O negócio jurídico processual pode ser utilizado como alternativa de parcelamento de dívida tributária?

08/11/2019 às 16:36
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O presente artigo tem o escopo de analisar o instituto denominado Negócio Jurídico Processual (artigos 190 e 191 do CPC de 2015). Analisaremos algumas hipóteses de aplicação prática dessa ferramenta jurídica no âmbito tributário.

1. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

O autor Fredie Didier Jr define o instituto como “fato voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, dentro os limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento” (DIDIER, 2018, p.25).

Nesse contexto, importante trazer à baila o ilustre pensamento do doutrinador Leonardo Greco, uma vez que considera ser possível às partes, como destinatárias da prestação jurisdicional, praticarem as convenções processuais, entendidos como “os atos bilaterais praticados no decorrer da demanda, ou para nele produzirem efeitos, que dispõe sobre questões do processo” (GRECO, 2008, p.290).

Candido Rangel Dinamarco, por outro lado, é incisivo ao descartar qualquer hipótese de existência de negociação processual, uma vez que os atos processuais devem resultar sempre de lei, e não da vontade entre as partes.

Nessa mesma linha de raciocínio, Daniel Mitidiero esclarece que “na relação processual não haveria espaço possível para o autorregramento de vontade, levando em consideração que todos os efeitos possíveis de ocorrência em virtude de atos dos sujeitos, já estariam normatizados” (MITIDIERO, 2005, p.16).

Como se observa, em que pese a existência de previsão expressa do instituto no CPC de 2015, há certa controvérsia doutrinária sobre sua aplicação, razão pela qual caberá ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) dirimir a controvérsia e consolidar entendimento acerca dos limites de aplicação do Negócio Jurídico Processual em nosso âmbito jurídico.


2. CLASSIFICAÇÃO

De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, os negócios jurídicos são classificados como típicos e atípicos, possuindo cada um suas particularidades.

2.1. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL TÍPICO

Os negócios processuais típicos são assim denominados porque para eles há autorização normativa específica

Primeiramente, importante esclarecer que durante a vigência do CPC/73 já havia previsão sobre o negócio jurídico processual típico, ainda que mais restritas, como por exemplo, o artigo 158 do CPC/73 que estabelecia que “os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”.

Fredie Didier apresenta alguns exemplos de negócio processual típico: eleição negocial do foro (art. 63, CPC), o negócio tácito de que a causa tramite em juízo relativa- mente incompetente (art. 65, CPC), o calendário processual (art. 191, §§ 1º e 2º, CPC), a renúncia ao prazo (art. 225, CPC), o acordo para a suspensão do processo (art. 313, II, CPC), organização consensual do processo (art. 357, § 2º), o adiamento negociado da audiência (art. 362, I, CPC), a convenção sobre ônus da prova (art. 373, §§ 3º e 4º, CPC), a escolha consensual do perito (art. 471, CPC), o acordo de escolha do arbitramento como técnica de liquidação (art. 509, I, CPC), a desistência do recurso (art. 999, CPC), o pacto de mediação prévia obrigatória (art. 2º, § 1º, Lei n. 13.140/2015) etc.(DIDIER, 2018, p.26).

2.2. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO

Com o advento do Novo Código de Processo Civil, surgiu uma nova classificação do negócio jurídico processual, com o intuito de valorizar mais a vontade das partes, de forma a propiciar uma maior adequação do processo a necessidade de cada caso, permitindo, assim a modificação ou a extinção de direitos processuais.

Fredie Didier traz alguns exemplos de negócios processuais atípicos permitidos pelo art. 190 do CPC/2015: acordo de impenhorabilidade, acordo de instância única, acordo de ampliação ou redução de prazos, acordo para superação de preclusão, acordo de substituição de bem penhorado, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória, acordo para dispensa de caução em execução provisória, acordo para limitar número de testemunhas, acordo para autorizar intervenção de terceiro fora das hipóteses legais, acordo para decisão por equidade ou baseada em direito estrangeiro ou consuetudinário, acordo para tornar ilícita uma prova etc. (DIDIER, 2018, p.31).


3. REQUISITOS PARA VALIDAÇÃO DOS NEGÓCIOS PROCESSUAIS

Os negócios jurídicos processuais, assim como qualquer outro negócio jurídico, precisam observar os requisitos previstos no artigo 104 do Código Civil Brasileiro, quais sejam: I- agente capaz; II - objeto lícito; e III - forma prescrita ou não defesa em lei. Não sendo verificado qualquer um dos requisitos em apreço, caracterizar-se-á a nulidade do negócio, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 190 do CPC/2015.


4. O PAPEL DO JUIZ - INCENTIVO E CONTROLE - É PARTE DA CONVENÇÃO?

A principal tarefa do magistrado no que tange aos negócios jurídicos processuais é a de controle ou fiscalização. Com efeito, deverá o juiz analisar a validade das convenções processuais, controlando a extensão em que a vontade das partes poderá modificar o procedimento estatal.

Caberá ao juiz velar pelos interesses públicos, evitando que os acordos avancem em uma seara inadmissível à autonomia das partes.

O juiz não terá o poder de apreciar a conveniência da celebração do acordo, limitando-se a um exame de validade, conforme dispõe o artigo 190 § único CPC, o qual aduz que o juiz “controlará a validade” das convenções.

Em razão do principio in dubio pro libertate, as convenções processuais são amplamente permitidas, razão pela qual a atividade de controle do juiz restringe-se a verificar posteriormente se as partes extrapolaram o espaço que o ordenamento jurídico lhes atribui para atuar.

Embora o caput do art. 190 CPC mencione apenas os negócios processuais atípicos celebrados pelas partes, Fredie Didier Jr sinaliza que “não há razão alguma para não se permitir negociação processual atípica que inclua o órgão jurisidicional” (DIDIER,2017, p.432), restando claro que o magistrado será parte na convenção processual.

Para Antônio de Passo Cabral, o Estado-juiz não é parte da convenção, entretanto fica vinculado a elas, pois tem o dever de aplicar a norma convencional, seja quando a regra do acordo conformar o procedimento, seja para dar cumprimento à avença nos casos em que outros sujeitos tiverem que adimplir.


5. HOMOLOGAÇÃO

A homologação dos negócios processuais jurídicos, em regra, é desnecessária, conforme já aprovado no enunciado nº 133 do Fórum Permanente de Processualistas Civis que prevê “Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190. não dependem de homologação”.

Diante disso, possível extrair o entendimento de que a homologação judicial só é exigida em certos casos em que a lei prevê expressamente essa necessidade, não configurando, portanto, um pressuposto de constituição válida dos negócios processuais.

Neste contexto, a título exemplificativo, tem-se o artigo 862 § 2º do CPC que prevê a necessidade de homologação da convenção que escolher o administrador; o artigo 515, inciso II do CPC, que prevê a homologação da autocomposição obtida no curso do processo, com a finalidade de interromper a litispendência; o artigo 200 § único do CPC que prevê que desistência da ação, requerida pela parte autora, só produzirá efeito após homologação judicial.


6. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL COMO ALTERNATIVA DE PARCELAMENTO DE DÍVIDA TRIBUTÁRIA?

Com a abrangência do Negócio Jurídico Processual no Código de Processo Civil, a Procuradoria da Fazenda Nacional começou a tratar do negócio jurídico processual de forma institucional.

Nesse contexto, em junho de 2018, a PFN publicou a portaria PGFN 360/18, posteriormente atualizada pela portaria PGFN 515/18, estabelecendo, no entendimento da PGFN, os negócios jurídicos processuais que seriam permitidos no seu âmbito, inclusive mediante a fixação de calendário para a prática de atos processuais, como: (i) o cumprimento de decisões judiciais; (ii) a confecção ou conferência de cálculos; (iii) os recursos, inclusive a sua desistência; (iv) a forma de inclusão do crédito fiscal e FGTS em quadro geral de credores, (v) prazos processuais, e (vi) ordem de realização de atos processuais, inclusive em relação à produção de provas.

Neste contexto, como forma de aperfeiçoar o pagamento das dívidas tributárias foi instituída a Portaria nº 742 de dezembro de 2018, que possui a finalidade de regulamentar o referido instituto no âmbito das dívidas tributárias.

A Portaria estabelece as regras para a realização dos acordos entre contribuinte e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, visando facilitar os procedimentos para o pagamento de dívidas, como forma de beneficiar reciprocamente as partes envolvidas, sendo assim, o contribuinte que tiver o interesse de celebrar o Negócio Jurídico Processual, o fará por meio de solicitação, que será analisada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

A finalidade da referida Portaria, portanto, é otimizar a recuperação de créditos tributários em forma de acordo, de uma maneira em que o contribuinte possa se utilizar de um meio menos burocrático para criar um diálogo com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, adimplindo os débitos tributários.

Como a Portaria iniciou sua vigência em dezembro de 2018, ainda não há precedentes suficientes para saber de sua efetividade. Assim, é importante que os contribuintes se atentem à possibilidade de utilização do Negócio Jurídico Processual como forma de solução aos litígios em execução fiscal. Também é importante o acompanhamento dos precedentes judiciais em relação ao assunto, como forma de verificar a Portaria sendo aplicada na prática.


7. A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO PRÁTICA DO NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL NO ÂMBITO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

A Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro agora pode celebrar negócios jurídicos processuais sobre alguns pontos de execuções fiscais. No entanto, o órgão não pode negociar direito material do Estado, como valor de tributos.

A Resolução PGE/RJ 4.324/2019, publicada em 8 de janeiro de 2019 no Diário Oficial fluminense, autoriza a Procuradoria a celebrar negócios jurídicos processuais envolvendo a obtenção e execução de garantias pela PGE/RJ; procedimento de prova pericial, inclusive escolha do perito; produção unificada de prova para litígios repetitivos; delimitação consensual das questões de fato e de direito; reunião das execuções fiscais; prazos processuais, inclusive com a fixação de calendário para prática de atos; recursos, inclusive sua renúncia prévia; cumprimento de decisões judiciais e procedimento de conversão de depósito em renda. Caso haja justificativa da necessidade e aval do Procurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro, qualquer procurador poderá sugerir a celebração de outros tipos de negócios.

A PGE/RJ, no entanto, não pode firmar negócios jurídicos processuais que envolvam a renúncia a direito material por parte do Estado ou que preveja penalidade monetária ou gere custos adicionais à administração pública, exceto se autorizado pelo Procurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro.

Sua autorização também é necessária para a celebração de negócios jurídicos processuais nos quais o valor do crédito tributário ultrapasse R$ 5 milhões. Para os demais compromissos, basta a autorização prévia do Procurador-Chefe da Procuradoria Tributária, da Dívida Ativa, da Coordenadoria Geral das Procuradorias Regionais e da Procuradoria em Brasília.


8. CONCLUSÃO

Verificou-se que antes da entrada em vigor do CPC[201]5, alguns autores ainda discutiam se era cabível ou não as partes realizarem acordos no bojo do processo judicial. Os que se posicionavam contra essa possibilidade advogavam que a vontade das partes não poderia sobrepor ao que dispõe o ordenamento jurídico.

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O artigo apresentou ainda o papel do juiz perante as convenções processuais, concluindo-se que o magistrado tem o papel de controlar e validar as convenções, a fim de evitar abusos e prejuízos para uma das partes. Verificou-se, também, que os juízes realizam tal controle de validade após o negócio já estar firmado entre as partes e que em regra, não será necessário homologar os acordos, salvo em algumas hipóteses previstas em lei.

Por fim, o artigo discorreu sobre a possibilidade de utilização do negócio jurídico processual no âmbito tributário e trouxe o posicionamento da Procuradoria da Fazenda Nacional firmado por meio da Portaria nº 742 de dezembro de 2018, que regulamenta o referido instituto no âmbito das dívidas tributárias. No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a Resolução PGE/RJ 4.324/2019 autoriza a PGE/RJ a celebrar negócios jurídicos processuais sobre alguns pontos de execuções fiscais.

Diante do exposto, insta reconhecer a importância da iniciativa da PGFN e da PGE/RJ ao autorizarem expressamente a prática do negócio jurídico processual, o que demonstra um grande avanço das referidas instituições no que tange a uma maior aproximação com os contribuintes e ao atingimento do interesse público na resolução mais célere das demandas de natureza tributária.


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SHONKE, Adolf. Direito Processual Civil. Revisão Afonso Rezende. Campinas.Romana,2003

Sobre a autora
Tavares & Costa Advocacia

Bem vindos à página do Escritório Tavares & Costa advocacia. Abaixo, segue apresentação dos sócios. Drª Rose Tavares: Graduada pela PUC-Rio, especialista em Direito Processual Civil, Direito previdenciário. Assistente na Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Ex-residente na Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. Dr. Cayo Costa: Graduado pela Cândido Mendes, especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil.

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