessoa detida ilegalmente ou sequestrada.

 Pese a inegável gravidade que traz o tema dos ‘desaparecidos’ após uma detenção ou sequestro, o preceito citado contraria o princípio de presunção de inocência porque ele considera – para o caso de ausência de provas – que a pessoa que foi detida ilegalmente ou sequestrada e que desapareceu ou que não se acredita que a tenha sido libertada, que o agente a matou (única maneira de explicar, se de qualquer maneira quer respeitar o princípio da proporcionalidade das penas, o fato de se sancionar com uma pena parcialmente coincidente com a do assassinato – artigo 139 do CP).

 Todavia, a STS de 25 de junho de 1990 e a STC de 28 de novembro de 1990 (referentes ao caso ‘Nani’ – um delinquente que desapareceu nas mãos da polícia) entenderam que o artigo 483 CP-73 continha tão só um ‘tipo agravado de detenção ilegal seguido de desaparição’ que de modo algum pode ser tachado de inconstitucional, porque para a configuração do crime basta, à margem de qualquer tipo de presunção, ‘a prova de fatos positivos’: (1) que se tenha praticado uma detenção; (2) que esta é ilegal; (3) que o detido não tenha sido posto em liberdade; e (4) que tenha desaparecido. Deste modo, sem dúvida, se salva o princípio da presunção de inocência do ponto de vista formal, porém se olvida (sob o aspecto material) que, diante da pena com a que se comina este ‘tipo agravado de detenção ilegal’, o fundamento da agravação não pode ser outro a não ser a suposição de ter-se cometido um crime contra a vida do detido[6].

 

Estado de inocência em sentido processual

 

Em sentido processual, o estado de inocência filia-se ao princípio constitucional do devido processo penal, ao estabelecer que toda a carga probatória está na mão do órgão acusador e no âmbito das cautelares proíbe por inconstitucionalidade a aplicação da prisão preventiva obrigatória ou automática.

No processo penal, pelo princípio do estado de inocência, o réu como não formula pretensão nenhuma a ele não incide a carga probatória da sua inocência, que já é declarada constitucionalmente como uma garantia fundamental.

A carga probatória de provar todos os elementos constitutivos do fato típico e da culpabilidade recai única e exclusivamente ao autor do processo penal, ou seja, sobre aquele que formula pretensão acusatória com pedido de condenação (Ministério Público ou querelante), porque a defesa não manifesta pretensão alguma, unicamente resiste à pretensão do autor da ação penal. Sobre o acusado impera o direito à liberdade[7]. Portanto, não é o acusado quem deve provar a sua inocência.

Essa característica do princípio do estado de inocência tem influência direta no papel do juiz na “gestão do ônus da prova” durante a instrução processual com consequências na esperada imparcialidade do juízo.

O processo penal é um instrumento limitado de reconstrução do passado. Como o acusado tem em seu favor a regra do estado de inocência a mítica busca quixotesca do “cálice sagrado” (da verdade real) pelo órgão jurisdicional (o que nos dias atuais tem fomentado a figura medieval do “juiz-inquisidor”) entra em franca contradição o sistema constitucional de processo penal por violar a garantia da imparcialidade da jurisdição, como um dos princípios basilares do devido processo legal[8]. Esse pseudo argumento da “busca da verdade real” tem servido para estimular o autoritarismo (pai de todas as arbitrariedades) e o que é pior, do próprio juiz, que a rigor deve ser imparcial e garantidor das liberdades individuais no curso do processo penal. Vale lembrar que o processo penal só existe porque é uma garantia do cidadão, do contrário a aplicação da pena seria auto executável aos presos em flagrante delito.

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Isto porque, diante do estado de inocência, quando o juiz substitui o órgão acusador, formulado as perguntas na instrução processual em nome da “busca da verdade real”, está, no fundo, buscando provas para condenar o réu, porque a anemia probatória conduz inexoravelmente à absolvição do réu. Nesse sentido a figura do juiz-acusador é uma contradição em termos, totalmente inconstitucional, mas que ainda hoje resiste no mundo forense como um resquício de uma época obscura em que impera(va) o autoritarismo neste país. E o que é pior: antes da ditadura era imposta pelo Poder Executivo, não pelo Poder Judiciário, que deve(ria) ser o guardião dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal.

A única interpretação constitucional possível da regra estabelecida no art. 156, I e II do Código de Processo Penal é aquela que autoriza o juiz a tomar probatória somente nos casos de deficiência da defesa e sempre no sentido de destruir provas acusatórias. Do contrário haverá infração ao princípio do estado de inocência.

Com efeito, a Constituição traçou no processo penal tipologia diferenciada entre as atividades de julgar e acusar. Não é por acaso que os membros do Ministério Público gozam das mesmas garantias institucionais dos membros do Poder Judiciário: vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídio (CF, art. 95, incs. I a III e art. 128, § 1.º, inc. I, alíneas a a c).

Relembra Aury Lopes Júnior que historicamente o Ministério Público surgiu como parte fabricada no processo penal justamente para garantir a imparcialidade do juízo. No processo penal não existe a figura do Promotor in-parcial (não-parte). Portanto, se é o órgão ministerial que acusa, é ele quem deve buscar todos os meios de prova legítimos para sustentar a acusação em juízo e não o órgão jurisdicional substituir o seu papel, de parte, porque o papel constitucional do juiz é o da imparcialidade (não-parte). Esse modelo de separação das funções de acusar e julgar não pode ser rompido na gestão da prova durante a instrução probatória sob pena de ficar comprometida a garantia da imparcialidade do órgão jurisdicional, que é considerada pedra angular do devido processo legal. Ensina Franco Cordero (Guida alla Procedura Penale, Torino: UTET, 1986, p. 51) que tal atribuição (de poderes instrutórios do juiz) conduz ao primato dell’ipotesi sui fatti, gerador de quadri mentali paranoidi. Isso significa que se opera um “primado (prevalência) das hipóteses” sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova, “primeiro decide” (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (das provas) que justificam a decisão tomada anteriormente[9].

Como ressalta Montero Aroca as funções diferentes do Estado-Juiz e do Estado-Acusação não se trata de um modelo de processo penal acusatório puritano, mas da própria tipologia de processo traçada pela Constituição Federal, porque a distinção entre parte acusadora e juiz não é algo próprio de uma classe de processo (o chamado sistema acusatório ou inquisitório), mas é algo que atende à essência do processo. Não pode haver processo sem que não haja acusação e esta há de ser formulada por pessoa distinta da que haverá de julgar. Estamos diante de algo óbvio, pois não existe verdadeiro processo se se confundem os papéis de juiz e de acusador, e é tão elementar esta consideração que levou que Estado no processo penal se desdobrasse em dois papéis: de um lado o órgão que atua como acusador (Ministério Público), e, de outro, o órgão que atua como decisor (juiz ou tribunal). É tão elementar essa consequência que nem sequer existe uma norma constitucional que a diga expressamente.

Se existe processo é porque existem ao menos duas partes e um terceiro imparcial (não-parte). Repetindo a antiga fórmula do glosador Bulgaro (séc. XII) judicium est actum trium personarum, porque para existir processo deve haver no mínimo três sujeitos processuais: autor, juiz e réu[10].

O estado de inocência vai mais além da convicção íntima do julgador, porque é um direito do acusado a não ser condenado sem provas constitucionalmente válidas (inadmissível, portanto, a condenação com provas ilegais e as ilegítimas) e não esgota sua virtualidade no mandato in dubio pro reo que se funda no aforismo satius esse impunitum relinqui facinus nocentis quam inocentem damnari, ou seja, “é preferível deixar um culpado impune a prejudicar um inocente”. Nestas circunstâncias, a falta de prova obrigará a absolvição, ainda que o julgador não tenha dúvida alguma acerca da culpabilidade do réu[11].

Por conta do princípio de estado de inocência o imputado ou o acusado não pode sofrer nenhuma consequência penal (pena ou medida de segurança) antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (STF, HC 84.078-7/MG, Rel. Min. Eros Grau, j. 5.2.2009).

A partir deste julgamento, o início do cumprimento de pena somente se dará quando não houver mais recurso pendente de julgamento (decisão transitada em julgado), mesmo que o recurso não tenha efeito suspensivo, como são, por exemplo, o Recurso Especial e o Recurso Extraordinário.

A única exceção a essa regra, se trata do caso do acusado que ficou preventivamente preso durante todo o processo. Condenado em primeira instância, e havendo recurso exclusivamente da defesa e com trânsito em julgado para a acusação, já existe um limite máximo de pena imposta. Nestas hipóteses, continuando preso na esfera recursal, cabe a execução provisória da pena, porque é situação mais favorável ao réu, que poderá progredir de regime penitenciário e receber outros benefícios reconhecidos pela LEP que não são conferidos ao acusado preso-preventivamente, enquanto seu recurso está pendente de julgamento. A esse respeito às Súmulas 716 e 717 do Supremo Tribunal Federal.

Ao contrário, se o acusado respondeu o processo em liberdade, de acordo com o modelo constitucional, não mais precisa recolher-se à prisão para poder recorrer (CPP, art. 594), exceto se houver fato novo a fundamentar a decretação de prisão preventiva (CPP, art. 320), diante da vedação constitucional da prisão cautelar obrigatória.

Nota-se que no que tange ao regime jurídico das prisões cautelares estando presente o fumus comissi delicti e todos os requisitos legais específicos, mas ausente o pressuposto genérico do periculum libertatis, a sua decretação entra em conflito com o princípio da inocência, porque representa um juízo prematuro de antecipação da culpabilidade do agente (culpabilidade por presunção sobre o crime imputado), e o que é pior, existe antecipação material de cumprimento de pena (encarceramento cautelar por presunção de culpa). Na Constituição, a liberdade do indiciado/acusado é a regra; a prisão cautelar é exceção. Pela tradição inquisitiva, a prisão preventiva do acusado é um expediente usualmente utilizado pelo magistrado para facilitar-se o acesso à prova e à pessoa do preso para coação (por exemplo para obter a confissão do acusado [e modernamente entre nós como expediente usado para obter a delação premiada])[12].

E mais ainda, presentes todos os requisitos para sua decretação, a prisão preventiva – dentro de um juízo de proporcionalidade – só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas cautelares menos onerosas (CPP, art. 319).

A prisão preventiva é medida de extrema ratio dentre as outras medidas cautelares, de sorte que não é medida coercitiva que deve ser normalmente aplicada, mesmo quando se verificarem todos os pressupostos formais para a sua aplicação.

 A quebra desses princípios caracteriza uma prisão ilegal cabível o manejo do habeas corpus para a decretação de seu relaxamento, ou dependendo do caso, para substituição de outra medida cautelar menos onerosa (CF, art. 5.º, inciso LXV c.c. o inciso LXVIII).

Em qualquer instância (inquérito policial ou processo penal) ou fase da persecução penal (instrução ou recursal), confere ao acusado o status de inocente, enquanto não estiver a culpabilidade comprovada ou afirmada por sentença penal condenatória irrecorrível (CF, art. 5.º LVII).

Nessa linha, por exemplo, a Súmula Vinculante n.º 11 do STF, que disciplinou o uso de algemas, reservada somente para casos em que receio de fuga ou de perigo de integridade física própria ou alheia. Com efeito, passou-se a entender que o uso de algemas representa uma forma de prisão do acusado e deste modo existe um açodamento contra o réu durante o julgamento pelo juiz e especialmente pelo Tribunal do Júri (tribunal leigo) em que o réu passa a receber o tratamento de condenado, o que pode influenciar negativamente numa decisão contra o acusado.

Fora dessas hipóteses permitidas (receio de fuga ou perigo à integridade física), e devidamente fundamentada por escrito pela autoridade no caso concreto, o agente público responderá administrativa, civil e criminalmente, a par de tal ato acarretar a nulidade da prisão e do próprio processo penal.

Ainda na seara processual, no procedimento do Júri, o princípio do estado de inocência não abre nenhuma exceção para o psedoprincípio in dubio pro societate para a formação do jus accusacionis, por maior que seja o esforço do discurso em torno da soberania do júri popular.

Com efeito, de acordo com Aury Lopes Júnior, o princípio in dubio pro societade (quando da decisão de pronúncia), não tem nenhuma base constitucional; e assim é totalmente incompatível com a estrutura das cargas probatórias definida pelo estado de inocência. Por essa razão Aury formula algumas perguntas que não têm respostas jurídicas-constitucionais: Onde está a previsão constitucional do tal in dubio pro societate? Em que fase do processo (e com que base) o réu perde a proteção constitucional? etc. Não provada a acusação o caso é de impronúncia (CPP, art. 414). Portanto, conclui que a fórmula in dubio pro societate trata-se de uma frágil construção de cunho autoritório ou inquisitorial incompatível com o modelo de Processo Penal traçado pela Constituição Federal[13].

De fato, como diz Aury, em sendo o Poder Judiciário o guardião da Constituição e dos direitos fundamentais, não pode compactuar com acusações infundadas de crimes contra a vida, para, através de um princípio não recepcionado pela Constituição, pronunciar o cidadão, enviando-lhe para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário[14].

Durante a execução penal, se a ressocialização do preso é uma das missões do Estado Democrático de Direito, o princípio do estado de inocência impede que com relação ao condenado se presuma a comissão de crimes futuros e incertos diante da existência de uma condenação anterior, por meio de etiquetação como presumível culpado de crime sequer possa vir a ocorrer[15]. Por essa razão a realização prévia do exame criminológico deixou de ser obrigatória para a obtenção de alguns benefícios para o condenado sendo reservada a casos excepcionalíssimos e devidamente fundamentados pelo Juízo das Execuções Criminais.

 

Algumas implicações do princípio do estado de inocência

 

Em suma, conforme Damásio E. de Jesus, do princípio do estado de inocência decorrem algumas garantias fundamentais relativas ao processo penal, como por exemplo: 1) o sujeito só pode ser processado nas hipóteses previstas em lei [e havendo elementos mínimos de prova acerca da materialidade e autoria]; 2) a cada um é assegurado o devido processo legal, obedecidos estritamente os ritos procedimentais; 3) ninguém pode ser julgado sem citação regular; 4) no terreno das provas, deve vigorar o brocardo in dubio pro reo; 5) o fato que apresenta dúvida razoável quanto à sua ocorrência não pode ser considerado provado; 6) não há presunção de dolo, culpa ou culpabilidade; 7) o réu tem direito a ver o seu caso julgado em um prazo razoável[16], com as garantias de defesa, porque a demora excessiva do julgamento acabará por esvaziar e tirar o alcance ao princípio do estado de inocência, acabando o réu por ficar de algum modo injustamente penalizado (o processo em si já representa um tormento), mesmo no caso de absolvição (pena de banquillo)[17].

E pode acrescentar-se ainda: 8) direito do réu de estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito; 9) direito em ser ouvido pelo juiz ou tribunal, sempre que eles devam tomar uma decisão que pessoalmente o afete; 10) direito à assistência técnica por advogado em todos atos processuais que participar, até mesmo no inquérito policial; 11) direito a comunicar-se diretamente com o seu defensor; 12) o silêncio do acusado no interrogatório policial ou judicial não induz a sua culpa no fato típico; 13) no caso de decidir declarar, o acusado tem direito a não inculpar-se ou produzir provas contra si mesmo; 14) intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias; 15) direito de recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis; 16) o estado de inocência reafirma o princípio da persuasão racional do juiz, cuja decisão há de ser sempre fundamentada, sob pena de nulidade (CF. art. 93, IX); 17) para o réu absolvido não existe a possibilidade de revisão criminal pro societate, etc.

 

Conclusão

 

O princípio do estado de inocência é um princípio angular do processo penal, que faz com que o processo penal seja um ramo autônomo e independente do direito, mormente do processo civil, e que objetivamente derivam outros princípios.

Pela nossa Constituição Federal o nosso processo penal foi moldado sob o sistema acusatório, sendo que uma das características básicas desse sistema é que o réu permaneça em estado de liberdade durante todo o processo, ressalvadas as medidas cautelares de caráter excepcionalíssimas, que não se confundem com prisão-pena. Portanto, o estado de inocência está coerente com o modelo constitucional de processo penal acusatório traçado pela Constituição Federal, isto é, passando de um modelo superado de processo-repressivo (de polícia) adotado pelo Código de Processo Penal, de 1941 e inspirado no Código fascista italiano de 1930 (Codice Rocco) para um modelo de processo garantista ou democrático.

Dado o conteúdo técnico jurídico da expressão trânsito em julgado, inequívoca no direito, o intérprete ou julgador não pode dar significado diverso daquele previsto no artigo 6.º, § 3.º do DL 4.657/42 por meio de argumentos extralegais ou políticos para reduzir o conteúdo e o alcance do estado de inocência para fins de antecipação da prisão-pena com a formação da culpa, por exemplo.

Com argumentos políticos em nome de um ativismo judicial pode-se tudo, inclusive rasgar a Constituição e as Leis: - com ele afasta-se qualquer texto legal, porque não vale o que está escrito, mas aquilo que os tribunais dizem o que está escrito, conforme a experiência nazista. E esse é um dos grandes perigos modernos que assolam a segurança jurídica e a democracia contemporânea.

A socióloga alemã e professora emérita da Universidade Goethe, em Frankfurt am Main, Ingeborg Maus, em obra recente e traduzida para o português sob o título de O Poder Judiciário como Superego da Sociedade (Lumen Juris, 2010), com observação no Tribunal Constitucional Federal alemão, chamou a atenção para o perigo da hermenêutica constitucional, em que a Corte Constitucional não julga conforme a lei positiva, mas julga para atender os anseios sociais, “para o bem” e “para o mal” à guisa de ativismo judicial, porque inexoravelmente esse ativismo descamba para a ditadura do judiciário, que pela tradição é a pior de todas as ditaduras porque contra ela não existe nenhum remédio.

Se o nosso modelo de estado de inocência insculpido na Constituição Federal (Lei das Leis) vai além da formação da culpa para um estágio posterior com o trânsito em julgado essa foi a opção do legislador constituinte originário, que como cláusula pétrea deve ser respeitada, porque positivada é a que confere segurança jurídica.

Sobre o estado de inocência à luz da nossa Constituição Federal não há outra interpretação honesta possível...

                                   

 


[1] Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, art. 26 (Bogotá, 1948); Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 11 (Paris, 1948); Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8.º, item 2 (San José da Costa Rica, 1969).

[2] PELUSO, Cezar, Constituição brasileira revela amplitude da presunção de inocência, in: Revista Brasileira da Advocacia, 2016.

[3] COBO DEL ROSAL, Manuel & VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Derecho Penal, Parte General, 5 ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, p. 97. ZUGALDÍA ESPINAR, José Miguel, Fundamentos de Derecho Penal, 3 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1993, p. 274.

[4] MANZINI, Vincenzo, Trattato di Diritto Penale Italiano, vol. I, Torino: UTET, 1950, p. 602.

[5] GIMBERNAT ORDEIG, Enrico, Estudios de Derecho Penal, 3 ed. Madrid: Tecnos, 1990, p. 103. Nota-se que Gimbernat defende a constitucionalidade desse artigo.

[6] ZUGALDÍA ESPINAR, José Miguel (director), Derecho Penal, Parte General, 2 ed. Valencia: Tirant lo blanch, 2004, p. 229.

[7] Cf. JARDIM, Afrânio Silva, Direito Processual Penal, 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 209.

[8] Sobre o tema veja as excelentes monografias: NEVES BAPTISTA, Francisco das, O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, e ainda especialmente, KHALED JÚNIOR, Salah H., A Busca da Verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial, São Paulo: Atlas, 2013.

[9] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 129, 138-139. Veja também, PACELLI, Eugênio, Curso de Processo Penal, 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 289.

[10] MONTERO AROCA, Juan & GÓMEZ COLOMER, Luis & MONTÓN REDONDO, Alberto & VILAR, Silvia, Derecho Jurisdiccional, III, Proceso Penal, 20 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2012, pp. 21-22. O modelo de processo penal adotado pela nossa Constituição caracteriza-se pela separação das três funções fundamentais no processo: acusar, defender e julgar; igualdade de partes; imparcialidade do Juiz (que não deveria ser contaminado); valoração das provas não tarifada, mas baseada em critérios da persuasão racional devidamente fundamentada na sentença; exclusão das provas ilícitas; iniciativa processual e em especial probatória das partes que se traduz numa atividade passiva do Juiz; limites na aplicação de medidas cautelares, em especial da prisão preventiva, contraditório e ampla defesa, possibilidade de recorrer da decisão desfavorável, publicidade.

[11] COBO DEL ROSAL, Manuel & VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Derecho Penal, Parte General, 5 ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, p. 98.

[12] SIRACUSANO, Delfino & GALATI, Antonino & TRANCHINA, Giovanni & ZAPPALÀ, Enzo, Diritto Processuale Penale, I, nuova edizione. Milano: Giuffrè, 2001, p. 37.

[13] LOPES JÚNIOR, Aury, Direito Processual, 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 553-554.

[14] LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1001.

[15] SARRE, Miguel, Ejecución de sanciones y medidas penales privativas de la liberdad, in: Derechos Humanos en la Constitución: Comentarios de Jurisprudencia Constitucional e Interamericana, vol. 2, México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2013, p. 712.

[16] JESUS, Damásio E. de, Revista Phoenix, n. 11, de abril de 2008, tópico: o princípio da presunção de inocência.

[17] Cf. MAIA GONÇALVES, Manuel Lopes, Código de Processo Penal anotado e comentado, 15.ª ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 171.

Sobre o autor
Marcelo Murillo de Almeida Passos

Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Autor do livro: Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, prefaciado pelo Dottore Luigi Cornacchia, 2015, ed. Lumen Juris.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto extraído base extraído do livro Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, de autoria de Marcelo Murillo de Almeida Passos

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