À constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal

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Reflexões sobre o artigo 283 do Código de Processo Penal e sua tão questionada constitucionalidade.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que transcreve em seu texto a literalidade do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que fundamenta o Princípio da Presunção da Inocência (ou Não Culpabilidade), por meio de perquirição a doutrina e a jurisprudência atual. Não obstante, visa demonstrar a importância da efetividade desse princípio, premissa para proteção tutelada pela carta magna elaborada pelo legislador constituinte a todo corpo social, face a força do jus puniendi do Estado. Também visa averiguar as possíveis consequências para sociedade de sua relativização pelo Supremo Tribunal Federal, apresentar justificativa contundente para existência das ADCs (Ação Direta de Constitucionalidade) 43 e 44 ainda carentes de apreciação pela Corte Suprema.

Palavras-chaves: Constitucionalidade, Princípio da Presunção de Inocência ou não Culpabilidade, Execução provisória da pena.


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como fundamento à análise da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, estipulado pela lei nº 11.719/08 no que se refere ao Princípio da presunção de inocência, diante das decisões dos Habeas Corpus nº 126.292/SP, Habeas Corpus 152.752/PA, proferidas pelos Ministros do Supremo Tribunal de Federal (STF) e a divergência constitucional face ao comando do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. 

5. [...]

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Diante do atual debate jurídico e da presente questão de mérito das Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44, este artigo visa demonstrar que a interpretação jurídica do atual plenário do Supremo Tribunal Federal face ao Princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade se faz necessário.

Frente aos fatos históricos, tal princípio não deveria sofrer relativização, uma vez que cabe ao Ministério Público, na atual construção histórica da democracia, provar a culpabilidade do agente acusado, conforme estipula o comando constitucional do referido artigo.

Não obstante, os Ministros do STF têm o dever de julgar conforme preconiza a constituição brasileira - em destaque, o Supremo Tribunal Federal guardião da Carta Magna de 1988, como estabelece o artigo 102 da Constituição da República Federativa do Brasil.

 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - Processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

Assim, pretende-se demonstrar que o referido artigo 283 do Código de Processo Penal, está intrinsicamente de acordo com o texto constitucional em face ao art. 5º inciso LVII, no que tange a aplicabilidade do Princípio da Presunção de Inocência ou não Culpabilidade. Portanto, a execução provisória da pena ocorreria somente da sentença penal condenatória transitado em julgado.

Este estudo tentará enfrentar o seguinte problema: o artigo 283 do CPP, firmado pela lei nº 11.719/08, está em conformidade em relação a constitucionalidade da aplicação do princípio da presunção da inocência?


2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU NÃO CULPABILIDADE: Abordagem histórica

No que tange ao positivismo do princípio da presunção de inocência nos vários ordenamentos jurídicos a partir do século XVIII até à atualidade, é imperioso destacar que esse tem uma vasta fundamentação para sua existência.

Na construção histórica da sociedade brasileira, cumpre destacar a atual conjectura social jurídica embasada pela figura do estado democrático de direito. Esta forma de organização é, em sua maioria, utilizada pelos países ocidentais que ao longo de séculos evoluíram juridicamente para garantir o direito do homem e de sua existência, pautado na dignidade da pessoa humana.

Não obstante, imperioso destacar que o Princípio da presunção de inocência surgiu pela necessidade de proteção à pessoa frente ao jus puniendi do Estado, uma vez que não há provas de sua existência no período pré-histórico, o que se pode inferir que, no Direito Romano, com a aplicação das leis e julgamentos, houve a necessidade da evolução de proteção ao indivíduo frente ao estado inquisitivo e punitivo.

A centralização de poder fez nascer uma forma mais segura de repressão, sem dar margem ao contra-ataque. Nessa época, prevalecia o critério do talião (...), acreditando-se que o malfeitor deveria padecer o mesmo mal que causara a outrem. Não é preciso ressaltar que as sanções eram brutais, cruéis e sem qualquer finalidade útil, a não ser apaziguar os ânimos da comunidade, acirrados pela prática da infração grave.[3]

Nesse sentido, com ascensão da burguesia na Idade Média, houve um avanço considerável no que tange ao período iluminista financiado com o surgimento dessa nova classe dominante, onde a valorização do homem se tornou pressuposta e, deste modo, seria indispensável o rompimento com todo e qualquer controle absoluto do Estado como se tinha conhecimento.

Nesse contexto, as mudanças passam a ter justificativas sociais e econômicas comuns, quais sejam, a mudança do poder político reinante por meio não apenas da queda de seus ocupantes, mas, principalmente – e essa foi uma característica da Revolução Francesa –, pela mudança dos primados e paradigmas até então vigentes. O Estado não deveria mais ter como escopo sua perpetuação e locupletamento por meio da força produtiva de seus súditos, mas deveria servir-lhes e voltar todas suas preocupações no sentido de propiciar-lhes melhores condições de vida. Filosoficamente, portanto, os pensadores iluministas rompem com a idéia de poder fundada em critérios religiosos, militares ou hereditários. A secularização estabelece a “racionalidade” como novo alicerce para a construção de um novo sistema político, social, econômico e, como não poderia deixar de ser, jurídico.[4]

Não obstante, a Revolução Francesa deu passo fundamental ao positivar, na Declaração Dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, o que teríamos hoje como pressuposto basilar do Princípio da Presunção de Inocência quando estabeleceu em seu artigo 9º: “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.”[5]

Diante desse marco histórico da evolução penal pela Revolução Francesa, grandes outros ordenamentos copilaram tal pressuposto para seus ordenamentos. Assim surge a necessidade de garantir ao indivíduo que não mais lhe caia o dever de provar sua inocência, mas fica a cargo de quem lhe acusa todo ônus da prova, uma vez que o direito penal passa a ser a ultima ratio de punição pelo Estado.

Presunção vem do latim praesumptio, onis, cujo verbo é praesumere, significando antecipar, tomar antes ou primeiro, prever, imaginar antes. Resulta da combinação do verbo “sum, es, fui, esse” – cujo significado é, entre outros, acontecer, existir, suceder, valer – com o prefixo “prae”, que indica prioridade no tempo e no espaço e, ainda, anterioridade.[6]

Por outro lado, ao longo das décadas e com forte ascensão de uma formação estatal, ocorrera o enfraquecimento dos direitos do homem expressados pela constituição Francesa, pautada na Liberté, Egalité, Fraternité (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), lema da revolução francesa.

As codificações penais europeias de diversos países suprimiram o princípio da presunção de inocência de seus ordenamentos; não obstante, face a Primeira e Segunda Guerra, houve um pós-positivismo jurídico fundado nas escolas positivistas.

Deste modo, o ordenamento penal italiano de 1913 e 1930, que também serviu como premissa para elaboração da codificação penal brasileira, pressupõe um novo conceito - o da culpabilidade.

Nessa linha de raciocínio, MANZINI admite que haja culpado e não culpado, sem espaço para outra qualificação. Conclui que enquanto o juiz não tenha decidido pela culpa do acusado ele será presumivelmente não culpado, jamais inocente. Por seu prisma ótico de qual seria o escopo do processo penal, ele entende que este instrumento não se presta a analisar se alguém é ou não inocente, mas apenas se é ou não culpado. Nasce daí a justificativa para a substituição da “presunção de inocência” iluminista pela “presunção de não culpabilidade”, criada pelo positivismo jurídico italiano do século XIX.[7]

Nesta vereda, a elaboração de uma codificação penal italiana menos protecionista a favor dos direitos individuais tem como fundamentação o estado político à época de sua positivação, uma vez que o partido fascista tinha interesse em um estado jus puniendi maior e autoritário como modo de governo.

Sobre a utilização pelo fascismo dos princípios e ideias da Scuola Positiva, v. Enrico FERRI, Princípios cit., pp. 315/316 e nota 1. Na mesma obra (p. 43), assim se manifesta o autor: “Afirmou a necessidade de restabelecer o ‘equilíbrio entre os direitos do indivíduo e os do Estado’; pelo que eu disse que se a idade-media tinha visto somente o ‘delinquente’ e a Escola Clássica tão somente o ‘homem’, a realidade impunha ter em conta o ‘homem delinquente’, não desconhecendo no delinquente os direitos insuprimíveis do homem, mas não esquecendo nunca a insuprimível necessidade da defesa social contra o delinquente”. Acrescentando em nota de rodapé ao texto destacado: “Esta a razão fundamental do acordo prático entre o ‘Fascismo e a Scuola Positiva na defesa social contra a criminalidade’, por mim salientado nos ‘Studi sulla criminalità’, 2ª ed., Torino, UTET, pág. 696-737 (reproduzido na ‘Scuola Positiva’, julho de 1926).[8]

Diante disto, ao estabelecer tais critérios para regular e suprimir a sociedade à sucumbir a posição do Estado máximo, José Luis Vazquez, assim se manifesta: “O ‘perigo político’ das doutrinas positivistas consistiu, curiosamente, em ter servido e serem utilizadas a serviço dos movimentos e regimes totalitários que dominaram a Europa na época que mediou entre uma e outra grande guerra”[9]. 

Seguindo a esteira do positivista jurídico, impende destacar que a defesa da presunção de inocência nada tinha a ver com a persecução penal, o que defendia o então doutrinador Francesco Carrara, no entanto era a justa análise das condenações e a prisão corriqueiras antes da condenação e julgamento do acusado.

“Assim também, a despeito de combater severamente a tendência das legislações existentes no Reino da Itália do século XIX, pela excessiva condescendência em aplicar a prisão provisória como regra e como forma de cumprimento antecipado de pena, faz propostas para aceitá-la (a prisão provisória) de modo excepcional. Para arrefecer tal tendência legislativa, propõe alguns instrumentos (p.ex., caução) para substituir essa prisão e pugna para que fosse considerada medida excepcional, e não a regra, como ocorria até então. Porém, jamais defendeu sua exclusão, assim como qualquer impossibilidade de se iniciar ação penal pelo fato de alguém ser “presumivelmente inocente”. Em várias oportunidades fica claro que esse autor, assim como quase todos os clássicos, defendiam a erradicação do arbítrio e dos abusos em se encarcerar desmedidamente sem condenação e em prende provisoriamente como regra”.[10]

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É importante salientar que o ordenamento Jurídico Penal Italiano à época influenciou diretamente a elaboração e positivação do Código Penal Brasileiro de 1941, vigente até os dias atuais, cujo o teor, mesmo com suas modificações legislativas ao longo dos anos, ainda preserva embasamentos de uma fase trágica na história mundial – fase da Segunda Guerra Mundial com os regimes fascista de Mussolini na Itália, Nazismo de Hitler na Alemanha, Stalinismo de Josef Stalin na União Soviética, bem como o Brasil em pleno Estado Novo comandado pelo então Presidente Getúlio Vargas. A proteção dos direitos do homem neste período sucumbiu ao autoritarismo e à perseguição - um dos períodos mais trágicos da humanidade em que houve 50 milhões de mortos e 35 milhões de feridos.

A grande influência que a Escola Positiva de Lombroso, Ferri e Garofalo projetava na doutrina brasileira pode ser vista nas admiradas e esperançosas palavras que João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo criminal brazileiro, 3ª ed., Rio de Janeiro: Typ. Batista de Souza, 1920, v. 1, pp. 252/253, depositava nesse novo e promissor pensamento “científico”. Analisando a importância tanto da escola criminológica quanto da doutrina técnico-jurídica da Itália, do final do século XIX e início do século XX, v. Marcos César ALVAREZ, Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil, in Andrei KOERNER (org.), História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises, São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, série Monografias, 2006, v. 40, itens 2 e 3.

A forte penetração do positivismo italiano na doutrina penal brasileira foi destacada por Ricardo de Brito A. P. FREITAS, As razões cit., cap. XI, pp. 265/338, inclusive com a análise dos trabalhos de vários penalistas brasileiros, alguns dos quais integrantes da comissão (p.ex. Roberto LYRA, op. cit., pp. 319/322) que trabalhou na elaboração do código de processo penal de 1941.

Quanto ao código de processo penal italiano de 1930 ter servido de modelo para o nosso atual código elaborado em 1940, v. Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo cit., p. 104.[11]

Diante da grande tragédia mundial que dizimou parte da população global e dos graves conflitos entres países, fez-se necessária a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) que teve como embasamento de sua criação, no pós-guerra, a mediação de conflitos e questões entre as nações para evitar possíveis novos conflitos. Um dos basilares desta organização é pautar a dignidade da pessoa humana como centro dos ordenamentos jurídicos, uma vez que os países participantes se compromissavam com tratados.

Sobre os autores
Vinícius Augusto Brito Jardim

Professor Orientador; Professor de Direito Penal; mestrando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/Portugal; especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Brasil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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