Meus amigos, boa noite!
Estou perante Advogados, por isso peço licença para falar-vos em pé.
I – É honra que tenho pela maior poder estar novamente convosco, neste aprazível cenáculo de cultura jurídica e literária, para discorrer da Oratória Forense na Tribuna do Júri.
À inexcedível (e já proverbial) generosidade de vosso Presidente, o insigne advogado Dr. Othon Zanoide de Moraes, e da Coordenadora da Comissão do Júri, Dra. Eleonora Vieira, é que devo minha presença aqui.
Em boa verdade, talvez devesse ter-me escusado de aceitar o gentil convite, alegando com os ingentes encargos do ofício — acabo de chegar da colenda 15a. Câmara Criminal do Tacrim, onde foram julgados hoje para mais de 150 processos… — e com a possível temeridade (e até insensatez) de usar da palavra em presença de advogados tão notáveis.
Mas, é tão grande a dívida em que estamos todos para com a intrépida Classe dos Advogados, que recusar-se alguém a atendê-los, quando pedem coisas nobres e razoáveis, não importava menos que faltar gravemente a um preceito de ordem natural.
Entendi, pois, de meu dever retornar ao vosso convívio; e o dever é um dogma, diante do qual todos, respeitosamente, curvamos a fronte!
Além de que, é muito benéfico para a alma de um pobre juiz poder privar de novo com os mais distintos colegas de sua antiga profissão. Isto não apenas lhe servirá para retemperar as forças, senão também lhe será refrigério e bálsamo com que aplacar a dor da saudade. Sabeis que “não há dor maior do que lembrar-se alguém dos tempos felizes na adversidade”([1])! Ou, por invocar a cláusula predileta dos saudosistas, “era feliz e não sabia”!
II – Vamos ao ponto; entremos, sem mais salvas nem rodeios, a tratar da Oratória Forense.
Que a palavra seja a arma, por excelência, do advogado não há quem o conteste nem ignore. A todos serve de veículo precioso para a comunicação humana; apenas do Advogado é também o instrumento imprescindível ao exercício da profissão.
“A palavra, dom de Deus, é o mais nobre dos atributos do homem”([2]).
Não admira, pois, que o mais nobre dos atributos do homem seja também a insígnia da mais bela das profissões: a Advocacia.
Catão, romano ilustríssimo, ao traçar o perfil moral do advogado, não lhe chamou senão “vir bonus dicendi peritus”, ou em linguagem, “homem de bem, perito na arte de dizer”.
É próprio do advogado falar; do bom advogado, falar bem.
Que coisa é falar bem?
Latino Coelho, castiço escritor português — a quem se deve a erudita e primorosa tradução para o nosso vernáculo da Oração da Coroa (de Demóstenes) —, afirmou, com bem de razão, que, “de todas as artes, a mais expressiva, a mais difícil, é sem dúvida a arte da palavra”([3]).
Não nos desalentemos, porém. As dificuldades surgem para ser superadas. Contra a força de vontade não há obstáculo na vida. Nunca houve brocardo mais verdadeiro: querer é poder!
“Poeta nascitur, orator fit”, recitavam os antigos: o poeta nasce, o orador se faz.
Conheceis, acaso, o edificante exemplo de Demóstenes? Merece reproduzido. Narra Plutarco, historiador grego e autor das célebres Vidas Paralelas, que Demóstenes era tartamudo, ou gago de nascença. Para corrigir esse defeito de articulação de palavras, que fez? Tomou sobre si a árdua tarefa de exercitar-se, diariamente, declamando em voz alta, com seixos ou pedrinhas na boca, nas praias do mar Egeu, ao mesmo tempo que lia com avidez os grandes mestres. Ao cabo de longo tirocínio e severa disciplina, conquistou o primado da Oratória e recebeu a coroa de ouro.
Passa por símbolo e paradigma vivo do que é capaz a vontade humana. É o Pai da Eloquência e seu eterno modelo.
Tudo vence o esforço, meus amigos! O sacrifício é o pedestal da vitória!
III – Perguntei-vos que coisa era falar bem, e ainda esperais pela resposta.
Falar bem é falar corretamente, sem ofender o pudor da gramática. Em suma, é expor as ideias com ordem lógica e observância dos cânones da boa linguagem.
A primeira preocupação, pois, de quem fala ou escreve é guardar as leis da gramática.
O advogado, portanto, há de estar atento e vigilante, não venha a cair em erros graves, e pois inadmissíveis, de grafia, pronúncia ou construção.
Quanto à prosódia, não lhe é lícito, ao advogado, v.g., dizer “gratuíto” por gratuito nem “interim” por ínterim, ou “rúbrica” em vezde rubrica.
O rol das pronúncias viciadas ou medonhas é imenso: avaro(e não “ávaro”), tóxico (cs), e não “tóchico”, frustrar, ruim, exacerbar, estupro (“estrupo” é crime hediondo também contra a gramática), meritíssimo (e não “meretíssimo” ou “meretríssimo”), etc.
A despeito de frequentes, devem ser evitadas, porquanto errôneas, construções deste naipe:
a) “Fazem” 10 min que o orador está falando e já bebeu um copo d’água”. (Faz 10 min…);
b) “Haviam” mais de 50 advogados na conferência. (Havia mais de 50 advogados na conferência, e todos atentos);
c) A Polícia “interviu” e dispersou os torcedores. Interveio e dispersou os torcedores (do São Paulo Futebol Clube: estavam exacerbados).
Ainda:
– “Juntou-se” documentos (por juntaram-se documentos);
– Se você “ver” o Dr. Zanoide, cumprimente-o. (Corrija-se a linguagem: Se você vir o Dr. Zanoide, cumprimente-o pela feliz gestão na OAB);
– Vossa Excelência “fostes” demasiado rigoroso. (Forma correta: Vossa Excelência foi. Os pronomes de tratamento obrigam o verbo à terceira pessoa).
Apoiados à muleta da força de vontade, cada um de vós poderá satisfazer plenamente ao imperativo profissional de falar bem, que deve ser a pedra de toque e o apanágio do advogado.
Tende à mão também uma boa gramática e um dicionário. A gramática pode ser a do renomado Napoleão Mendes de Almeida: Gramática Metódica da Língua Portuguesa. Quanto ao dicionário, poderáo advogado consultar, nas dificuldades, o Aurélio, sem menoscabaros outros: Cândido de Figueiredo, Laudelino Freire, Caldas Aulete,o velho Morais (Antônio de Morais e Silva) e o benemérito Rafael Bluteau, que compôs, durante 40 anos, sozinho, seu magnífico Vocabulário (em 10 vols.).
Não vos esqueçais da leitura dos clássicos da língua, notadamente de seu período áureo (séc. XVII): Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Luís de Sousa, Francisco Manuel de Melo, etc.
Antônio Vieira (1608–1697)
“O imperador da língua portuguesa” (Fernando Pessoa)
E também de Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco (estes, do séc. XIX).
Dos brasileiros, a leitura das obras de Rui, do genial Rui Barbosa, deve ser indispensável a todos os que nos preocupamos com as coisas do espírito, pela excelência das ideias, pela força arrebatadora do raciocínio lógico e pela clássica e elegante linguagem vernácula portuguesa. De sua vasta bibliografia constam: Oração aos Moços, Parecer sobre a Redação do Código Civil, Réplica, Cartas de Inglaterra, Queda do Império, O Dever do Advogado, Trabalhos Jurídicos, etc.
Rui Barbosa (1849–1923)
(“O primeiro talento verbal da nossa raça”)
Esse foi aquele Rui a quem Sílvio Romero deu, com justiça, o epíteto de “o primeiro talento verbal da nossa raça”([4]) e cuja morte a Imprensa do tempo anunciou por estas solenes e impressionantes palavras: “Apagou-se o Sol!”([5]).
Gazeta de Notícias, de 2 de março de 1923
IV – Aquele que aspira à Tribuna do Júri não pode, evidentemente, limitar-se à leitura dos autores profanos; importa-lhe conversar também, como é de razão, os que trataram “ex professo” o Direito Penal (como Nélson Hungria, o Pontífice Máximo do Direito Penal entre nós; o maior de nossos penalistas, recenseados vivos e mortos; e o intérprete mais autorizado do Código Penal de 1940, de que foi o principal elaborador, tendo-lhe escrito ainda magnífica exposição de motivos, que Francisco Campos (Chico Ciência), Ministro da Justiça de Getúlio Vargas, apenas assinou.
De Direito Processual Penal merecem particular menção as obras de José Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal), Hélio Tornaghi — “Que homem é suficientemente Deus para julgar outro homem?” (Curso de Processo Penal, Prefácio) —, Bento de Faria, Damásio E. de Jesus, Vicente de Azevedo (Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, o Vicentíssimo).
E também as obras especializadas sobre o Júri: Firmino Whitaker (Júri), Ary Franco, Edgard de Moura Bittencourt, Hermínio Marques Porto, etc.
E, além disso, a copiosa literatura dos Casos do Júri:
a) Evandro Lins e Silva (A Defesa tem a Palavra);
b) Dante Delmanto (Defesas que fiz no Júri);
c) Alfredo Tranjan (A Beca Surrada);
d) Evaristo de Morais (Reminiscências de um Rábula Criminalista);
e) Henrique Ferri (Discursos de Defesa);
f) Carlos de Araújo Lima (Grandes Processos do Júri);
g) Pedro Paulo Filho (Grandes Advogados, Grandes Julgamentos);
h) E aquele “ao qual entre todos os mortais foi reservada a palma da humana eloquência”([6]): Marco Túlio Cícero (Orações).
Cícero (106–43 a.C.)
(Príncipe dos Oradores e Oráculo da Língua Latina)
Não é só. Cumpre estudar bem o processo, dominar a causa e elaborar a defesa nos moldes clássicos da Arte Oratória:
– Exórdio, Narração, Confirmação e Epílogo (ou Conclusão).
V – Já é tempo de entrarmos, confiantes, no Tribunal do Júri.
No velho Tribunal do Júri da Capital — transformado hoje em Museu do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo([7]) — ninguém entra sem profundo abalo de ânimo: o ambiente é amplo e austero, o mobiliário requintado, as pinturas de parede majestosas, o silêncio eloquente!
Ah! a instabilidade das coisas humanas e os cruéis caprichos da fortuna! Reina hoje infinito silêncio, onde foi outrora o capitólio de glórias dos mais soberbos tribunos do Júri!
Aí vereis, eternizada no bronze, a efígie de Brasílio Machado, Marrey Jr., Dante Delmanto, Ibraim Nobre (Promotor de Justiça, o lendário tribuno da Revolução Constitucionalista de 1932) e o excelso Antônio Covello, vulto olímpico, o semideus da tribuna do Júri.
Antônio Covello (1886–1942):
Vulto olímpico, o semideus da tribuna do Júri.
Dele fique apenas este episódio: patrocinou a defesa de certa mãe que matou o próprio filho, com um tiro de revólver, porque furtara um chapéu. O júri absolveu a ré por 7 votos; ela e seu advogado foram carregados nos ombros pela plebe entusiástica…
(Humberto de Campos escreveu, ao propósito, uma crônica sublime, que lerei se me favorecer o tempo e se vós o consentirdes. Tivessem-na lido os jurados antes do julgamento, e talvez lhe fosse outro o resultado!).
VI – Estamos no plenário do Júri. Tangem as fibras de nossa alma aquelas palavras grandiloquentes de José Soares de Mello, que foi Juiz-Presidente do Egrégio Tribunal do Júri da Capital: “Quando o advogado se alça para falar, na tribuna do júri, ninguém o iguala. É que está em jogo a liberdade e a vida de um homem”([8]).
Modelo de saudação ao Presidente do Tribunal do Júri
[Excelentíssimo Senhor Juiz-Presidente deste Egrégio Primeiro Tribunal do Júri da Comarca da Capital, Dr. (nomeá-lo):
Na pessoa do Magistrado queriam nossos maiores que conspirassem três predicados fundamentais: que fosse um homem fidalgo, prudente e letrado([9]). A majestade semidivina do cargo assim o pedia!
Todas essas qualidades, Dr. (nomeá-lo), nós que vos conhecemos há assaz de anos, fazemos a justiça de supô-las em Vossa Excelência. Tendes nobreza e sabedoria nos atos e decisões; vastos são também vossos cabedais de ciência. E, o que é mais: para honra da Magistratura paulista, esses dotes Vossa Excelência os possui em grau assinalável.
Podeis, portanto, manter-vos, com a fronte erguida, no topo desse honorífico estrado, porque sois digno de ser visto e ouvido por todos os homens de bem.
Com respeito e estima, saudamos Vossa Excelência.]
Modelo de saudação ao Promotor de Justiça
[O Ministério Público, esse não tem hoje que invejar à Magistratura, pois igualmente está muito bem representado.
De vós, Dr. (nomeá-lo), o menos que a verdade manda dizer é que sois modelo da grande Instituição a que pertenceis.
Tendes o garbo e a têmpera de um legionário, que, empunhando o estandarte de sua venerável ordem, empreende soberbas cruzadas em prol da restauração do império da Lei.
Essas campanhas, é força que o digamos, nem sempre o adversário aplaude (exceção que ainda hoje, muito a nosso pesar, não veremos quebrantada). Porém, a figura do valoroso combatente não há quem deixe de exaltá-la, sobretudo quando (sendo esse o caso) reúne em si qualidades de saber e inteligência, de caráter e coração que dificilmente se encontram exornando uma só individualidade.
Receba V. Exa., Dr. (nomeá-lo), nossa merecida e sincera homenagem.]
Modelo de saudação aos Jurados
[Senhores Jurados, da importância e sublimidade de vossas funções não é mister que vos falemos, que outros já o fizeram com mais arte e propriedade.
Pelo que respeita a vossos méritos pessoais, também escusa proclamá-los, visto que é a própria lei quem o faz presumir, tendo-vos escolhido dentre cidadãos dignos da confiança pública pela abalizada cultura e exemplar teor de vida.
Tais valores e conceitos são inerentes à função de jurado e, por isso, notórios, e os fatos notórios, dispõe o Direito que dispensam demonstração, porque a evidência “é a própria prova”([10]).
Apenas um ponto quiséramos ponderar a V. Exas. e é que nunca um jurado se elevou mais aos olhos de seus pares do que quando, considerando nas mazelas a que estamos sujeitos os mortais, preferiu a clemência ao castigo e a equidade à justiça, porque aí, mais que um simples homem, obrou verdadeiramente com o estilo e a onipotência de um semideus!
Senhores Jurados, cumprimenta-vos afetuosamente a Tribuna da Defesa;
Distinta guarda pretoriana, braço forte da Justiça;
Dignos e dedicados serventuários do Júri;
Senhoras e Senhores!]
Tal saudação já serviria a conciliar o auditório, finalidade do exórdio, primeira parte do discurso.
Se a Defesa, todavia, quisesse cunhar um preâmbulo que fosse também a súmula de sua tese jurídica, poderia dizer:
[É próprio do homem aspirar à perfeição. Em todos os seus atos, persegue-o incessantemente a ideia de que tanto mais dignificará sua espécie, quanto menor sua carga de erros e desacertos.
Mas, nenhuma obra da natureza é cabalmente perfeita([11]). Frequentes são as quedas e vacilações… e o homem não seria feito de barro se tal não acontecesse!
Donde a comum preocupação dos espíritos verdadeiramente superiores de não averbar de erro ou falta grave tudo quanto lhes pareça contravir à sábia harmonia reinante no Universo.
Não sejamos, meus Senhores, prontos em censurar as ações humanas, ainda as que se nos afigurem abomináveis, porque poderá dar-se o caso que o homem, onde menos se mostre digno do epíteto de Rei da Criação, aí talvez mais justamente o mereça.]
Segundo a doutrina de Fábio Quintiliano (As Instituições Oratórias), compõe-se o discurso forense do Exórdio, da Narração, da Confirmação e da Peroração (ou Epílogo).
Para não dilatar além da marca nosso tempo, tratemos da Peroração. É o remate do discurso. Nesta parte o orador costuma “dar o último impulso aos corações”([12]).
Perante os Jurados discursará deste feitio:
[Honrados Juízes, de todas as máximas que já ouvistes nesta gloriosa academia de ciência jurídica, que é o Tribunal do Júri, não há mais importante nem sagrada que esta: condenação exige certeza. Esta é a regra de ouro de todo o julgador!
Sem prova plena e incontroversa da autoria da infração penal, ninguém pode ser condenado.
Ora, no caso, não ficou demonstrada a participação do réu no crime de homicídio. Sua absolvição, portanto, será a única decisão compatível com os ditames da Justiça.
Lembrai-vos das palavras de Nélson Hungria, que mereciam gravadas em lâmina de ouro: “Condenar um possível delinquente é condenar um possível inocente” (Comentários ao Código Penal, 6a. ed., vol. V, p. 65).
Quando, na sala secreta, vos propuser o MM. Juiz-Presidente a votação dos quesitos, devereis responder não àquele relativo à autoria, porque o réu, como provamos, não concorreu para a prática do crime.
Noutros casos, fora só Justiça; aqui será também piedade afastar dos lábios do réu a taça amarga de uma condenação injusta!