A execução provisória da pena sob a ótica constitucional

02/11/2019 às 08:11
Leia nesta página:

Com o recente julgamento pelo STF acerca da possibilidade de execução provisória da pena, mister se faz uma interpretação da Constituição para captar seu real sentido e aferir a possibilidade da execução provisória da pena.

As normas constitucionais evoluem gradativamente, e suas modificações são um reflexo dos anseios da sociedade. Desta feita, deve ser analisado o contexto histórico-social em que a norma está inserida, e ao mesmo tempo não se desprender dos princípios que regem o sistema jurídico.

Após mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal, ocorrida em 2016 e ora em pauta novamente em 2019, muito se discute quanto à possibilidade da execução provisória da pena após decisão condenatória penal em 2ª Instância.

Desta feita, deve se fazer uma análise das normas constitucionais e seus princípios e, não obstante, mister se faz também um estudo histórico na legislação e na jurisprudência, para que haja uma justa interpretação das normas e princípios constitucionais.


1. HISTÓRICO NA LEGISLAÇÃO

Preliminarmente, mister se faz dizer que o Código de Processo Penal de 1941 prevê em seu artigo 637 que:

O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, ressaltando que o referido artigo não foi revogado, apenas teve seu sentido e alcance modificado pela decisão do Supremo Tribunal Federal em 2009.

 Não obstante, o artigo 594 do CPP previa o recolhimento à prisão para apelar da decisão de 1º grau, ou seja, era necessário apenas a sentença de 1º grau para se iniciar a execução da pena. Ressalta-se que apenas em 2008 o referido artigo foi revogado pela Lei nº 11.719, de 2008.

Desta feita, conclui-se que desde 1941 a execução da pena após decisão de 2ª instância é plenamente cabível, destacando que com o advento da Constituição Federal de 1988 este entendimento continuou vigorando em cerca de 76% dos quase 30 anos da promulgação da Carta Magna.

A mudança de entendimento se deu no HC 84.078, sob relatoria do Min. Eros Grau, onde o STF por 7 votos a 4 decidiu que o réu poderia recorrer da condenação, aos Tribunais Superiores, em liberdade. Após a publicação deste acórdão, esse entendimento começou a valer como sendo uma regra que veda em qualquer circunstância a execução provisória da pena.

Entretanto, em 2016, com o julgamento do HC 126.292, por 6 votos a 5 o STF decidiu ser cabível a execução provisória da pena, sendo que o entendimento fixado em 2009 foi revisto em 2016 por 3 vezes pelo STF: no HC 126.292; ao negar as medidas cautelares nas ADCs 43 e 44; e em repercussão geral no ARE 964.246 mediante reafirmação de jurisprudencial, em Plenário Virtual.


2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Essa mudança de entendimento ocorrida em 2016 é atribuída ao fenômeno denominado Mutação Constitucional, que é a mudança de interpretação da norma em relação ao seu sentido e alcance.

Nos dizeres de Nathalia Masson, a mutação constitucional é um fenômeno que pode ser assim descrito:

"O texto segue intacto, mas o que se extrai dele é algo novo, que sofreu os impactos renovadores da releitura; o texto é o mesmo, mas o sentido que ele possui se alcera."

Não obstante, mister se faz destacar a lição de Vicente e Alexandrino:

“Haverá mutação constitucional, por exemplo, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, conferir nova interpretação a um determinado dispositivo constitucional (diversa de uma interpretação que ele anteriormente perfilhasse), implicando alteração substancialna compreensão de seu conteúdo e alcance.

Em síntese, podemos afirmar que as mutações constitucionais consubstanciam o caráter dinâmico, mutável da Constituição. São mudanças "silenciosas" informais do conteúdo e sentido das normas constitucionais. Silenciosas porque as mudanças não atingem a literalidade do texto da Constituição, mas apenas o seu significado.”

Neste diapasão, as normas constitucionais possuem, em última análise, o sentido e o alcance que o STF lhes dá, e a mutação constitucional ocorre quando há a incidência de algum desses três fatores:

a) mudança na realidade social;

b) mudança na compreensão do direito;

c) pelos impactos negativos produzidos pelo entendimento anterior.

Neste diapasão, tem-se que a mutação constitucional ocorrida em 2016 se deu pelos impactos produzidos pelo entendimento anterior, quais sejam:

I) Incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios – no fito de alcançar a prescrição do crime, há uma exacerbada interposição de recursos com intuito meramente protelatório, havendo inclusive a interposição de Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração, que é tido como algo inconcebível;

II) Reforço à seletividade do sistema penal, sendo muito mais fácil efetuar a prisão de alguém com 10 gramas de maconha do que agente público ou privado que desvie 10 milhões – prova disso é que cerca de 30 % da população carcerária são de delitos associados a furtos e drogas;

III) Descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade, pela demora na punição e pelas frequentes prescrições, gerando enorme sensação de impunidade – o próprio caso que foi o pivô da virada jurisprudencial em 2009 prescreveu antes de chegar ao STF, comprovando a morosidade que culmina na prescrição.


3. TESES JURÍDICAS APLICÁVEIS

Quanto às teses jurídicas aplicáveis, uma parte da doutrina entende que a presunção de inocência estabelecida no art. 5º, inciso LVII da CF 88, impede que a pena seja executada após decisão de 2ª Instância, uma vez que o réu presume-se inocente até o trânsito em julgado.

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Lado outro, há doutrinadores que entendem ser plenamente possível a execução provisória da pena com respaldo no inciso LXI, do art. 5º da CF 88, que estabelece que a prisão se dá em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.

Ora, há uma diferenciação entre presunção de inocência e prisão, uma vez que o pressuposto para a prisão é a ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente e não o esgotamento dos recursos com o trânsito em julgado. Tanto é que há a admissão das prisões processuais, como prisão preventiva, prisão cautelar, entre outras, sendo que nenhuma delas necessita do trânsito em julgado, aliás, elas não necessitam sequer de decisão de 1º grau.

A presunção de inocência se trata de um princípio e não de uma regra. Neste diapasão, existem inúmeros princípios que regem o sistema jurídico, sendo que esses devem ser harmonizados. Entretanto, em caso de divergência, deve se atribuir pesos a eles, fazendo uma ponderação.

No caso em destaque, estão em jogo os princípios da presunção de inocência e da efetividade mínima do sistema penal. Neste sentido, o constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes diz o seguinte:

“É natural à presunção de não culpabilidade evoluir de acordo com o estágio do procedimento. Desde que não se atinja o núcleo fundamental, o tratamento progressivamente mais gravoso é aceitável. [...]

Esgotadas as instâncias ordinárias com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força de que o réu é culpado e a sua prisão necessária.”

Não obstante, mister se faz a citação de trecho de recente Acórdão exarado pelo STF:

“As exigências decorrentes da previsão constitucional do princípio da presunção de inocência não são desrespeitadas mediante a possibilidade de execução provisória da pena privativa de liberdade, quando a decisão condenatória observar todos os demais princípios constitucionais interligados; ou seja, quando o juízo de culpabilidade do acusado tiver sido firmado com absoluta independência pelo juízo natural, a partir da valoração de provas obtidas mediante o devido processo legal, contraditório e ampla defesa em dupla instância, e a condenação criminal tiver sido imposta, em decisão colegiada, devidamente motivada, de Tribunal de 2º grau”

(STF – HC: 159807 ES- ESPÍRITO SANTO 0074976-59.2018.1.00.0000, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 25/06/2019, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-196 10-09-2019)

Neste toar, após decisão de 2ª grau, sendo devidamente respeitados os princípios constitucionais, o Estado estabelece uma certeza jurídica de que houve um crime e que o réu é o autor deste crime, uma vez que nas instâncias superiores não se discute mais autoria e tampouco materialidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta feita, deve se atentar às normas constitucionais para que realmente se possa atingir o que elas se propõem. A ponderação dos princípios é ferramenta indispensável no momento da interpretação, devendo haver uma harmonia entre os princípios, de modo que um não seja privilegiado em detrimento do outro, uma vez que não são absolutos, mas sim sopesados visando atingir o ideal de justiça.

Isto posto, tem-se que a execução provisória da pena após decisão de 2ª Instância é plenamente cabível, uma vez que as normas constitucionais dão esta possibilidade, levando em consideração que nesse estágio deve-se dar maior peso ao princípio da efetividade mínima do sistema penal.


REFERÊNCIAS

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 12. ed. rev. e atual. – São Paulo : SARAIVA, 2017;

MASSON, Nathalia. Maual de Direito Constitucional. - 4ª ed. rev, ampl. e atual. - Salvador : JUS PODVIM, 2016;

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado - 16ª ed. rev, atual. eampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

Sobre o autor
Hugo Junior Gonçalves

Bacharel em Direito pela UEMG - Universidade do Estado de Minas Gerais; Pós-graduando em Direito e Prática Previdenciária pela UniAmérica, Advogado inscrito na OAB-MG 209.626.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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