Fui chamado de “menino branco”. E sou mesmo em vários sentidos – nem tanto na idade –, sobretudo, em alguns gestos, gostos, hábitos, escolhas e rotinas. Entretanto, sei bem que não sou um “homem branco”, do perfil que se filia aos “homens de bem”. Esse “menino branco” tem todos os seus defeitos caraterísticos, pois posso ser chato (nem ligo), ser mimado (marrento), ter sido protegido ante muitas durezas da vida comum do homem médio, ter tido uma família organizada que me deu educação, cultura, politização, meios de procurar um trabalho saudável, intelectualizado, livre das misérias que afligem a uberização da vida social.
Posso pertencer a uma elite cultural branca, nunca ter passado necessidades do mínimo existencial, ter frequentado boas escolas, ter livros em casa (milhares, hoje em dia), acesso aos meios do conhecimento e do respeito. Posso ter os defeitos de quem cultiva uma vaidade pelo que fez e julga conhecer, comum à universidade, e posso exagerar na demonstração disso tudo.
Alguns ainda podem dizer de um menino branco metido, porque não olho para trás, e não olho mesmo, mas é por pura falta de tempo de quem procura o que lhe resta fazer antes de partir. Também pode haver “metidez” – só que, nesse caso, temos de pensar que não há almoço grátis e que “os anjos não se ocupam da política”.
Posso, inclusive, ter muitos defeitos que nem percebo. Contudo, com absoluta certeza, não tenho o pior deles: a santa hipocrisia. Esta infernal hipocrisia que esconde o racismo, a misoginia, a xenofobia, o fascismo nativo, a homofobia, o elitismo. Por isso, sou menino branco que luta todo dia contra o fascismo, o crime ambiental, a ignorância política que ameaça com “outro” AI-5, ou qualquer tipo criminoso contra a Constituição, a democracia, a liberdade.
Sou menino branco de alma negra. Sou menino branco que sofre com as vergonhas nacionais, a incitação ao ódio racial (detesto essa expressão racista, por origem), que se ofende com os que defendem a exclusão social dos mais pobres – como se pudessem ser ainda mais expulsos dos significados do capital predatório que nos alimenta de mais ódio social e descrença nos mínimos valores republicanos: da vida pública.
Sou menino branco que tem vergonha das brasilidades, das falcatruas, da corrupção pública, dos boçais que batem e humilham mulheres, idosos, crianças, deficientes, por se julgarem (“nazistamente”) superiores em sua cretinice secular e atávica. Sou menino branco que repudia qualquer ataque à educação pública de qualidade, laica, republicana e democrática, inclusiva, crítica, elucidativa e prospectiva de um conhecimento filosófico e científico emancipatório – porque dirigido à construção da liberdade, da igualdade e da equidade.
Sou menino branco que não suporta a maioria dos homens brancos, mas que, infelizmente, nada pode fazer para mudar a cor de sua pele, apenas instigar o respeito e a admiração por todos e todas que não tiveram as mesmas condições e que, ainda assim, denunciam e lutam contra todos os homens brancos fascistas.
Em dias assim, o menino branco chora pelos negros e negras acorrentados no preconceito branco, esse mesmo que põe as primeiras coleiras nos esbranquiçados de alma suja, enlameada pela absoluta ausência de humanismo. Portanto, se me chamar de menino branco, saiba que sou mesmo, para o bem e para mal; porém, não esqueça de que que sou menino branco que ama preto velho, que é filho de Ogum. E aí, para quem bem entende, o recado está dado. Só não sou capoeira porque as muletas não permitem...